Do coração e outros corações

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terça-feira, 14 de outubro de 2014

do blog de Roberto Romano

Jornal da Unicamp

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDFCampinas, 03 de outubro de 2014 a 12 de outubro de 2014 – ANO 2014 – Nº 609

Santa ciência

Pesquisa de doutorado sugere que programa televisivo “sacraliza” avanços científicos


Formada em rádio e televisão pela Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba), Daniella Rubbo Rodrigues Rondelli vem estudando a relação da imprensa com a ciência desde a graduação. Esse interesse se transformou em dissertação de mestrado e teve como desdobramento natural a tese de doutorado intitulada “As (in)certezas da ciência: uma análise das representações da ciência médica no programa Fantástico”, defendida sob a orientação da professora Maria José Rodrigues Faria Coracini, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

Daniella Rubbo partiu de uma hipótese simples: que apesar de a cultura logocêntrica ocidental contrapor ciência e religião como formas antagônicas de conceber o mundo, o discurso da mídia constrói representações de ciência que se aproximam das representações de religião. “O antagonismo na prática científica e religiosa é tomado como pressuposto não porque realmente existam diferenças que separem os dois campos, mas porque ambos têm a pretensão de deter a verdade.”

Inicialmente, a autora da tese quis verificar como a mídia, principalmente a TV, trata a ciência de maneira meio mistificada, sacralizada. Ela observa que o “Fantástico” possui mais de 40 anos de história e por isso foi o programa escolhido para que procurasse entender as relações de poder entre mídia, ciência e público na contemporaneidade. “O recorte temporal foi de um ano, em que colhi 104 reportagens. Como são muitas as matérias de ciências, eu decidi por um recorte mais específico, trabalhando apenas com as de medicina, que têm grande repercussão e são as mais comentadas pelo público leigo.”

Na leitura atenta das matérias, Daniella Rubbo verificou diversos pontos de aproximação entre medicina e religião, que agrupou em três grandes eixos: “ascese”, “promessa” e “sacralidade”, todos eles unidos pela necessidade de “fé”. “Chamo de ascese o eixo em que o médico é colocado como alguém que precisa fazer sacrifícios pessoais, doar algo de si próprio para exercer esta profissão. Há o eixo da promessa de uma vida melhor, desde que o espectador confie e se entregue às regras da medicina. E vemos a marca fortíssima da sacralização, quando até mesmo para o mais desesperançado a medicina promete a salvação, através de um novo procedimento médico e do avanço da ciência.”

A radialista acrescenta que esses três eixos têm como exigência comum a fé irrestrita no conhecimento médico, o que representaria um quarto laço entre ciência e religião. “Um aspecto curioso é que embora a construção desta visão de fé seja a marca do Fantástico, ao observarmos cientificamente o corpus da pesquisa, percebemos que o próprio médico acredita muito naquilo que está falando.”

Histórico
O Fantástico foi ao ar pela primeira vez em agosto de 1973, mesmo ano de nascimento de Daniella Rubbo, coincidência que a levou à constatação de que toda a sua geração encontrou no discurso do programa as referências iniciais para a construção de um ideário sobre a ciência brasileira. “É difícil encontrar alguma edição em que a ciência não tenha sido abordada. E a tendência pela medicina está presente desde o primeiro programa, cuja pauta continha uma entrevista com o cirurgião plástico Ivo Pitanguy; uma matéria mostrando o momento em que o jogador Tostão recebia um laudo médico que o obrigava a abandonar o futebol; e uma reportagem sobre uma técnica de criogenia, desenvolvida nos Estados Unidos, com pretensão de congelar pacientes de doenças ainda sem cura para que, no futuro, fossem tratados.”




Na tese, a autora retrocede aos tempos de Vargas, de JK e do golpe militar para oferecer um histórico sobre as circunstâncias e ações políticas e econômicas que favoreceram a Rede Globo para que se tornasse o mais poderoso grupo de mídia do Brasil. “A década de 1960 vai ser marcada por grandes transformações políticas e sociais, que terão os meios de comunicação como um importante vetor na reconfiguração dos jogos de poder. Antigos grupos de mídia deram lugar a outros, mais alinhados com os interesses econômicos, políticos e militares do momento. Dentre esses interesses havia a necessidade de adaptar uma população tradicionalmente agrária e pouco alfabetizada ao novo contexto urbano-industrial.”

Na visão da pesquisadora, a Globo desenhou seu modelo entre tradição e modernidade, ainda que isso resultasse em contradições como de ser a única emissora a ter um correspondente no Vaticano e, ao mesmo tempo, a primeira a retratar a vida de uma mulher divorciada. “O Fantástico falava da importância da ciência e das grandes descobertas até para que a população deixasse de acreditar tanto no padre e mais no médico. E cumpre até hoje esse papel, embora a condição da população e sua relação com a ciência fosse mudando. Só não muda o programa, um dos mais estáveis da rede e que teve seu horário alterado apenas em meia hora.”

