Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Só o surrealismo me conforta...


Hora do cha Alex Timmermans

Bem assim...



Entorpecida com a circularidade dos argumentos (sic) nestas eleições.

do Blog de 

Maria Sylvia Carvalho Franco, Caderno Aliás, O Estado de São Paulo, 11/10/2014Roberto Romano.


Política da desconstrução

Maria Sylvia Carvalho Franco - O Estado de S. Paulo
11 Outubro 2014 | 16h 00

O recurso à mentira e à repetição persuasiva são a tônica das atuais campanhas eleitorais


FOTIS VROTSIS/GETTYIMAGES
Fórmula. Para vender sabonetes ou candidatos, é preciso atingir o âmago do público
Em todos os tempos a violência - assassinatos, perfídias, traições, calúnias, fraudes, maledicências de toda sorte - tece a história das instituições políticas, culminando com as tiranias, campo por excelência da injustiça. Modernamente, os especialistas em desmoralizar o adversário são os spin doctors, sombrios personagens encarregados de criar e difundir boatos no intuito de “desconstruir” (no jargão moderno) o antagonista. Sem dúvida, essa técnica surte efeitos positivos para seus manipuladores.

No cerne dessa rede publicitária está a falácia dos argumentos repetidos ad nauseam, fundados no pressuposto de que, quanto mais reiterados, mais corretos parecem e mais eficazmente são incutidos no ânimo do cidadão, sejam verazes ou falsos. Um bom exemplo dessa operação é oferecido pela publicidade mercantil americana, focalizado em romance e filme da década de 1940 no qual um magnata delineia as bases da boa propaganda: “Uma simples e boa ideia repetida até que o público esteja tão irritado que compre sua marca porque não consegue esquecê-la”. A seu ver, os profissionais da propaganda temeriam perder clientela, mas, ao contrário, diz ele, “o público gosta disso se você souber como fazê-lo relaxar e divertir-se.” (Vance Packard, The Hidden Persuaders). Note-se a sequência: um estado de tensão, de desgosto, sanado pela experiência prazerosa. 

Foi a esse modelo - a publicidade comercial norte-americana - que Gobbels disse reportar-se ao conceber a propaganda nazista. Com efeito, associada ao relato acima, a frase atribuída a Goebbels, “a mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, insere-se em um circuito complexo de emoções conduzindo ao consentimento. Ironicamente, foi Edward Bernays, judeu austro-americano conselheiro de Woodrow Wilson, que forneceu a Goebbels a engenharia psicossocial que orientou suas bem-sucedidas campanhas. Ao recurso espalhafatoso das grandes reuniões e discursos ruidosos ele associou técnicas sutis de persuasão, valendo-se da imagem, da música, do esporte, de mensagens indiretas. Note-se que Bernays, assim como seu associado Lippmann, partiam da premissa de que os indivíduos, na multidão, abstraem inibições, abandonam padrões morais, perdem a capacidade crítica e racional, tornam-se altamente emotivos, descambam para a violência (Le Bon). Por isso mesmo, as massas, por meios de estímulos e reflexos (Pavlov), precisariam ser condicionadas por um conjunto preciso de opiniões e juízos predeterminados pelos “virtuosos”. Para esses pioneiros da propaganda moderna - pasme-se! -, tais controles seriam essenciais para preservar a democracia. Indiferente à mentira ou à verdade, o objetivo, vender sabonetes ou eleger políticos, é atingir o âmago do público e dirigi-lo para os fins estabelecidos. 

Goebbels conhecia e admirava essas técnicas de controle e, doutor em filosofia, estava bem preparado para acioná-las. Para ele, assim como para Hitler, os atributos das massas populares - falta de memória, estupidez, reduzida capacidade de compreensão, intensa emotividade - as tornavam propícias à persuasão e acarretavam a necessidade de dirigi-las. Poucas ideias simples e essenciais devem ser intensamente repetidas até que o último obtuso as compreenda e delas se lembre. 
Nessa linha de argumentos, os métodos de Bismarck foram também objeto de interesse para Goebbels, tal como a utilização de “turmas especiais de boateiros” (Gerüchtemacher), não tardando ele em organizar dossiês contra adversários e preparando-se para usá-los e distorcer os “fatos” no momento azado. O insulto insere-se nessas técnicas de desmoralização perversa.

Todos esses recursos permanecem vivos nas práticas políticas. A avalanche de imagens insidiosas e de impropérios - mentiroso, corrupto, incompetente, hipócrita - é espantosa e escapa ao mínimo de civilidade. 

O arcabouço teórico e as linhas de ação exploradas atualmente pela propaganda política não têm sequer o mérito da novidade. Descontando-se o rude despudor, as distorções estereotipadas e as premissas diferentes, o recurso à mentira e à repetição persuasiva pode ser rastreado por vários milênios. Platão constitui o ápice desse ideário, embora, antes dele, a tragédia e a historiografia gregas o tenham explorado. Seu tratamento da questão reporta-se especialmente ao adestramento do guardião, o jovem de escol destinado a tornar-se “demiurgo da liberdade”. Sua educação parte da constatação de que, numa polis belicosa, faz-se necessário formar o guerreiro que, em sua gênese, deve unificar predicados contraditórios: doçura para com os de casa, hostilidade com estranhos, articulados ao desejo de conhecimento. O modelo dessa natureza aparentemente impossível é encontrado no cão. A humanidade é parte da physis, dos movimentos constitutivos do universo, ordenados e estabilizados na composição do cosmos pelo demiurgo divino (Timeu), participando de sua dinâmica geradora, entretecida nas coisas e nos indivíduos, em seus corpos e almas, em suas percepções, desejos, saberes, em suas vozes e atos. 

Apesar dos fortes vínculos que o unificam, a formação compósita do cosmos abre-se para a possibilidade de sua ruptura, donde a necessária e constante atenção a sua “sustentabilidade”. No caso do guardião, é preciso cuidar para que não se transforme de cão de guarda em lobo devorador. Essas figuras não formam apenas uma alegoria; elas projetam-se na própria natureza humana, em sua efetiva lhanura e selvageria inatas, passíveis de serem dirigidas. 

O poder das palavras, suas implicações sensíveis e seu controle racional, o impacto que desferem ou sofrem, o modo como se cruzam e se fecundam, determinam a retórica, circunscrevendo o enquadramento necessário à discussão socrática sobre a escrita (inerte) e a oralidade (potente), ao mister de operar racionalmente com esses poderes e não apenas de modo empírico. Além do reconhecimento preciso de seu campo de atuação, definindo tanto as almas visadas quanto as forças capazes de atingi-las, o retor precisa regular o poder da palavra, discernindo a oportunidade para acioná-lo ou retê-lo, contraponteando fala e silêncio, manobrando-o eficazmente. 

