Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

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ENTREVISTA
A Gazeta do Povo publicou essa entrevista, mas cortada, retaliada. Aqui está inteira.

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Leonardo Ferrari é psicanalista com consultório em Curitiba e professor na Universidade Positivo, das disciplinas de Psicologia e de Estética nos cursos de Comunicação Social. Coordena também o Grupo de Estudos de Educação, Comunicação e Psicanálise e o Laboratório de Criatividade no curso de Publicidade e Propaganda desta Universidade.


Christian Schwartz  - Num belo livro, Lições dos mestres, o erudito George Steiner fala de certa dimensão, a “da troca, a de um Eros de confiança recíproca e, de fato, de amor”, que seria essencial às artes de ensinar e aprender. Esse é também o tema d’O banquete, de Platão, dileto discípulo de Sócrates. Tal dimensão da pedagogia ainda é possível na educação dos universitários de hoje?

Leonardo Ferrari - Em 1914, a direção do ginásio em que Freud estudou lhe pediu um escrito para comemorar o cinquentenário da escola. Ele escreveu, então, um de seus mais belos textos, chamado “Sobre a Psicologia do Colegial” (presente no volume 11 de suas obras completas na nova edição da Cia. das Letras). Nele, Freud conta o reencontro dele, adulto, com um antigo professor, pelas ruas da cidade. Desse encontro resulta uma questão fundamental: o que vale mais na relação entre aluno e professor, nessa relação transferencial? A ciência transmitida, o conhecimento repassado, o saber, ou a personalidade do professor que, de algum jeito, marcou a vida do aluno? Freud vai responder de um modo inquietante: o encontro de um professor com um aluno e vice-versa não é nunca um primeiro encontro; é um reencontro. Por isso os inevitáveis mal-entendidos, confusões e trapalhadas que podem acontecer. Um professor não é só professor para um aluno e um aluno não é só um aluno para um professor. É como se nessa relação aparentemente a dois, estivessem quatro, cinco, seis outras pessoas – foi o que Freud denominou de “condensação” em sua análise dos sonhos. Ora, aqui já se pode evidenciar que, se há amor nesse relacionamento entre professor e aluno, certamente não é o amor imaginário, o amor no sentido ingênuo, a dois, romântico – esse que acaba virando tema de curso para ensinar os professores a serem mais amorosos em sala de aula. É, sim, o amor de transferência. Poderá ou não ser construído pois não depende só da vontade ou da preparação de ambos, mas também do inconsciente de cada um. Ou seja, ele não é automático, não está dado em uma lista de nomes denominada “turma”, tampouco em uma nota ou conceito de avaliação. Um exemplo disso é o livro que trabalhamos em nossos estudos e que se chama “O Infante de Parma – A Educação de um Príncipe Iluminista” de Elisabeth Badinter. Lá está a família real do ducado de Parma, na Itália, em pleno século XVIII, contratando os dois melhores professores da época, entre eles o renomado filósofo Condillac, para educar seu filho nos trilhos do Iluminismo, ou seja, da razão acima de tudo. Entretanto, a realização do ideal da melhor educação não acontece. Pior, o aluno sai dos trilhos. Quando se torna príncipe depois da morte do pai, ele vai restabelecer os Tribunais da Santa Inquisição nos territórios de seu ducado, entrando na história com o apelido de “príncipe carola” – exatamente o contrário do príncipe iluminista que seus mestres planejavam produzir. Por que aconteceu isso? Porque o inconsciente não pode ser governado por ninguém, nem por reis, princesas, reitores ou diretores – não se legisla nem se decreta sobre ele. Lacan vai denominar esse desencontro que acontece todos os dias em sala de aula, de “aturdito”, ou seja, uma palavra que contém duas, “aturdido”, perturbado, atarantado, e “dito”. Essa impossibilidade de controlar o inconsciente decorre também do fato de termos aí dois seres falantes, o que introduz aí a complicação da linguagem. Os bichos, que já nascem sabendo o que fazer da vida, não falam, não se inquietam com essa coisa denominada universidade. No Banquete de Platão, há um general no auge de sua vida, Alcebíades, que está interessado em alguém que não lhe quer do jeito que ele gostaria, o feíssimo Sócrates. Como entender esse desencontro? Para descrever o estranho fascínio que Sócrates exerce sobre ele, Alcebíades usa a metáfora de uma estátua horrível, chamada pelos gregos de “sileno”, que, quando aberta ao meio, revela um “agalma”, objeto precioso. Eis aí o amor de transferência em ação: Alcebíades ama o que há em Sócrates e não Sócrates. Ama a voz de Sócrates, o olhar de Sócrates, mas não a pessoa de Sócrates, nem sua personalidade. O que lhe fascina é esse objeto precioso, esse não sei bem o quê que lhe acelera o coração, o faz caminhar mais devagar, o faz escutar com muita atenção, o faz se encantar. Alcebíades reconhece que com todos os outros não acontece nada parecido. Não foi exatamente a transferência o que reuniu nosso grupo de professores há três anos? Lembro de ter iniciado o trabalho com uma citação de Freud em seu clássico “O Mal-Estar na Civilização” – diz ele que a educação passa boa parte da vida ensinando o aluno a saber viver nos lagos italianos e, de repente, quando ele pisa fora da escola, depara-se com vinte graus negativos em pleno Polo Norte, e não nos lagos italianos. Esta é a questão que Freud traz para as universidades: vocês pensam em ensinar e aprender sem levar em conta o inconsciente? Pretendem ficar com a estátua horrível jogando fora o objeto precioso?