A radialista recorda que o programa sempre foi marcado por um caráter tradicional e respeitoso à religião católica, mas em muitos momentos escapa dessas premissas conservadoras. “Como exemplo, em 1978, o Fantástico exibiu uma gravação de Maria Bethânia cantando ‘Cálice’,  canção de Chico Buarque e Gilberto Gil, ambos exilados pelo governo militar, e que ficou conhecida como um hino de resistência. Da mesma forma, ao longo de sua história podemos encontrar momentos em que o programa abre espaço para outras religiões, como em diversas matérias sobre o médium Chico Xavier ou curas por intermédio de intervenções espirituais.”

Na visão de Daniella Rubbo, essas primeiras reportagens também exemplificam a vocação do Fantástico para tratar a ciência como um espetáculo que promete uma vida melhor, mais desejável e mais segura. “O próprio nome escolhido, ‘Fantástico: o show da vida’, aponta nessa direção. Uma marca ainda mais contundente desta inclinação é seu primeiro jingle, que funciona como uma espécie de declaração de intenções do programa. A composição é do músico Guto Graça Mello e do diretor José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o famoso Boni, homem forte da emissora e idealizador do programa”.

A letra do tema de abertura do Fantástico está inserida na tese de Daniella Rubbo:
Olhe bem preste atenção Nada na mão nessa também Nós temos mágica para fazer Assim é a vida, olhe pra ver Milhares de sonhos, só para sonhar Miragens que não se pode tocar Numa fração de um segundo Qualquer emoção agita o mundo Riso, criado por quem é mestre Sexo, sem ele o mundo não cresceGuerra para matar e morrer Amor que ensina a viver Foguetes no espaço num mundo infinito Provando que tudo não passa de um mito É Fantástico, da idade da pedra ao homem de plástico, o show da vidaÉ fantástico

 
Um médico abnegado
Das 104 reportagens do Fantástico que Daniella Rubbo gravou durante um ano, ela selecionou diversas para o CD que acompanha sua tese de doutorado, no intuito de mostrar momentos do programa em que aparece a divergência entre ciência e fé. Um colaborador fixo e que exerce grande influência sobre os telespectadores é o médico Dráuzio Varella que, na opinião da pesquisadora, ganha no programa uma imagem abnegada, competente e esforçada. “Sua figura remete à de um sacerdote oferecendo a salvação. Há uma matéria versando sobre pesquisas de novos medicamentos em que ele aparece num barco, atravessando o rio Amazonas, como um missionário que abandona todo o conforto da cidade e coloca muito de si para ir atrás dessas curas”.

Daniella Rubbo acrescenta que a cena é do quadro “É bom pra quê?”, série limitada de reportagens produzidas sob o comando de Varella e que se propunha a discutir o uso de produtos caseiros, como plantas e chás, no tratamento de doenças. “O nome do quadro sugere que a reportagem promoverá uma reconciliação entre ciência e senso comum. Porém, essa reconciliação é aparente, já que o próprio apresentador veiculará a segurança do procedimento médico-científico – ‘Do tubo de ensaio ao balcão da farmácia’. Ou seja, as plantas só serão úteis e seguras se passarem pelo crivo da ciência.”

Segundo a autora da tese, ainda que o Fantástico conceda espaço inclusive para manifestações de resistência à hegemonia do conhecimento científico, seus dizeres acabam reafirmando a verdade científica em detrimento de outras possibilidades. “Esse viés do programa está presente na maior parte do material que analisamos, mas se faz particularmente importante quando tratamos da participação de Dráuzio Varella. Por ocupar a dupla função de médico e de comunicador (fazendo-se por vezes de repórter), tende a diminuir a tensão entre o poder exercido pela ciência e o exercido pela mídia, emprestando ao cientista a visibilidade da mídia e ao jornalista, a credibilidade da ciência.”

Nem por isso, Daniella Rubbo deixou de identificar uma reportagem em que a promessa parece ser suplantada ou, pelo menos, sofre resistência das promessas religiosas. A pauta é sobre o milagre, reconhecido pela Igreja, que permitiu a beatificação de Irmã Dulce: foi atribuída à intercessão da religiosa a recuperação de uma mulher após intensa hemorragia durante o parto, depois de passar por três cirurgias e acabar desacreditada pelos médicos. Um padre pediu socorro a Irmã Dulce, colando uma foto da santa sobre o frasco de soro.

Na visão da pesquisadora, esta reportagem parece corroborar a ideia de que a religião tem um poder de interferir sobre a vida das pessoas, apontando, afinal, para a suposta dicotomia entre ciência e religião. “Depreendemos que, enquanto há espaço para a medicina, a religião fica apagada como forma de explicar e interferir no mundo, ganhando espaço apenas quando a primeira atinge seus limites. Por tal via, a religião estaria além, seria mais importante do que a própria medicina e, principalmente, seria incompatível com as verdades médicas.”

Publicação
Tese: “As (in)certezas da ciência: uma análise das representações da ciência médica no programa Fantástico”
Autora: Daniella Rubbo Rodrigues RondelliOrientadora: Maria José Rodrigues Faria CoraciniUnidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

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