Esse horizonte físico-político determina a oposição socrática entre monólogo grafado e conversa falada e também define os todos emergentes na linguagem: esses não se formam, se desenvolvem e se mantêm a partir de uma imperturbável teleologia inerente aos sistemas, anterior e superior às suas partes, mas são gerados, compostos e alterados pelo jogo dinâmico dos “poderes”que nele se entrecruzam. Nesse contexto, que envolve certa margem de indeterminação, torna-se imprescindível a arte - política ou medicina ou retórica- enquanto controle racional dessas forças, baseado no acúmulo e transmissão de conhecimentos.

A importância essencial da linguagem falada atravessa o longo percurso do treinamento do guardião, de recém-nascido a jovem militar especializado. Assim como Sócrates se propôs formar uma polis “em palavras”, também o guardião será produzido “em palavras”. No contexto acima lembrado, a dinâmica produtiva operando na retórica, nem a cidade nem o guardião constituem ficções, mas construções sociais e políticas efetivas. Não por acaso, esse adestramento inicia-se pela fiscalização das histórias contadas às crianças por mães e amas, pelas restrições a poetas, a Homero e Hesíodo, aos temas que poderiam, por exemplo, incutir o medo da morte em indivíduos destinados a serem guerreiros. Nessa exposição, a insistência no poder produtivo da palavra conjuga-se ao vocabulário das artes plásticas com variantes de moldar, pintar, produzir. 

Dessa complicada e muito discutida censura lembrarei apenas um aspecto, a mentira. Após discutir como ela é inútil aos deuses perfeitos, afirma que, aos homens ela pode ser vantajosa, como forma de remédio. Platão joga aí com a polissemia do medicamento - to pharmakon -, ao mesmo tempo remédio e veneno, cuja administração, restrita ao médico, é interditada ao homem comum. Com isso, sua assertiva abre-se tanto para o caráter reversível do mito, pode ser veraz ou falso, como para o monopólio da mentira, prerrogativa da razão de Estado: o estadista pode mentir acertadamente para o benefício da cidade, mas não o homem comum, réu do maior e mais destrutivo dos erros. Com tal privilégio, maquinam-se enganos oportunos, “nobre mentira”, para persuadir mesmo os governantes (resta perguntar quem os persuade).

A essa célebre passagem segue-se uma saga de difícil crença: Sócrates propõe que os guardiães suponham que sua educação tenha sido imaginária, como em sonho, mas que, na verdade, durante todo o tempo estivessem debaixo da terra, sendo aí moldados e nutridos. Quando prontos, nasceriam da terra, a qual, como sua mãe, seria defendida, sendo os compatriotas vistos como irmãos. A essa tradição sobre a autoctonia e unidade ateniense segue-se o mito sobre os componentes da cidade, com a reinterpretação do mito hesiódico das três raças, de ouro, prata e ferro. Diante dessas proposições, o interlocutor de Sócrates pergunta se há algum modo de fazer com que esses mitos sejam acreditados ao que ele admite que a presente geração não o fará, mas sim seus filhos, sucessores e o resto da humanidade, guiados pela fala reiterativa. Aí está a semente da operação repetitiva da propaganda. Resta indicar que esse automatismo é invocado por razões de Estado e não para interesses privativos, sendo estabelecidas cautelas, por exemplo, contra a corrupção pelo dinheiro. 

Resta indicar que a analogia do sonho e do processo educativo tem desdobramentos que nos remetem novamente à exploração publicitária comercial e política tendente a atingir o mais profundo dos processos físicos, psíquicos e sociais, tendo o desejo por alvo. Introduzindo a dinâmica da alma na exposição sobre a gênese do tirano, Platão destaca os desejos desnecessários, ativados nos sonhos, quando a parte racional sucumbe no sono e a parte bestial emerge e satisfaz seu próprio modo de ser, desavergonhado, mentiroso, sanguinário. Ao contrário, o homem sóbrio, saudável, prudente, aplaca sua parte selvagem e desperta a racional com belas palavras e pensamentos, dormindo com visões e sonhos conformes as leis e costumes. Se a concepção platônica dos sonhos antecipa a freudiana, inclusive na questão da censura acima assinalada, é questão alheia a essas notas. Entretanto, vale lembrar que o nexo entre sua concepção de sonho e educação evidencia que os procedimentos nesta preconizados visam a chegar, podemos sugerir, até ao inconsciente. Não será talvez ocioso indicar que Bernays... era sobrinho de Freud.

*
Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular do Departamento de Filosofia da USP e da Unicamp

do blog de Roberto Romano

Jornal da Unicamp

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDFCampinas, 03 de outubro de 2014 a 12 de outubro de 2014 – ANO 2014 – Nº 609

Santa ciência

Pesquisa de doutorado sugere que programa televisivo “sacraliza” avanços científicos


Formada em rádio e televisão pela Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba), Daniella Rubbo Rodrigues Rondelli vem estudando a relação da imprensa com a ciência desde a graduação. Esse interesse se transformou em dissertação de mestrado e teve como desdobramento natural a tese de doutorado intitulada “As (in)certezas da ciência: uma análise das representações da ciência médica no programa Fantástico”, defendida sob a orientação da professora Maria José Rodrigues Faria Coracini, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

Daniella Rubbo partiu de uma hipótese simples: que apesar de a cultura logocêntrica ocidental contrapor ciência e religião como formas antagônicas de conceber o mundo, o discurso da mídia constrói representações de ciência que se aproximam das representações de religião. “O antagonismo na prática científica e religiosa é tomado como pressuposto não porque realmente existam diferenças que separem os dois campos, mas porque ambos têm a pretensão de deter a verdade.”

Inicialmente, a autora da tese quis verificar como a mídia, principalmente a TV, trata a ciência de maneira meio mistificada, sacralizada. Ela observa que o “Fantástico” possui mais de 40 anos de história e por isso foi o programa escolhido para que procurasse entender as relações de poder entre mídia, ciência e público na contemporaneidade. “O recorte temporal foi de um ano, em que colhi 104 reportagens. Como são muitas as matérias de ciências, eu decidi por um recorte mais específico, trabalhando apenas com as de medicina, que têm grande repercussão e são as mais comentadas pelo público leigo.”

Na leitura atenta das matérias, Daniella Rubbo verificou diversos pontos de aproximação entre medicina e religião, que agrupou em três grandes eixos: “ascese”, “promessa” e “sacralidade”, todos eles unidos pela necessidade de “fé”. “Chamo de ascese o eixo em que o médico é colocado como alguém que precisa fazer sacrifícios pessoais, doar algo de si próprio para exercer esta profissão. Há o eixo da promessa de uma vida melhor, desde que o espectador confie e se entregue às regras da medicina. E vemos a marca fortíssima da sacralização, quando até mesmo para o mais desesperançado a medicina promete a salvação, através de um novo procedimento médico e do avanço da ciência.”

