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Vera
Malaguti: A barbárie do capital e suas táticas de perpetuação
por
João Castro - 27.2.13
A dominação imperialista em
nosso país “além de desmanchar o Estado previdenciário, investe no Estado
penal. Aquele pessoal que deixa de ser assistido socialmente, passa a ser
assistido na prisão”. Essa é a opinião de Vera Malaguti Batista, socióloga,
doutora em Medicina Social pelo Instituto de Medicina Social (UERJ) e
secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) [1]. Numa
entrevista à AND, ela falou de criminalidade, segurança pública, sistema penal,
meios de comunicação, entre outros temas, sempre com uma visão crítica a
respeito do que ela chama de “barbárie”, principalmente em termos da violência
e criminalização da pobreza.
Há quem diga que a
civilização ocidental vive um momento de progresso e civilidade frente ao
passado vergonhoso de guerras, epidemias e ignorância. Ainda podemos ouvir as
vozes insistentes dos arautos do livre mercado argumentando que o mundo
globalizado traz em si “coisas boas” como “cidadania”, “direitos humanos”,
“liberdade”. Todos estes termos são, na verdade, usados pelo imperialismo para
por em prática o seu contrário: exploração, espoliação, escravização e opressão
de uma parcela cada vez maior da população dos países semi-coloniais, como o
Brasil.
Criminalidade: mal maior?
A criminalidade não deve ser
defendida, sob qualquer pretexto. Contudo, nota-se que ela vem sendo
tendenciosamente apresentada como sendo “a grande violência”, ou o aspecto
principal desta. Os discursos — tanto de direita quanto da esquerda oportunista
— socam com vigor a superfície do problema, não chegando sequer a dar um leve
sopro na face da profunda violência cometida pelo sistema capitalista contra o
povo.
— Esse é o assunto principal
da gente — conta Vera Malaguti — O neoliberalismo, além de desmanchar o Estado
previdenciário (o welfare state), investe no Estado penal. Aquele pessoal que
deixa de ser assistido socialmente, passa a ser assistido na prisão. O
neoliberalismo cria a violência e cria a criminalização da pobreza. O cara
resolve ser camelô, por exemplo, porque não tem emprego. Um problema social do
trabalho que o discurso neoliberal — incorporado, por exemplo, pelo César Maia
— vai dizer que é “crime organizado”.
Ela prossegue:
— A gente diz que essa fase
do capitalismo é extremamente violenta. E principalmente na periferia do
capitalismo produz violência, barbárie e criminalização. Então você pega o
menino que está soltando foguete e classifica como “traficante”. A partir daí,
ele vai passar por um processo de brutalização que, no final, ele realmente
torna-se uma “pessoa irrecuperável”.
Toda a criminalização da
pobreza gera miséria para as massas e lucros para as classes dominantes.
Segundo Vera, o medo produzido pela indústria do crime permite a
comercialização de uma enorme gama de produtos: sistemas de escuta, radares
para automóveis, alarmes para as mansões dos magnatas... Acuada, a classe média
endossa a repressão aos pobres. E o sistema se aproveita disso — e vem se
aproveitando há séculos — para combater os movimentos populares. Vera comenta:
— Na periferia do capitalismo
— com toda a herança da escravidão, com a reforma agrária que nunca foi feita,
com pouquíssimo Estado previdenciário — a precariedade do trabalho é maior.
Tudo numa perspectiva de criminalizar tudo. Criminalizam, por exemplo, o
movimento dos sem-teto: seus integrantes recebem depois algum rótulo, como o de
“traficantes”. Uma coisa que tem que ficar claro é o seguinte: não é que a
pobreza produza criminalidade; a pobreza é criminalizada. A estratégia de
sobrevivência do pobre é criminalizada. Quer dizer: tudo é crime, menos
entregar para o FMI o superávit primário da nação inteira. O medo mantém o
controle social truculento mantendo a classe média com medo, para que ela não
reflita sobre as razões.
