Dedicatórias e cartas encontradas em livros
revelam histórias emocionantes que mexem com corações e mentes de donos de sebos do Rio
Publicado: 25/11/12 - 19h01
Atualizado: 25/11/12 - 19h02
Sylvio
Massa e a foto da mulher. No sebo Baratos da Ribeiro, ele reencontrou a
dedicatória que escreveu para a falecida esposa em um livro de J.D. Salinger,
em 1966 Leonardo Aversa / Agência O Globo
RIO - Era
uma noite de terça-feira insuspeita em Copacabana. No fim daquele dia, 23 de
outubro, um grupo de frequentadores do sebo Baratos da Ribeiro faria exatamente
o que faz há cinco anos: se espremeria entre as prateleiras abarrotadas da
livraria para mais um encontro do Clube da Leitura, evento quinzenal em que
leem trechos de livros e trocam impressões sobre contos próprios. Quando chegou
a sua vez na roda, o dono do sebo e fundador do clube, Maurício Gouveia, tirou
da gaveta um livro que guardava há dez anos escondido no acervo: um exemplar em
italiano de “Nove contos”, do escritor americano J.D. Salinger.
Não tinha
coragem de vendê-lo. Com as bordas amareladas e as páginas carcomidas, aquele
“Nove racconti” guardava uma dedicatória em português na página de rosto que
Maurício considerava mais bonita do que todo o livro do autor do clássico “O
apanhador no campo de centeio”. Um homem comum — que poderia ser um médico, um
vendedor de sapatos ou um trapezista de circo — declarava seu amor a uma
mulher, em Milão, em 26 de dezembro de 1966. Maurício leu a dedicatória enorme,
que começava com a frase “De tudo que vem de você, permanece em mim uma vontade
de sorrir” e se encerrava com a oração “a vida é um contínuo chegar de
esperanças”. Ao final, subiu o tom para ler o nome do santo: Sylvio Massa de
Campos.
Foi
quando um dos frequentadores do clube soltou um “opa!”. O jornalista George
Patiño conhecia a família Massa, da qual Sylvio era o patriarca. Ele não vendia
sapatos, trabalhava em circo ou morava em Milão: o matemático e escritor Sylvio
Massa de Campos estava vivo, trabalhara a vida toda na Petrobras, tinha 74 anos
e morava logo ali, no Leblon.
— Tem
certeza? — perguntou Maurício.
— Trago
ele aqui no próximo encontro — prometeu George.
Feito. No
dia 6 de novembro, um senhor de cabelos brancos, sorriso fácil e porte altivo
entrou no sebo acompanhado de duas filhas e três netos. Emocionado, recebeu das
mãos de Maurício o livro perdido. Releu a dedicatória em voz alta, com pausas
longas entre uma frase e outra, o que só aumentava o suspense na livraria,
entrecortado pelo ruído dos netos inquietos. Depois de ser longamente
aplaudido, contou aos novos colegas a história por trás daquela mensagem.
Em 1966,
ele fazia mestrado em Matemática em Milão com uma bolsa do governo brasileiro.
Lá, conheceu uma italianinha de nome Febea, que tinha concluído os estudos em
Literatura em Londres, e acabava de retonar à Itália. Quando ela comentou que
conhecia José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto, e que adoraria aprender
português para ler Guimarães Rosa, Sylvio se apaixonou na hora: apesar de trabalhar
com algoritmos, era na literatura que descansava seus teoremas. Prestes a
terminar a pós-graduação, no entanto, logo voltaria ao Brasil. O amor foi
construído à distância.
— Nosso
namoro durou um ano, 136 cartas, nove livros, dois telegramas e um telefonema —
contou Sylvio, para suspiro coletivo da plateia, e espanto das filhas, que não
conheciam todos aqueles números. — Naquele tempo, dar um telefonema era uma
fortuna. Esta dedicatória escrevi no dia do meu aniversário, já doido por ela.
Eu nem sei como perdi o livro, acho que foi numa mudança nos anos 80.
Um ano
depois, Febea veio morar no Brasil, e Sylvio montou um apartamento no Méier
para ela. Tiveram duas filhas, Isabella e Gabriella — que a essa altura se
debulhavam em lágrimas na livraria —, e viveram felizes para sempre. Até que um
câncer levou Febea aos 41 anos de idade. Sylvio nunca mais se casou.
— A arte
de viver é a arte de acreditar em milagres, disse o poeta italiano Cesare
Pavese, e se hoje eu estou aqui é porque ele está certo. Febea foi a pessoa que
eu amei mais profundamente em toda a minha vida. E ela está presente aqui,
nessas cinco pessoas que fizemos, nossas duas filhas e três netos. Esse é o
milagre — declarou Sylvio, lembrando, ao final, uma frase que ouvira do neto
quando ele tinha 4 anos, e que levava como mantra de vida: “Vovô, nada é
grave.”
Na rotina
dos livreiros de sebos, dedicatórias anônimas aparecem com muita frequência.
Mais até do que os exemplares usados de “O Xangô de Baker Street”, de Jô
Soares, um campeão nacional em rotatividade. Os livros já chegam com cantadas,
desculpas, felicitações, despedidas, malfazejos.
— O livro
usado traz uma história que muitas vezes é mais interessante do que aquela que
ele conta. Aqui na Baratos nós tínhamos uma caixinha para guardar os objetos
encontrados dentro das páginas, como cheques, receitas médicas, ingressos de
cinema, flores, contas, fotos... Daria uma exposição — comenta Maurício, que
também guardou por algum tempo dois livros trocados entre amigos, com
dedicatórias irônicas em que tentavam dissuadir o outro das suas convicções
políticas (um era de direita; o outro, um anarquista convicto).