A radialista acrescenta que esses três eixos têm como exigência comum a fé irrestrita no conhecimento médico, o que representaria um quarto laço entre ciência e religião. “Um aspecto curioso é que embora a construção desta visão de fé seja a marca do Fantástico, ao observarmos cientificamente o corpus da pesquisa, percebemos que o próprio médico acredita muito naquilo que está falando.”

Histórico
O Fantástico foi ao ar pela primeira vez em agosto de 1973, mesmo ano de nascimento de Daniella Rubbo, coincidência que a levou à constatação de que toda a sua geração encontrou no discurso do programa as referências iniciais para a construção de um ideário sobre a ciência brasileira. “É difícil encontrar alguma edição em que a ciência não tenha sido abordada. E a tendência pela medicina está presente desde o primeiro programa, cuja pauta continha uma entrevista com o cirurgião plástico Ivo Pitanguy; uma matéria mostrando o momento em que o jogador Tostão recebia um laudo médico que o obrigava a abandonar o futebol; e uma reportagem sobre uma técnica de criogenia, desenvolvida nos Estados Unidos, com pretensão de congelar pacientes de doenças ainda sem cura para que, no futuro, fossem tratados.”




Na tese, a autora retrocede aos tempos de Vargas, de JK e do golpe militar para oferecer um histórico sobre as circunstâncias e ações políticas e econômicas que favoreceram a Rede Globo para que se tornasse o mais poderoso grupo de mídia do Brasil. “A década de 1960 vai ser marcada por grandes transformações políticas e sociais, que terão os meios de comunicação como um importante vetor na reconfiguração dos jogos de poder. Antigos grupos de mídia deram lugar a outros, mais alinhados com os interesses econômicos, políticos e militares do momento. Dentre esses interesses havia a necessidade de adaptar uma população tradicionalmente agrária e pouco alfabetizada ao novo contexto urbano-industrial.”

Na visão da pesquisadora, a Globo desenhou seu modelo entre tradição e modernidade, ainda que isso resultasse em contradições como de ser a única emissora a ter um correspondente no Vaticano e, ao mesmo tempo, a primeira a retratar a vida de uma mulher divorciada. “O Fantástico falava da importância da ciência e das grandes descobertas até para que a população deixasse de acreditar tanto no padre e mais no médico. E cumpre até hoje esse papel, embora a condição da população e sua relação com a ciência fosse mudando. Só não muda o programa, um dos mais estáveis da rede e que teve seu horário alterado apenas em meia hora.”

A radialista recorda que o programa sempre foi marcado por um caráter tradicional e respeitoso à religião católica, mas em muitos momentos escapa dessas premissas conservadoras. “Como exemplo, em 1978, o Fantástico exibiu uma gravação de Maria Bethânia cantando ‘Cálice’,  canção de Chico Buarque e Gilberto Gil, ambos exilados pelo governo militar, e que ficou conhecida como um hino de resistência. Da mesma forma, ao longo de sua história podemos encontrar momentos em que o programa abre espaço para outras religiões, como em diversas matérias sobre o médium Chico Xavier ou curas por intermédio de intervenções espirituais.”

Na visão de Daniella Rubbo, essas primeiras reportagens também exemplificam a vocação do Fantástico para tratar a ciência como um espetáculo que promete uma vida melhor, mais desejável e mais segura. “O próprio nome escolhido, ‘Fantástico: o show da vida’, aponta nessa direção. Uma marca ainda mais contundente desta inclinação é seu primeiro jingle, que funciona como uma espécie de declaração de intenções do programa. A composição é do músico Guto Graça Mello e do diretor José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o famoso Boni, homem forte da emissora e idealizador do programa”.

A letra do tema de abertura do Fantástico está inserida na tese de Daniella Rubbo:
Olhe bem preste atenção Nada na mão nessa também Nós temos mágica para fazer Assim é a vida, olhe pra ver Milhares de sonhos, só para sonhar Miragens que não se pode tocar Numa fração de um segundo Qualquer emoção agita o mundo Riso, criado por quem é mestre Sexo, sem ele o mundo não cresceGuerra para matar e morrer Amor que ensina a viver Foguetes no espaço num mundo infinito Provando que tudo não passa de um mito É Fantástico, da idade da pedra ao homem de plástico, o show da vidaÉ fantástico

 
Um médico abnegado
Das 104 reportagens do Fantástico que Daniella Rubbo gravou durante um ano, ela selecionou diversas para o CD que acompanha sua tese de doutorado, no intuito de mostrar momentos do programa em que aparece a divergência entre ciência e fé. Um colaborador fixo e que exerce grande influência sobre os telespectadores é o médico Dráuzio Varella que, na opinião da pesquisadora, ganha no programa uma imagem abnegada, competente e esforçada. “Sua figura remete à de um sacerdote oferecendo a salvação. Há uma matéria versando sobre pesquisas de novos medicamentos em que ele aparece num barco, atravessando o rio Amazonas, como um missionário que abandona todo o conforto da cidade e coloca muito de si para ir atrás dessas curas”.

Daniella Rubbo acrescenta que a cena é do quadro “É bom pra quê?”, série limitada de reportagens produzidas sob o comando de Varella e que se propunha a discutir o uso de produtos caseiros, como plantas e chás, no tratamento de doenças. “O nome do quadro sugere que a reportagem promoverá uma reconciliação entre ciência e senso comum. Porém, essa reconciliação é aparente, já que o próprio apresentador veiculará a segurança do procedimento médico-científico – ‘Do tubo de ensaio ao balcão da farmácia’. Ou seja, as plantas só serão úteis e seguras se passarem pelo crivo da ciência.”

Segundo a autora da tese, ainda que o Fantástico conceda espaço inclusive para manifestações de resistência à hegemonia do conhecimento científico, seus dizeres acabam reafirmando a verdade científica em detrimento de outras possibilidades. “Esse viés do programa está presente na maior parte do material que analisamos, mas se faz particularmente importante quando tratamos da participação de Dráuzio Varella. Por ocupar a dupla função de médico e de comunicador (fazendo-se por vezes de repórter), tende a diminuir a tensão entre o poder exercido pela ciência e o exercido pela mídia, emprestando ao cientista a visibilidade da mídia e ao jornalista, a credibilidade da ciência.”

