Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

sexta-feira, 12 de junho de 2020





Marta Bellini
20- 05- 2020
O Brasil não perdeu seu ranço aos pobres, negros, indígenas, mulheres, imigrantes não brancos. A terra brasilis nasceu da colonização perversa dos desejos e rapina branca europeia. Das rapinas o exemplo da devastação da arvore chamada pau-brasil. Em um século, os portugueses levaram mais de cem mil toneladas da planta, retiradas da Mata Atlântica. Mais tarde, em 1760, com o maior roubo de ouro. A expressão "santo do pau oco" vem das estátuas de madeira, ocas, para esconder o ouro traficado. Nada diferente do Brasil do século XXI. Quantas plantas medicinais são furtadas da floresta amazônica? Quantos pássaros? Vejam a história desses roubos no livro de Warren Dean, A ferro e fogo. História da devastação da Mata Atlântica.
A população indígena, a negra, os imigrantes, as mulheres das regiões roubadas são igualmente rapinadas. Perdem pelo roubo direto, suas terras e cultura material, suas práticas religiosas, práticas culinárias, perdem a própria comunidade. De 1500 a 2020.
Ao lado desta infeliz trajetória, as estratégias de humilhação e eugenia estão a postos no país. Sabemos das humilhações políticas; elas são historicamente presentes no Brasil. Um vencido é satirizado pelo vencedor. Na Alemanha nazista, os homossexuais tinham que andar com uma estrelinha cor-de-rosa no casaco. Nas torturas de prisioneiros e prisioneiras, os órgãos genitais eram expostos e objeto de violência. Os ditados mostram uma parte dessa humilhação. No trânsito, alguém fala, "Só podia ser mulher". Na escola, outro diz, "Coitadinho, não aprende, tem cabeça grande". O corpo humano é sempre referência para a humilhação. Peituda, barriguda, pernas finas, gordinha, preta, amarela e por aí criamos processos perversos e sociais de humilhação empobrecendo o espaço de convivência e também, gerando a exclusão social.
A eugenia é parte desta estratégia de humulhação; é a estratégia de eliminar os feios, os defeituosos, os negros, os indígenas, imigrantes, não escolarizados entre outros. No Brasil a eugenia vigorou desde o fim do século XIX e, nos anos de 1920 a 1930, as teorias da eugenia foram representadas pelo médico Renato Khel (1889 – 1974) que conquistou Gustavo Vianna, no Rio Grande do Sul e Roquette Pinto no Rio de Janeiro para o projeto eugenista no país.
Renato Khel fazia testes com crianças surdas, deficientes. Outros promoviam a esterilização de grupos de indígenas, negros, imigrantes asiáticos, mulheres negras, asiáticas, deficientes para que não levassem o mau corpo para as gerações seguintes. A ideia de limpeza étnica levava a ditados como "é pobre, mas é limpinho". Esta frase até hoje utilizada por brasileiros vem da eugenia racista na década de 1930.
As elites das cidades faziam concursos de garotas mais bonitas. Ganhavam as loiras, de olhos claros ou como diziam os eugenistas, "as boas procriadoras". Não é por acaso que, nas décadas de 1930 e 1940, a tinta loura para cabelos fez muito sucesso, inclusive porque o cinema estadunidense utilizou esse estratagema, loura, branca e bonita (magra).
Bem, pergunto, "a eugenia desapareceu"? Os ditados ainda usamos, e a prática também. A crise sanitária provocada pelo covid-19 mostra, subliminarmente, a prática eugenista. Vejamos como ela ocorre sem nossa consciência da estratégia. O atual presidente diz "se todos forem infectados, todos ficarão imunizados". Todos sabemos que não! Um fazendeiro só imuniza um rebanho de gado, se forem todos vacinados. Se este fazendeiro deixar a infecção correr a solta, perderá seu rebanho. Imunização apenas ocorre com vacina. Ora, nos humanos, essa prática preconizada pelo presidente do Brasil é a mesma dos eugenistas.
Entre 1932 a 1972, nos EUA, em Tukesgee, Alabama, um grupo de cientistas, sem informar a finalidade da pesquisa, fez de 600 homens negros, cobaias que foram infectadas com sífilis para estudo do processo da doença. Apenas 74 homens sobreviveram e 40 mulheres foram infectadas pelos maridos. Entrar em contato com uma bactéria ou vírus não imuniza. Provocamos a morte.
Igualmente a declaração para usar a cloroquina, droga utilizada para malária e a doença autoimune, lúpus. Mesmo nessas doenças, a cloroquina é administrada com muito cuidado porque provoca alterações drásticas no sistema cardíaco. Como exemplo, em 1976, o AZT foi recomendado para a AIDS. Mas esta droga provocava hemorragias. Não há panaceia dos céus para doenças complexas. Há, sim, uma prática muito empregada, a de acelerar as mortes de já debilitadas pessoas. Coincidentemente, os mortos são podres, deficientes, negros, indígenas (já dilacerados pelo roubo e fogo em suas terras), imigrantes.
Estou terminando esta coluna na terça-feira, dia 13/5, 2020, quando o número de mortes pelo covid-19 é de 881, além da subnotificação. Até sua publicação passaremos de 1000, infelizmente. A liberação de academias, cabeleireiros, barbeiros nesse mar de pandemia vai aumentar, sim, o número de infectados, mas não de imunizados. Hoje, também, leio o texto de Maíra Mathias e Raquel Torres, no site Outras Palavras. Neste, discutem a política consciente de extermínio do governo federal pelo eterno discurso da imunidade de rebanho do presidente, para quem 70% das pessoas "vão se contaminar de qualquer jeito". Pesquisadores da USP e da Universidade Federal de Brasília já estimam 1,8 milhão de mortos no Brasil.
Morrerão idosos mais pobres, indígenas, mulheres trabalhadores, imigrantes, desempregados. Sobrarão as elites?
É ou não EUGENIA?

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.
Fonte: Redação Jornal do Porto

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