Mas
acabou vendendo os exemplares. É da natureza da profissão: o livreiro não é um
colecionador, mas um comerciante.
— Todo
sebo começa do mesmo jeito, quando a pessoa precisa vender os próprios livros.
Esta é a diferença de um livreiro para um colecionador. Só o livreiro tem
coragem de se desapegar. Ele sabe que os livros que são de verdade voltam. Já
encontrei livro que tinha sido meu em acervo que fui comprar. Todo lote sempre
está cercado de histórias, seja uma morte, uma herança, uma mudança repentina
de casa, de estilo de vida — explica Marcelo Lachter, que começou a vender
livros usados há 14 anos e hoje é dono da Gracilianos do Ramo, um sebo virtual.
Mesmo
defendendo o caráter comercial do ofício, Marcelo tem um “Nove racconti” para
chamar de seu: há seis anos, guarda na gaveta um exemplar de “Recortes”, livro
de ensaios de Antonio Candido publicado em 1993, na esperança de devolvê-lo à
família do antigo dono. A história teve início em 2006, quando Marcelo recebeu
o telefonema de uma moradora da Barra da Tijuca, interessada em se desfazer da
biblioteca do marido, morto meses antes. Como era uma coleção especializada em
Humanas, área com muita procura, Marcelo arrematou o lote todo. Antes de fechar
negócio, no entanto, a viúva fez um pedido: caso ele encontrasse ali perdido um
exemplar com uma dedicatória do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan ao marido,
que devolvesse o título. Ambos tinham sido amigos de infância, perderam o
contato e retomaram pouco antes de Malan tornar-se o braço forte de Fernando
Henrique Cardoso.
Marcelo
encontrou o livro e a dedicatória: “Meu melhor, apesar de distante, amigo.
Espero que você goste deste ‘Recortes’, deste gênio literário e excepcional
figura humana que é Antonio Candido. Precisamos ler coisas como estas para que
não esqueçamos nunca de que há muito mais coisas na vida e no mundo que o nosso
trabalho e nossas pequenas procupações cotidianas. Feliz aniversário, um abraço
deste amigo e saudoso, Pedro Malan.” Mas perdeu a viúva de vista.
Outra
história que aguarda um desfecho parecido é a de Nice Motta, de 46 anos,
livreira há dez. Assim como Marcelo, Nice desistiu de uma loja física para se
dedicar às vendas pela internet, suporte que salvou da falência milhares de
livreiros no país, através do sucesso de sites como o Estante Virtual. Dona da
Bola de Gude Livros, um acervo que ocupa 98% do seu apartamento na Vila da
Penha, Nice é ainda mais romântica do que os colegas livreiros: ela embarga a
voz cada vez que se depara com um fragmento de história perdida nos livros que
compra e vende. É mais metódica também. Os objetos encontrados nos livros são
reunidos numa caixa que ela guarda como um pequeno museu alheio.
Em meio
aos objetos, há fotos, desenhos infantis, ingressos de espetáculos e até um
passaporte para o Museu do Holocausto, na Alemanha. Há uma carta bem alegre:
“Esta porra foi concebida pelo maior amigo putinho, mas com
carinho. Uma beijunda e um abraçaralho deste que te escreve,
com muito amor, 27/10/86, Edinho”); e uma muito triste (“À amiga Katia: cursei
faculdade e não terminei, namorei cinco anos e não me casei, escrevi um livro e
não publiquei. Minha vida segue em frente, sempre pela metade. Wagner, 73.”
Mas a
pepita é um livro encontrado por ela em 2007: “O poder do jovem”, best-seller
de autoajuda do parapsicólogo Lauro Trevisan. O exemplar tem duas dedicatórias.
Uma escrita nas costas da primeira página: “Bruno, eu vi este livro e achei que
você ia gostar. É coisa de mãe, fica tentando adivinhar o gosto do filho, eu
queria te dar o mundo, mas é melhor você descobrir com a ajuda deste livro o
seu mundo inteiro. Estou sempre aqui, filho, conte comigo, sua mãe, beijos, te
amo, te amo e te amo, Rio, 15/03/02.”
Seria só
uma mensagem emocionada, não houvesse a segunda, na página seguinte: “Rafael,
este livro foi o último presente que eu dei para o Bruno, ele não chegou a ler.
Como eu sei que ele te adorava, gostaria de dar a você, leia por ele e por
você, com carinho, Clara, 15/03/06.”
— É muito
emocionante pensar no amor desta mãe, que o filho morreu, e que ela teve o
carinho de dividir o amor com o amigo do filho. Eu sou mãe, e sei como é inconcebível
pensar na perda de um filho. Se ao menos eu pudesse repará-la em relação à
perda do livro... — diz Nice, sonhando com um acaso que a coloque no caminho
daquela mãe. — Trabalhar com livros é apaixonante. O livro não é só a história
que o autor conta, mas a história que o antigo dono também conta.
No início
deste ano, Nice encontrou outro volume de “O poder do jovem”, que ela ainda
está pensando se vai para a caixinha ou não. A mensagem na folha de rosto diz o
seguinte: “Para o meu querido neto Fábio conservar à sua cabeceira, e enfrentar
a caminhada da vida sempre forte! E vencedor! 05/88, vovó Abigail Araújo.” Por
enquanto, vai ficar lá.