Em sua análise, Vera não
deixa de enfatizar o caráter de classe da repressão do Estado: — No meu livro
[2], eu pego alguns processos de adolescentes envolvidos com droga e mostro que
o problema em si não é a droga, é o tipo de adolescente. Se um menino de classe
média for pego com a mesma quantidade de um da favela, vai ter um destino e um
discurso. O problema é o menino. Poderiam dizer: “Estamos com problema de
drogas. Então, vamos investir muito em saúde pública”. Mas não... Uma guerra é
que vai criar uma disciplina do medo, a polícia vai matar mais pobres e a
classe média vai aplaudir. Vai criar uma estrutura de campo de concentração na
periferia. A periferia hoje tem toque de recolher. A maneira de ela se
movimentar lembra um campo de concentração. Sobre a questão das drogas, ela
continua:
— Estou trabalhando com o
tema “drogas” há dez anos e estou notando que as bocas (locais de venda de
droga) estão empobrecidas, porque não tem muito mais aquela coisa de ir no
morro comprar droga. Hoje há toda a rede de “estica” que leva em casa.
Os ardis do monopólio dos
meios de comunicação
Podem-se ler (ou ver), todos
os dias, notícias sobre crimes, assassinatos, seqüestros. No monopólio dos
meios de comunicação, toda a culpa pelos tormentos sofridos pela população
recai sobre a tal criminalidade. O pânico, institucionalizado, prepara o
terreno para um “clima de guerra”: moeda legitimadora da ação repressiva.
— A televisão hoje é a grande
protagonista da questão penal — argumenta Vera — É só olhar o Jornal Nacional.
Os meios de comunicação pautam a polícia hoje. Eles criam a demanda por
repressão e a legitimação dos excessos. Você apresenta, por exemplo, três
matérias com o Fernandinho Beira-Mar e depois entra na favela matando dez
pessoas. De vez em quando, tem de botar um colarinho branco na fogueira para
legitimar o sistema penal. Em São Paulo, eu vi que estavam fazendo cerca de mil
prisões semanais. Como o sistema penal vai dar conta disso? A mídia é
fundamental para manter esse consenso.
A situação carcerária é outro
ponto fundamental para os estudos do ICC. De acordo com Vera Malaguti, o Estado
penal serve de depósito de parte da massa desassistida pelo desmonte do estado
previdenciário. Aqueles que se levantam contra todo o sistema de exploração são
devidamente criminalizados.
— É o conceito de barbárie —
diz Vera — A produção de barbárie vai fazer [Hernán] Cortéz e a conquista da
América parecerem brincadeira. Com esse negócio de Estado penal, a ascensão da
população penal é impressionante. E, além disso, você cria a lei de crimes
hediondos, que sempre acaba caindo sobre as populações mais pobres. A prisão é
uma máquina de diferenciar ilegalidades: ilegalidade dos pobres vai para a
prisão, ilegalidade dos ricos vai para a terapia, penas alternativas...
Criou-se uma superpopulação penitenciária e tudo quanto é direito para os
presos as pessoas acham absurdo. As pessoas tem uma visão de prisão como sendo
quase uma masmorra inquisitorial. Aí vai se criando dentro da prisão um
ambiente de barbarização.
O vazio discurso da falsa
esquerda
De acordo com Vera, a recente
conjuntura eleitoral — com a eleição de Luís Inácio, principalmente — trouxe à
tona uma unidade de discurso nas plataformas penais dos candidatos da direita e
da esquerda oportunista. Como sempre, ninguém ousou ir mais fundo no problema
da violência, identificando a exploração capitalista como grande causa de
nossos males. Em alguns dos governos desta “esquerda”, a despeito de todo
discurso de “respeito aos direitos humanos”, matou-se muito, conforme aludiu
Vera Malaguti:
— A polícia está matando
1.200 garotos por ano, no Rio de Janeiro. No governo Benedita [da Silva] passou
de 450 para 900. E com a entrada de Garotinho e Rosinha, explodiu para 1.200.
Ninguém diz: “Temos de mudar o modelo econômico”. Pelo contrário, isso serve
para todo mundo ficar dizendo: “Não tem polícia”, “A polícia é corrupta”. E não
tem conversa: nesse atual modelo, vai aumentar a insegurança, a barbárie.
Ela continua:
— Escrevi um artigo chamado A
estrela da morte, que saiu no Jornal do Brasil. Eu falava do PT, do final do
governo de Benedita. E tinha o Luis Carlos Soares, com todo aquele discurso
sociológico, delegacia legal... E a polícia estava matando mais do que nos
tempos do general Newton Cerqueira! Aí vem o discurso da “impunidade”, que a
gente chama da “esquerda punitiva”: “Ah, o problema é impunidade”. Como se num
capitalismo desses pudesse haver justiça social no sistema penal. Aí você vê um
monte de “xerifes” surgindo: Denise Frossard, deputada mais votada no Rio de
Janeiro, por exemplo.