Nem por isso, Daniella Rubbo deixou de identificar uma reportagem em que a promessa parece ser suplantada ou, pelo menos, sofre resistência das promessas religiosas. A pauta é sobre o milagre, reconhecido pela Igreja, que permitiu a beatificação de Irmã Dulce: foi atribuída à intercessão da religiosa a recuperação de uma mulher após intensa hemorragia durante o parto, depois de passar por três cirurgias e acabar desacreditada pelos médicos. Um padre pediu socorro a Irmã Dulce, colando uma foto da santa sobre o frasco de soro.

Na visão da pesquisadora, esta reportagem parece corroborar a ideia de que a religião tem um poder de interferir sobre a vida das pessoas, apontando, afinal, para a suposta dicotomia entre ciência e religião. “Depreendemos que, enquanto há espaço para a medicina, a religião fica apagada como forma de explicar e interferir no mundo, ganhando espaço apenas quando a primeira atinge seus limites. Por tal via, a religião estaria além, seria mais importante do que a própria medicina e, principalmente, seria incompatível com as verdades médicas.”

Publicação
Tese: “As (in)certezas da ciência: uma análise das representações da ciência médica no programa Fantástico”
Autora: Daniella Rubbo Rodrigues RondelliOrientadora: Maria José Rodrigues Faria CoraciniUnidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Mario, aquele Andrade


Vestida de Preto
Mário de Andrade


Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade. Minha impressão é que tenho amado sempre. Depois do amor grande por mim que brotou aos três anos e durou até os cinco mais ou menos, logo o meu amor se dirigiu para uma espécie de prima longínqua que freqüentava a nossa casa. Como se vê, jamais sofri do complexo de Édipo, graças a Deus. Toda a minha vida, mamãe e eu fomos muito bons amigos, sem nada de amores perigosos.

Maria foi o meu primeiro amor. Não havia nada entre nós, está claro, ela como eu nos seus cinco anos apenas, mas não sei que divina melancolia nos tomava, se acaso nos achávamos juntos e sozinhos. A voz baixava de tom, e principalmente as palavras é que se tornaram mais raras, muito simples. Uma ternura imensa, firme e reconhecida, não exigindo nenhum gesto. Aquilo aliás durava pouco, porque logo a criançada chegava. Mas tínhamos então uma raiva impensada dos manos e dos primos, sempre exteriorizada em palavras ou modos de irritação. Amor apenas sensível naquele instinto de estarmos sós.

E só mais tarde, já pelos nove ou dez anos, é que lhe dei nosso único beijo, foi maravilhoso. Se a criançada estava toda junta naquela casa sem jardim da Tia Velha, era fatal brincarmos de família, porque assim Tia Velha evitava correrias e estragos. Brinquedo aliás que nos interessava muito, apesar da idade já avançada para ele. Mas é que na casa de Tia Velha tinha muitos quartos, de forma que casávamos rápido, só de boca, sem nenhum daqueles cerimoniais de mentira que dantes nos interessavam tanto, e cada par fugia logo, indo viver no seu quarto. Os melhores interesses infantis do brinquedo, fazer comidinha, amamentar bonecas, pagar visitas, isso nós deixávamos com generosidade apressada para os menores. Íamos para os nossos quartos e ficávamos vivendo lá. O que os outros faziam, não sei. Eu, isto é, eu com Maria, não fazíamos nada. Eu adorava principalmente era ficar assim sozinho com ela, sabendo várias safadezas já mas sem tentar nenhuma. Havia, não havia não, mas sempre como que havia um perigo iminente que ajuntava o seu crime à intimidade daquela solidão. Era suavíssimo e assustador.

Maria fez uns gestos, disse algumas palavras. Era o aniversário de alguém, não lembro mais, o quarto em que estávamos fora convertido em dispensa, cômodas e armários cheios de pratos de doces para o chá que vinha logo. Mas quem se lembrasse de tocar naqueles doces, no geral secos, fáceis de disfarçar qualquer roubo! estávamos longe disso. O que nos deliciava era mesmo a grave solidão.

Nisto os olhos de Maria caíram sobre o travesseiro sem fronha que estava sobre uma cesta de roupa suja a um canto. E a minha esposa teve uma invenção que eu também estava longe de não ter. Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de mim e virou crime. Crime não, "pecado" que é como se dizia naqueles tempos cristãos... E por causa disso eu conseguira não pensar até ali, no travesseiro.

— Já é tarde, vamos dormir — Maria falou.

Fiquei estarrecido, olhando com uns fabulosos olhos de imploração para o travesseiro quentinho, mas quem disse travesseiro ter piedade de mim. Maria, essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos do convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. Pôs o travesseiro no lugar da cabeceira, cerrou as venezianas da janela sobre a tarde, e depois deitou, arranjando o vestido pra não amassar.

Mas eu é que nunca havia de pôr a cabeça naquele restico de travesseiro que ela deixou pra mim, me dando as costas. Restico sim, apesar do travesseiro ser grande. Mas imaginem numa cabeleira explodindo, os famosos cabelos assustados de Maria, citação obrigatória e orgulho de família. Tia Velha, muito ciumenta por causa duma neta preferida que ela imaginava deusa, era a única a pôr defeito nos cabelos de Maria.

— Você não vem dormir também? — ela perguntou com fragor, interrompendo o meu silêncio trágico.

— Já vou — que eu disse — estou conferindo a conta do armazém.

Fui me aproximando incomparavelmente sem vontade, sentei no chão tomando cuidado em sequer tocar no vestido, puxa! também o vestido dela estava completamente assustado, que dificuldade! Pus a cara no travesseiro sem a menor intenção de.

Mas os cabelos de Maria, assim era pior, tocavam de leve no meu nariz, eu podia espirrar, marido não espirra. Senti, pressenti que espirrar seria muito ridículo, havia de ser um espirrão enorme, os outros escutavam lá da sala-de-visita longínqua, e daí é que o nosso segredo se desvendava todinho.

Fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite, senão os cabelos (mas juro que eram cabelos macios) me machucavam os olhos. Depois que não vi nada, ficou fácil continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a vida, naqueles cabelos, que maravilha! até que o meu nariz tocou num pescocinho roliço. Então fui empurrando os meus lábios, tinha uns bonitos lábios grossos, nem eram lábios, era beiço, minha boca foi ficando encanudada até que encontrou o pescocinho roliço. Será que ela dorme de verdade?... Me ajeitei muito sem-cerimônia, mulherzinha! e então beijei. Quem falou que este mundo é ruim! só recordar... Beijei Maria, rapazes! eu nem sabia beijar, está claro, só beijava mamães, boca fazendo bulha, contato sem nenhum calor sensual.