Christian Schwartz  - Uma distinção importante – recorrendo aqui a um dos autores da sua especialidade, Jacques Lacan – é a que opõe uma relação professor-aluno “imaginária”, talvez por demais idealizada de parte a parte, a outro tipo de relação, a do “simbólico”, em tese mais produtiva. Poderia explicar como, na prática, elas se dão?

Leonardo Ferrari - Lacan pensa a vida humana não no sentido de “zoé”, a vida comum dos animais e dos homens, mas de “biós”, que indica a vida própria de um indivíduo ou de um grupo. Essa distinção é de um outro pensador genial chamado Giorgio Agamben. Lacan vai pensar essa vida própria como estando sustentada por três registros fundamentais, o Real, o Simbólico e o Imaginário. Na prática, isso significa o quê? Significa que viver no Imaginário é viver desenhando mapas de lagos italianos, decorando a localização de cada lago, fazendo prova sobre eles, desconsiderando o Real do desejo que anima cada um dos alunos ali presentes – um desejo singular, não coletivizável – para um, viver no Saara; para outro, a paixão pelo gelo. Por que estes desejantes, agrupados pela universidade sob o nome de “turma”, devem estudar as mesmas coisas, ou seja, os lagos italianos? Por isso Lacan também verifica a existência do Simbólico, ou seja, a possibilidade de se organizar de outra forma, de outro jeito, levando em consideração o Real do desejo. Na prática, é a proposta de Lacan para o discurso vigente nas universidades: o cartel. O que é um cartel? Cartel é uma palavra derivada do latim “dobradiça”. Em sua etimologia já há a característica de passagem de um lugar para outro – ou, do Imaginário ao Simbólico e ao Real e vice-versa. Porém, a psicanálise não propõe a abolição do Imaginário, caso contrário acabaria a vida em sociedade. O Imaginário é fundamental, porém não da forma como em geral ele se apresenta, fixo, imutável, inflexível. O que um cartel propõe é uma reunião provisória de um grupo de pessoas que se escolhem mutuamente, com o compromisso de apresentarem um trabalho individual no final do percurso e organizadas em torno de mais uma pessoa, aquela que visaria garantir que isso não funcionaria como uma burocracia ou uma bagunça. Há um trabalho a ser feito. Qual? O trabalho particular, segundo o desejo inquietante, estranho, apaixonante, de cada um. Impossível de pensar isso em uma universidade? Nosso cartel comemora seu terceiro ano de existência dentro da Universidade Positivo. Isso quer dizer que ele deva ser tomado como modelo, como ideal para outras universidades? Não. Quer dizer que ele fez três anos de idade. Quer dizer que em cada um desses três anos ele produziu trabalhos e efeitos na prática de cada participante.
Christian Schwartz  - Como as mudanças na relação professor-aluno – atualmente, com um número muito maior de estudantes, ela é muito menos, digamos, “íntima” – transformaram a universidade em geral? E as novas tecnologias, contribuem para esse apagamento da antiga figura do mestre experiente e sábio, já que os alunos tendem a achar que podem ser autodidatas porque teriam o conhecimento todo “acessível” na internet?
Leonardo Ferrari - Eu acho que essas propaladas “mudanças” não são bem o que pretendem ser. Há um gosto enorme em julgar nossa época como “única”, “pós-moderna”, “avançada” porque a cada cinco minutos um novo objeto portátil tecnológico aparece trazendo “extraordinárias” novidades. Então, se fala muito em I-pad, I-phone,  como se  no tempo do meu pai e do meu avô não existisse a I-pandorga, o I-estilingue, o I-gibi, o I-figurinha, que fazia esses “excelentes” alunos aproveitarem qualquer momento para faltar aula, sair mais cedo, não aguentar os ideais que lhes tentavam passar goela abaixo. Quando perguntados sobre a escola, do que essa velha geração se lembra? Da pinta engraçada na perna daquela professora e do grito tresloucado do ridículo professor de educação física. É verdade que um certo saber foi adquirido, mas o foi por causa dessa pinta, por causa desse grito, por causa daquilo que havia ali de “inútil”, de fascinante para o desejo de cada um – e não por causa da melhor estrutura da escola, dos melhores professores e assim por diante. Há um mal-estar dentro das universidades que não se trata com “melhores” aulas (o discurso das competências) ou com “melhores” tecnologias (o discurso da ciência), nem com a demissão e substituição sistemática de professores como se eles fossem parafusos (o discurso do capitalismo selvagem). O mal-estar se chama sujeito do inconsciente, ou seja, aquilo que a ciência não quer saber, porém está lá, incomoda, é a pedra no meio do caminho do cientista, é o que não deixa marcas no tubo de ensaio, que não é visível no tomógrafo computadorizado e, no entanto, como já apontava brilhantemente Kant, estraga a neutralidade e a ingênua objetividade da relação sujeito-objeto. É o que faz o paciente irrequieto se queixar mais uma vez, “você me deu isso, mas continuo não me sentindo bem”. Foi essa exatamente a queixa que, no final do século XIX, levou uma paciente chamada Katarina a Freud, fazendo-o inventar e construir uma resposta completamente diferente da medicina, fundando o que se chamou psicanálise. O que ele fez? Inverteu a relação médico-paciente, professor-aluno e mestre-escravo. Ali, não era ele quem mandava, sequer ensinava. Ele se dispôs a aprender a radical diferença presente no discurso dessa mulher, a singular verdade de uma vida enclausurada por uma ciência cega e surda aos acenos e gritos de seu desejo. Com ela Freud entendeu que o sujeito do inconsciente não é uma pessoa, mas é aquilo que justamente contraria a ideia que fazemos de nós mesmos, a ideia de uma pessoa única, centrada, organizada pela razão e pela consciência. Sujeito do inconsciente é a resposta de Freud a Descartes, ou seja, ali onde penso não sou.  Em outras palavras, sujeito do inconsciente é essa pinta que me conduz, muda minhas escolhas, fixa meu percurso, me aturde cada vez que a reencontro.