E Vera fala de outros
“xerifes”, tão espetacularizados quanto aqueles produzidos pelo cinema ianque:
— O poder mais assustador para mim que está surgindo é a santificação do
Ministério Público. Eu até pergunto para os juristas de onde vem a “unção” do
Ministério Público: estudou na mesma faculdade do delegado, do defensor
público, do juiz... É um pouco a coisa de a gente reproduzir os esteriótipos
inquisitoriais de nossas matrizes ibéricas, de olhar o crime com um olhar
moral. Não é assim: “O criminoso é quem eu determinei na lei”. E ponto. Não que
o criminoso seja mal. No entanto, hoje quem combate o crime é o portador da
virtude no discurso moral. Outro dia eu vi na TV uma promotora de arma na mão.
É a nova polícia! Prestem atenção no Ministério Público. Há uma disputa pelo
poder de polícia.
E falando de xerifes e de
cinema... Não é de surpreender que as elites, também em questão de segurança,
espelhem-se no modelo ianques.
— Há cada vez mais a coisa
espetacular, o policial vai com a televisão, bota aquele gorro. Tudo baseado no
modelo americano. Nossa política criminal de drogas segue o modelo ianque. Na
Europa é diferente, no Irã é diferente... No Afeganistão, os Talibãs tinham
acabado com a produção de ópio; com a invasão do USA, ela voltou. Há uma
produção cultural para sacralizar o FBI. E eles investem muito em trocas de
informação.
Viva Rio, “direitos
humanos”, “cidadania”...
Embaladas pelo discurso dos
meios de comunicação, a classe média pede paz quando sente a violência morder
seus calcanhares. Enquanto matarem somente os “favelados”, tudo bem. Mas quando
meninos ou meninas bem nascidos sofrem uma violência, organizam passeatas,
clamam pelo desarmamento, ouriçam suas ONGs. E tudo continua na mesma.
— Movimentos como o Viva Rio,
para mim, não têm nenhuma eficácia no combate à violência — critica Vera—
Talvez só pelo fato de que algumas ONGs vão ganhar um monte de dinheiro, que
vai estar ligado a um sistema de publicidade que também vai ganhar muito
dinheiro... Igual à campanha de Paz: cada vez que as elites fazem passeata pela
paz, pode esperar que se vai matar no morro. A paz no Iraque que me interessa,
por exemplo, é quando as milícias ganharem dos USA. Não haverá paz para a
classe média numa sociedade de classes nessa fase violentíssima do capitalismo.
A secretária do ICC se mostra
bastante crítica diante da banalização de conceitos como “direitos humanos” e
“cidadania”.
— Agora tudo é cidadania (eu
chamo de “ciladania”). Cachorro fazer cocô na rua é cidadania! Cidadania, para
mim, é protagonismo, poder. Tem um livro de um italiano que destrói esse
conceito do direito liberal. Direito é força. Ele pega uma correspondência
entre o jurista Karl Schmidt (que depois virou nazista) e Walter Benjamin. Eles
diziam que direito é poder. Já a luta pelos direitos humanos na América Latina
era uma coisa que tinha a ver com o momento da ditadura. Hoje em dia você tem
uma proliferação de discursos sobre direitos humanos, mas quanto mais se fala
disso mais se mata. É um paradoxo do âmago do liberalismo. O discurso dos
direitos humanos escorre pelas mãos porque o sistema é barbárie.
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[1] Vera Malaguti Batista fala um pouco do ICC:
“É um instituto para pensar na “questão criminal”. Foi feito quando a gente
saiu do segundo governo Brizola, em 1994, que foi um momento muito emblemático.
Nós fomos derrotados pela “questão criminal”, mas também era muito importante
neutralizar aquela força política que era o Brizola. Foi o ano que o
conservadorismo entrou no Rio de Janeiro. Aí a gente resolveu parar para
pensar. Presidido pelo Nilo Batista, temos um mestrado na Universidade Cândido
Mendes, uma linha de publicações e promovemos seminários”.
[2] BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos
fáceis: Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora
Revan, s/d.