Maria, só um leve entregar-se, uma levíssima inclinação pra trás me fez sentir que Maria estava comigo em nosso amor. Nada mais houve. Não, nada mais houve. Durasse aquilo uma noite grande, nada mais haveria porque é engraçado como a perfeição fixa a gente. O beijo me deixara completamente puro, sem minhas curiosidades nem desejos de mais nada, adeus pecado e adeus escuridão! Se fizera em meu cérebro uma enorme luz branca, meu ombro bem que doía no chão, mas a luz era violentamente branca, proibindo pensar, imaginar, agir. Beijando.

Tia Velha, nunca eu gostei de Tia Velha, abriu a porta com um espanto barulhento. Percebi muito bem, pelos olhos dela, que o que estávamos fazendo era completamente feio.

— Levantem!... Vou contar pra sua mãe, Juca!

Mas eu, levantando com a lealdade mais cínica deste mundo!

— Tia Velha me dá um doce?

Tia Velha – eu sempre detestei Tia Velha, o tipo da bondade Berlitz, injusta, sem método — pois Tia Velha teve a malvadeza de escorrer por mim todo um olhar que só alguns anos mais tarde pude compreender inteiramente. Naquele instante, eu estava só pensando em disfarçar, fingindo uma inocência que poucos segundos antes era real.

— Vamos! saiam do quarto!

Fomos saindo muito mudos, numa bruta vergonha, acompanhados de Tia Velha e os pratos que ela viera buscar para a mesa de chá.

O estranhíssimo é que principiou, nesse acordar à força provocado por Tia Velha, uma indiferença inexplicável de Maria por mim. Mais que indiferença, frieza viva, quase antipatia. Nesse mesmo chá inda achou jeito de me maltratar diante de todos, fiquei zonzo.

Dez, treze, quatorze anos... Quinze anos. Foi então o insulto que julguei definitivo. Eu estava fazendo um ginásio sem gosto, muito arrastado, cheio de revoltas íntimas, detestava estudar. Só no desenho e nas composições de português tirava as melhores notas. Vivia nisso: dez nestas matérias, um, zero em todas as outras. E todos os anos era aquela já esperada fatalidade: uma, duas bombas (principalmente em matemáticas) que eu tomava apenas o cuidado de apagar nos exames de segunda época.

Gostar, eu continuava gostando muito de Maria, cada vez mais, conscientemente agora. Mas tinha uma quase certeza que ela não podia gostar de mim, quem gostava de mim!... Minha mãe... Sim, mamãe gostava de mim, mas naquele tempo eu chegava a imaginar que era só por obrigação. Papai, esse foi sempre insuportável, incapaz de uma carícia. Como incapaz de uma repreensão também. Nem mesmo comigo, a tara da família, ele jamais ralhou. Mas isto é caso pra outro dia. O certo é que, decidido em minha desesperada revolta contra o mundo que me rodeava, sentindo um orgulho de mim que jamais buscava esclarecer, tão absurdo o pressentia, o certo é que eu já principiava me aceitando por um caso perdido, que não adiantava melhorar.

Esse ano até fora uma bomba só. Eu entrava da aula do professor particular, quando enxerguei a saparia na varanda e Maria entre os demais. Passei bastante encabulado, todos em férias, e os livros que eu trazia na mão me denunciando, lembrando a bomba, me achincalhando em minha imperfeição de caso perdido. Esbocei um gesto falsamente alegre de bom-dia, e fui no escritório pegado, esconder os livros na escrivaninha de meu pai. Ia já voltar para o meio de todos, mas Matilde, a peste, a implicante, a deusa estúpida que Tia Velha perdia com suas preferências:

— Passou seu namorado, Maria.

— Não caso com bombeado — ela respondeu imediato, numa voz tão feia, mas tão feia, que parei estarrecido. Era a decisão final, não tinha dúvida nenhuma. Maria não gostava mais de mim. Bobo de assim parado, sem fazer um gesto, mal podendo respirar.

Aliás um caso recente vinha se ajuntar ao insulto pra decidir de minha sorte. Nós seríamos até pobretões, comparando com a família de Maria, gente que até viajava na Europa. Pois pouco antes, os pais tinham feito um papel bem indecente, se opondo ao casamento duma filha com um rapaz diz-que pobre mas ótimo. Houvera um rompimento de amizade, mal-estar na parentagem toda, o caso virara escândalo mastigado e remastigado nos comentários de hora de jantar. Tudo por causa do dinheiro.

Se eu insistisse em gostar de Maria, casar não casava mesmo, que a família dela não havia de me querer. Me passou pela cabeça comprar um bilhete de loteria. "Não caso com bombeado"... Fui abraçando os livros de mansinho, acariciei-os junto ao rosto, pousei a minha boca numa capa, suja de pó suado, retirei a boca sem desgosto. Naquele instante eu não sabia, hoje sei: era o segundo beijo que eu dava em Maria, último beijo, beijo de despedida, que o cheiro desagradável do papelão confirmou. Estava tudo acabado entre nós dois.

Não tive mais coragem pra voltar à varanda e conversar com... os outros. Estava com uma raiva desprezadora de todos, principalmente de Matilde. Não, me parecia que já não tinha raiva de ninguém, não valia a pena, nem de Matilde, o insulto partira dela, fora por causa dela, mas eu não tinha raiva dela não, só tristeza, só vazio, não sei... creio que uma vontade de ajoelhar. Ajoelhar sem mais nada, ajoelhar ali junto da escrivaninha e ficar assim, ajoelhar. Afinal das contas eu era um perdido mesmo, Maria tinha razão, tinha razão, tinha razão, que tristeza!

Foi o fim? Agora é que vem o mais esquisito de tudo, ajuntando anos pulados. Acho que até não consigo contar bem claro tudo o que sucedeu. Vamos por ordem: Pus tal firmeza em não amar Maria mais, que nem meus pensamentos me traíram. De resto a mocidade raiava e eu tinha tudo a aprender. Foi espantoso o que se passou em mim. Sem abandonar o meu jeito de "perdido", o cultivando mesmo, ginásio acabado, eu principiara gostando de estudar. Me batera, súbito, aquela vontade irritada de saber, me tornara estudiosíssimo. Era mesmo uma impaciência raivosa, que me fazia devorar bibliotecas, sem nenhuma orientação. Mas brilhava, fazia conferências empoladas em sociedadinhas de rapazes, tinha idéias que assustavam todo o mundo. E todos principiavam maldando que eu era muito inteligente mas perigoso.

Maria, por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus e todo o mundo, aos vinte anos fica noiva de um rapaz bastante rico, noivado que durou três meses e se desfez de repente, pra dias depois ela ficar noiva de outro, um diplomata riquíssimo, casar em duas semanas com alegria desmedida, rindo muito no altar e partir em busca duma embaixada européia com o secretário chique seu marido.