Christian Schwartz  - Uma das grandes incompreensões em relação ao papel das universidades diz respeito à persistência, nelas, de um tipo de pesquisa tido por muitos como “inútil” – aquele que não dá “resultados”, não contribui para o “progresso”, nas chamadas Humanidades, por exemplo. Pensando no seu próprio campo de especialização, como responderia à pergunta: para que servem, nesse caso, as universidades?
Leonardo Ferrari - Lacan também passou pela universidade, deixando-a inclusive com uma tese rigorosa e inovadora sobre a psicose. Em uma linda homenagem à universidade, ele escreveu “De nossos Antecedentes”, onde vai demonstrar o quanto ele devia a uma série de mestres e ao saber que desenvolveu na universidade. O interessante é que ele nunca chegou a conhecer pessoalmente Freud, seu melhor professor e inesquecível mestre. Assim também, no capítulo mais emocionante do livro do George Steiner citado por você, em que o autor trata da relação entre Dante e Virgílio na Divina Comédia, constatamos que Dante nunca conheceu pessoalmente Virgílio, porém foi na obra deixada por este, a Eneida, que ele fez uma de suas primeiras descidas ao inferno. Freud foi para Lacan o que Virgílio foi para Dante. Lacan passou a vida relendo minuciosamente a obra de Freud, criando novos conceitos e abrindo novas perspectivas de pesquisa, uma contribuição admirável à universidade. Ler um autor, pensar com este autor e criar com este autor. Não está aí uma resposta possível para a pergunta “para que serve uma universidade”? Serve para caminharmos juntos e separados, próximos e distantes, pelas montanhas e praias, pelo centro e pela periferia, pela borda e pela terceira margem. Raul Pompéia, aliás, traz na sua obra-prima “O Ateneu” uma resposta fascinante. Após descrever o vale de lágrimas de sua passagem pela escola, fica a perplexa sensação de que sem esse vale de lágrimas não haveria esse resto chamado “O Ateneu”. Resto fecundo. Em relação ao inútil, seria a leitura de “O Ateneu” dispensável?  Quem julga o que é útil e o que não é? Uma comissão de “sábios”? Henry Ford declarou que se fosse  obedecer ao que o mercado estava pedindo na época, o útil, ele teria fabricado cavalos mais velozes, cavalos mais resistentes, cavalos mais lustrosos. Cavalos, não automóveis. De onde veio a ideia de fazer um automóvel? Por incrível que possa parecer, ideias inovadoras vêm de um conjunto de pesquisas aparentemente inúteis, como a análise de uma criança de cinco anos do Tatuquara, o jeito do besouro voar no Parque Barigui, a vida de um pequeno grupo na Sanepar, uma apresentação do grupo de dança do Teatro Guaíra, um pequeno conto de Dalton Trevisan, uma pintura de Guido Viaro, um único verso de Dante Alighieri e, não esqueçamos, da pinta da perna da professora. Sem essas “inutilidades”, a ideia de automóvel não vem. Aliás, sem essas “inutilidades”, pode existir “zoé”, mas não “biós”. Pode haver cursos, mas não universidade.

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