Às vezes meio tonto com estes acontecimentos fortes, acompanhados meio de longe, eu me recordava do passado, mas era só pra sorrir da nossa infantilidade e devorar numa tarde um livro incompreensível de filosofia. De mais a mais, havia Rose pra de-noite, e uma linda namoradinha oficial, a Violeta. Meus amigos me chamavam de "jardineiro", e eu punha na coincidência daqueles duas flores uma força de destinação fatalizada. Tamanha mesmo que topando numa livraria com The Gardener de Tagore, comprei o livro e comecei estudando o inglês com loucura. Mário de Andrade conta num dos seus livros que estudou o alemão por causa dum emboaba tordilha... eu também: meu inglês nasceu duma Violeta e duma Rose.

Não, nasceu de Maria. Foi quando uns cinco anos depois, Maria estava pra voltar pela primeira vez ao Brasil, a mãe dela, queixosa de tamanha ausência, conversando com mamãe na minha frente, arrancou naquele seu jeito de gorda desabrida:

— Pois é, Maria gostou tanto de você, você não quis!... e agora ela vive longe de nós.

Pela terceira vez fiquei estarrecido neste conto. Percebi tudo num tiro de canhão. Percebi ela doidejando, noivando com um, casando com outro, se atordoando com dinheiro e brilho. Percebi que eu fora uma besta, sim agora que principiava sendo alguém, estudando por mim fora dos ginásios, vibrando em versos que muita gente já considerava. E percebi horrorizado, que Rose! nem Violeta, nem nada! era Maria que eu amava como louco! Maria é que amara sempre, como louco: ôh como eu vinha sofrendo a vida inteira, desgraçadíssimo, aprendendo a vencer só de raiva, me impondo ao mundo por despique, me superiorizando em mim só por vingança de desesperado. Como é que eu pudera me imaginar feliz, pior: ser feliz, sofrendo daquele jeito! Eu? eu não! era Maria, era exclusivamente Maria toda aquela superioridade que estava aparecendo em mim... E tudo aquilo era uma desgraça muito cachorra mesma. Pois não andavam falando muito de Maria? Contavam que pintava o sete, ficara célebre com as extravagâncias e aventuras. Estivera pouco antes às portas do divórcio, com um caso escandaloso por demais, com um pintor de nomeada que só pintava efeitos de luz. Maria falada, Maria bêbeda, Maria passada de mão em mão, Maria pintada nua...

Se dera como que uma transposição de destinos... E tive um pensamento que ao menos me salvou no instante: se o que tinha de útil agora em mim era Maria, se ela estava se transformando no Juca imperfeitíssimo que eu fora, se eu era apenas uma projeção dela, como ela agora apenas uma projeção de mim, se nos trocáramos por um estúpido engano de amor: mas ao menos que eu ficasse bem ruim, mas bem ruim mesmo outra vez pra me igualar a ela de novo. Foi a razão da briga com Violeta, impiedosa, e a farra dessa noite – bebedeira tamanha que acabei ficando desacordado, numa série de vertigens, com médico, escândalo, e choro largo de mamãe com minha irmã.

Bom, tinha que visitar Maria, está claro, éramos "gente grande" agora. Quando soube que ela devia ir a um banquete, pensei comigo: "ótimo, vou hoje logo depois de jantar, não encontro ela e deixo o cartão". Mas fui cedo demais. Cheguei na casa dos pais dela, seriam nove horas, todos aqueles requififes de gente ricaça, criado que leva cartão numa salva de prata etc. Os da casa estavam ainda jantando. Me introduziram na saletinha da esquerda, uma espécie de luís-quinze muito sem-vergonha, dourado por inteiro, dando pro hol central. Que fizesse o favor de esperar, já vinham.

Contemplando a gravura cor-de-rosa, senti de supetão que tinha mais alguém na saleta, virei. Maria estava na porta, olhando pra mim, se rindo, toda vestida de preto. Olhem: eu sei que a gente exagera em amor, não insisto. Mas se eu já tive a sensação da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda de preto vestida, fantasticamente mulher. Meu corpo soluçou todinho e tornei a ficar estarrecido.

— Ao menos diga boa-noite, Juca...

"Boa-noite, Maria, eu vou-me embora"... meu desejo era fugir, era ficar e ela ficar mas, sim, sem que nos tocássemos sequer. Eu sei, eu juro que sei que ela estava se entregando a mim, me prometendo tudo, me cedendo tudo quanto eu queria, naquele se deixar olhar, sorrindo leve, mãos unidas caindo na frente do corpo, toda vestida de preto. Um segundo, me passou na visão devorá-la numa hora estilhaçada de quarto de hotel, foi horrível. Porém, não havia dúvida: Maria despertava em mim os instintos da perfeição. Balbuciei afinal um boa-noite muito indiferente, e as vozes amontoadas vinham do hol, dos outros que chegavam.
Foi este o primeiro dos quatro amores eternos que fazem de minha vida uma grave condensação interior. Sou falsamente um solitário. Quatro amores me acompanham, cuidam de mim, vêm conversar comigo. Nunca mais vi Maria, que ficou pelas Europas, divorciada afinal, hoje dizem que vivendo com um austríaco interessado em feiras internacionais. Um aventureiro qualquer. Mas dentro de mim, Maria... bom: acho que vou falar banalidade.

Mário de Andrade 
(1893-1945), nasceu em São Paulo, mostrando desde cedo inclinação pela música e literatura. Seu interesse pelas artes levou-o a realizar em São Paulo, de parceria com Oswald de Andrade, a Semana de Arte Moderna, que rasgou novas perspectivas para a cultura brasileira.Sua obra, essencialmente brasileira, reflete um nacionalismo humanista, que nada tem de místico e abstrato. "Macunaíma", baseada em temas folclóricos é, geralmente, considerada a sua obra-prima.

O texto acima foi enviado por nosso leitor Flávio Pezzini, a quem agradecemos a colaboração.

Conheça a vida e a obra de Mário de Andrade visitando "Biografias

Assim acordei hoje

A TERRA NOS É ESTREITA


A terra nos é estreita. Ela nos encurrala no último desfiladeiro
E nós nos despimos dos membros
Para passar.
A terra nos espreme. Fôssemos nós o seu trigo para morrer e ressuscitar.
Fosse ela a nossa mãe para se compadecer de nós.
Fôssemos nós as imagens dos rochedos
que o nosso sonho levará como espelhos.
Vimos o rosto de quem, na derradeira defesa da alma,
o último de nós matará.
Choramos pela festa dos seus filhos e vimos o rosto
Dos que despenham nossos filhos pela janela deste último espaço.
Espelhos que a nossa estrela polirá.
Para onde irmos após a última fronteira?
Para onde voarão os pássaros após o último céu?
Onde dormirão as plantas após o último vento?
Escreveremos nossos nomes com vapor
carmim, cortaremos a mão do canto para que nossa carne o complete.
Aqui morreremos. No último desfiladeiro.
Aqui ou aqui... plantará oliveiras
Nosso sangue.

(Poema de Mahmoud Darwish traduzido por Paulo Farah.)

Hoje eu acordei assim

Mahmud Darwish

    


Mahmud Darwish ou Mahmoud Darwich foi um dos poetas mais importantes que deram voz à causa palestina no mundo e contribuíram para a construção da identidade da poesia árabe moderna.
    Nasceu em 1941 na aldeia palestina de Al-Birweh, destruída por Israel em 1948 para a ccconstrução em seu lugar da aldeia agrícola de Ahihud.
    Depois da Catástrofe “Al-Nakba”, sua família refugiou-se no sul do Líbano por um ano, depois voltou escondida para a Palestina.
    O poeta morou na pequena aldeia de Der Al-Assad na região de Al-Jalil, em seguida ele e sua família se estabeleceram na aldeia Al Jadida, próxima a sua terra natal.
    Darwish se locomoveu por entre as aldeias de Al-Jalil para estudar o ensino médio, em seguida, viveu na cidade de Haifa onde aderiu ao Partido Comunista, então composto por judeus e árabes.
    Trabalhou no Jornal Al-Etihad e na revista Al-Jadid, que pertenciam ao partido comunista na cidade de Haifa. Neste período começou a escrever poesias e ficou conhecido na Palestina como “um poeta da resistência”. Sua poesia irritava os israelenses, por isso a polícia israelense passou a cercar qualquer aldeia que lhe organizasse uma noite de poesia.
    Darwish sofreu intensa perseguição. Foi preso três vezes pelos israelenses (1961, 1965, 1967), antes de ser submetido à prisão domiciliar devido às suas declarações e atividades políticas.
    Sua obra ao testemunhar a existência de um povo com tradições e história, negava a afirmação da Primeira-ministra de Israel, Golda Meir: “Não há nenhum povo palestino”.
    Em 1972, deixou Haifa e foi para o Egito, onde ingressou na Organização de Libertação da Palestina, e de lá se mudou para Beirute.
    Após a invasão israelense ao Líbano em 1982 e a saída de militantes palestinos do Líbano, seguiu para o Cairo, depois Tunísia e, em seguida, Paris.
    Em 1993 Darwish demitiu-se do Comitê Executivo da OLP em protesto contra o acordo de Oslo, sob a alegação de que: "não é justo (o acordo), pois não prevê o mínimo de identidade aos palestinos”.
    Nos meados da década de noventa, Mahmoud Darwish retornou à Faixa de Gaza, optando depois por permanecer em Ramallah. na Cisjordânia. Criticou os combates entre os palestinos no poema, "Você agora é outro", publicado em junho de 2007.
    Darwish obteve vários prêmios, incluindo o Prêmio Lotus, em 1969, o Prêmio do Mar Mediterrâneo, em 1980, o Troféu Revolução Palestina, em 1981, o Prêmio da Europa para a poesia, em 1981, o Prêmio Ibn Sina na União Soviética em 1982, o Prêmio Lênin, na União Soviética, em 1983, o Prêmio Príncipe Claus (Holanda), em 2004, o Prêmio Al Owais Cultural, dividido com o poeta sírio Adonis, em 2004.
    Publicou diversos livros de poesia entre eles: Carteira de identidadePássaros semasasFolhas da AzeitonaMeus amigos não morramApaixonado da PalestinaAs avesmorrem na GalileiaElogio da sombra superiorPalco de Estado de Sitio e Você agora é outro.
    Mahmoud Darwish dedicou muitos poemas à causa palestina, a resistência e ao seu povo refugiado e injustiçado. Mesmo tendo uma vida difícil ao lado dos outros palestinos, conseguiu escrever sobre o amor, a esperança, o ser humano e a vida.    Darwish faleceu em 2008, em Houston, Estados Unidos, porém permanecerá vivo nos corações e lembranças de todos os palestinos.



















Efêmeros em palavras efêmeras
1.
Vocês que passam com palavras efêmeras,
levem seus nomes e vão embora
tirem suas horas do nosso tempo e vão embora
roubem à vontade do azul do mar e das areias da lembrança
tirem fotos à vontade, e assim vão saber
que não hão de saber
como uma pedra da nossa terra constrói o teto do céu.

2.
Vocês que passam com palavras efêmeras
de vocês vem espada, de nós vem nosso sangue
de vocês vêm fogo e aço, de nós vem nossa carne
de vocês vem outro tanque, de nós vem pedra
de vocês vem a bomba de gás, de nós vem chuva.
Um mesmo céu e um mesmo ar nos cobre
peguem seu quinhão do nosso sangue, mas vão embora
entrem no jantar dançante, mas vão embora
temos que zelar pela rosa dos mártires
temos que viver como a gente quer!

3.
Vocês que passam com palavras efêmeras,
como a poeira amarga, passem onde quiserem, mas
não passem entre nós como insetos com asas
temos o que fazer na nossa terra
temos trigo a criar e regar com o orvalho do nosso corpo
temos o que a vocês aqui não agrada:
temos pedra... e perdiz!
Levem o passado, se quiserem, ao mercado das quinquilharias
devolvam, se quiserem, o esqueleto do passarinho ao prato de porcelana.
Temos o que não lhes agrada: temos o futuro
temos o que fazer na nossa terra.

4.
Vocês que passam com palavras efêmeras,
soquem seus dramas num buraco abandonado e vão embora
voltem atrás o ponteiro do tempo até o bezerro sagrado
ou até o disparo ritmado do revólver!
Temos o que a vocês aqui não agrada, então vão embora
temos o que por dentro vocês não têm:
uma pátria que jorra um povo que jorra uma pátria
que combina com esquecer e lembrar.
Vocês que passam com palavras efêmeras,
é hora de irem embora
de morarem onde quiserem, mas não entre nós
é hora de irem embora
de morrerem onde quiserem, mas não entre nós
temos o que fazer na nossa terra
aqui temos o passado
temos a primeira voz de vida
temos o presente, o presente e o que está por vir
temos o mundo aqui e temos a outra vida
saiam da nossa terra, do nosso deserto, do nosso mar
saiam do nosso trigo, do nosso sal, da nossa ferida
de tudo
saiam das lembranças da nossa memória,
vocês que passam com palavras efêmeras.

Tradução dos alunos de Língua Árabe do professor Michel Sleiman na USP (Universidade de São Paulo) - Alexandre Facuri Chareti, Beatriz Negreiros Gemignani, Camila Alcântara, Renata Parpolov Costa, William Diego Montecinos.















Bilhete de identidade

Toma nota!
Sou árabe
O número do meu bilhete de identidade: cinquenta mil
Número de filhos: oito
E o nono… chegará depois do verão!
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Trabalho numa pedreira com os meus companheiros de fadiga
E tenho oito filhos
O seu pedaço de pão
As suas roupas, os seus cadernos
Arranco-os dos rochedos…
E não venho mendigar à tua porta
Nem me encolho no átrio do teu palácio.
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Sou o meu nome próprio – sem apelido
Infinitamente paciente num país onde todos
Vivem sobre as brasas da raiva.
As minhas raízes…
Foram lançadas antes do nascimento do tempo
Antes da efusão do que é duradouro
Antes do cipreste e da oliveira
Antes da eclosão da erva
O meu pai… é de uma família de lavradores
Nada tem a ver com as pessoas notáveis
O meu avô era camponês – um ser
Sem valor – nem ascendência.
A minha casa, uma cabana de guarda
Feita de troncos e ramos
Eis o que eu sou – Agrada-te?
Sou o meu nome próprio – sem apelido!
Toma nota!
Sou árabe
Os meus cabelos… da cor do carvão
Os meus olhos… da cor do café
Sinais particulares:
Na cabeça uma kufia com o cordão bem apertado
E a palma da minha mão é dura como uma pedra
… esfola quem a aperta
A minha morada:
Sou de uma aldeia isolada…
Onde as ruas já não têm nomes
E todos os homens… trabalham no campo e na pedreira.
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Tu saqueaste as vinhas dos meus pais
E a terra que eu cultivava
Eu e os meus filhos
Levaste-nos tudo excepto
Estas rochas
Para a sobrevivência dos meus netos
Mas o vosso governo vai também apoderar-se delas
… ao que dizem!
… Então
Toma nota!
Ao alto da primeira página
Eu não odeio os homens
E não ataco ninguém mas
Se tiver fome
Comerei a carne de quem violou os meus direitos
Cuidado! Cuidado
Com a minha fome e com a minha raiva!
(1964)

[Tradução de Júlio de Magalhães]

TENEMOS DERECHO A AMAR EL OTOÑO


Para nuestra patria cautiva, la libertad de morir consumida de amor (Mahmud Darwish)





MAHMUD DARWISH


Traducción del árabe por

María Luisa Prieto

TENEMOS DERECHO A AMAR EL OTOÑO

Tenemos derecho a amar el final de este otoño y a preguntarle:
¿Hay espacio en el campo para un otoño nuevo, mientras tendemos sobre él nuestros cuerpos carbonizados?
Un otoño que abate sus hojas de oro. ¡Ah, si fuéramos hojas de higuera, hierba abandonada
para revelar la diferencia entre las estaciones! ¡Ah, si no nos hubiéramos despedido del sur de los ojos para preguntar
lo que preguntaron nuestros padres cuando se lanzaron sobre las puntas de las lanzas! Tal vez la poesía y la plegaria se apiadaran de nosotros.
Tenemos derecho a enjugar la noche de las mujeres hermosas, a hablar de lo que
acorta la noche de dos extraños esperando la llegada del norte a la brújula.
Otoño. Tenemos derecho a aspirar el perfume de este otoño y pedirle a la noche un sueño.
¿Puede enfermar un sueño como los soñadores? Otoño, otoño. ¿Puede nacer un pueblo sobre una guillotina?
Tenemos derecho a morir como queramos, para que la tierra pueda ocultarse en una espiga. 
______________________________________________


Braziu...

do facebook de Eduardo Sterzi

"O Brasil, desde a idade trevosa das capitanias, vive em estado de 
sítio. Somos feudais, somos fascistas, somos justiçadores."
Oswald de Andrade, meu candidato em todos os turnos - 
especialmente no terceiro.

e...


Cap-tirado do Blog de Roberto Romano
de Sponholz

Poeta árabe Mahmoud Darwish

MAHMUD DARWISH
Traducido del árabe por:
María Luisa Prieto

EL JARDÍN DORMIDO
Cuando el sueño la abrazó, yo robé mi mano,
Cubrí sus sueños,
Vi la miel ocultarse tras sus párpados,
Recé por dos piernas milagrosas,
Me incliné sobre los latidos de su corazón,
Vi trigo sobre mármol y sueño.
Una gota de mi sangre lloró,
Temblé...
El jardín duerme en mi lecho.

Fui hacia la puerta
Sin volverme hacia mi alma dormida,
Oí el tintineo antiguo de sus pasos y las campanas de mi corazón.

Fui hacia la puerta
-         la llave está en su bolso
y ella duerme como un ángel después del amor-.
Noche sobre lluvia en la calle y ningún ruido
Salvo los latidos de su corazón y la lluvia.

Fui hacia la puerta.
Se abre,
Salgo.
Se cierra,
Mi sombra se desliza tras de mí.
¿Por qué digo adiós?
Desde ahora soy extraño a los recuerdos y a mi casa.
Bajé las escaleras.
Ni un ruido,
Salvo los latidos de su corazón, la lluvia
Y mis pasos sobre la escalera que desciende
Desde sus manos al deseo de viajar.

Llegué al árbol.
Allí, ella me abrazó,
Allí me golpearon los rayos de plata y clavel,
Allí comenzaba su universo,
Allí se terminaba.
Me detuve unos instantes hechos de azucenas y de invierno,
Me marché,
Dudé,
Luego me marché.
Recogí mis pasos y mi recuerdo salado
Y me marché en mi compañía.

Ni despedida ni árbol.
Los deseos se han dormido tras las ventanas,
Todas las historias de amor
Y todas las traiciones se han dormido tras las ventanas,
Y la policía secreta también...

Rita duerme... duerme y despierta sus sueños.
Por la mañana recogerá su beso
Y sus días,
Luego preparará mi café árabe
Y su café con leche.
Me preguntará, por milésima vez, por nuestro amor
Y responderé:
Soy el mártir de las manos que,
Cada mañana, me preparan el café.

Rita duerme... duerme y despierta sus sueños.
-         ¿Nos casaremos?
-         Sí.
-         ¿Cuándo?
-         Cuando crezcan violetas
En las gorras de los soldados.

He recorrido las calles, el edificio de correos,
Los cafés de las aceras, los clubes nocturnos
Y las ventanillas de venta de billetes.
Te amo, Rita. Te amo. Duerme, yo parto
Sin motivo, como los pájaros violentos, yo parto
Sin motivo, como los vientos débiles, yo parto.
Te amo, Rita. Te amo. Duerme.
Dentro de trece inviernos preguntaré:
¿Todavía duermes
o te has despertado?
¡Rita! Te amo, Rita,
te amo...
________________________________________
(Perteneciente al libro: Bodas (1977)