ENTREVISTA
A Gazeta do Povo publicou essa entrevista, mas cortada, retaliada. Aqui está inteira.
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Leonardo
Ferrari é psicanalista com consultório em Curitiba e professor na Universidade
Positivo, das disciplinas de Psicologia e de Estética nos cursos de Comunicação
Social. Coordena também o Grupo de Estudos de Educação, Comunicação e
Psicanálise e o Laboratório de Criatividade no curso de Publicidade e
Propaganda desta Universidade.
Christian Schwartz - Num belo
livro, Lições dos mestres, o erudito George Steiner fala de certa dimensão, a
“da troca, a de um Eros de confiança recíproca e, de fato, de amor”, que seria
essencial às artes de ensinar e aprender. Esse é também o tema d’O banquete, de
Platão, dileto discípulo de Sócrates. Tal dimensão da pedagogia ainda é
possível na educação dos universitários de hoje?
Leonardo
Ferrari - Em 1914, a direção do ginásio em que Freud estudou lhe pediu um
escrito para comemorar o cinquentenário da escola. Ele escreveu, então, um de
seus mais belos textos, chamado “Sobre a Psicologia do Colegial” (presente no
volume 11 de suas obras completas na nova edição da Cia. das Letras). Nele,
Freud conta o reencontro dele, adulto, com um antigo professor, pelas ruas da
cidade. Desse encontro resulta uma questão fundamental: o que vale mais na
relação entre aluno e professor, nessa relação transferencial? A ciência
transmitida, o conhecimento repassado, o saber, ou a personalidade do professor
que, de algum jeito, marcou a vida do aluno? Freud vai responder de um modo
inquietante: o encontro de um professor com um aluno e vice-versa não é nunca
um primeiro encontro; é um reencontro. Por isso os inevitáveis mal-entendidos,
confusões e trapalhadas que podem acontecer. Um professor não é só professor
para um aluno e um aluno não é só um aluno para um professor. É como se nessa
relação aparentemente a dois, estivessem quatro, cinco, seis outras pessoas –
foi o que Freud denominou de “condensação” em sua análise dos sonhos. Ora, aqui
já se pode evidenciar que, se há amor nesse relacionamento entre professor e
aluno, certamente não é o amor imaginário, o amor no sentido ingênuo, a dois,
romântico – esse que acaba virando tema de curso para ensinar os professores a
serem mais amorosos em sala de aula. É, sim, o amor de transferência. Poderá ou
não ser construído pois não depende só da vontade ou da preparação de ambos,
mas também do inconsciente de cada um. Ou seja, ele não é automático, não está
dado em uma lista de nomes denominada “turma”, tampouco em uma nota ou conceito
de avaliação. Um exemplo disso é o livro que trabalhamos em nossos estudos e
que se chama “O Infante de Parma – A Educação de um Príncipe Iluminista” de
Elisabeth Badinter. Lá está a família real do ducado de Parma, na Itália, em
pleno século XVIII, contratando os dois melhores professores da época, entre
eles o renomado filósofo Condillac, para educar seu filho nos trilhos do
Iluminismo, ou seja, da razão acima de tudo. Entretanto, a realização do ideal
da melhor educação não acontece. Pior, o aluno sai dos trilhos. Quando se torna
príncipe depois da morte do pai, ele vai restabelecer os Tribunais da Santa
Inquisição nos territórios de seu ducado, entrando na história com o apelido de
“príncipe carola” – exatamente o contrário do príncipe iluminista que seus
mestres planejavam produzir. Por que aconteceu isso? Porque o inconsciente não
pode ser governado por ninguém, nem por reis, princesas, reitores ou diretores
– não se legisla nem se decreta sobre ele. Lacan vai denominar esse desencontro
que acontece todos os dias em sala de aula, de “aturdito”, ou seja, uma palavra
que contém duas, “aturdido”, perturbado, atarantado, e “dito”. Essa
impossibilidade de controlar o inconsciente decorre também do fato de termos aí
dois seres falantes, o que introduz aí a complicação da linguagem. Os bichos,
que já nascem sabendo o que fazer da vida, não falam, não se inquietam com essa
coisa denominada universidade. No Banquete de Platão, há um general no auge de
sua vida, Alcebíades, que está interessado em alguém que não lhe quer do jeito
que ele gostaria, o feíssimo Sócrates. Como entender esse desencontro? Para
descrever o estranho fascínio que Sócrates exerce sobre ele, Alcebíades usa a
metáfora de uma estátua horrível, chamada pelos gregos de “sileno”, que, quando
aberta ao meio, revela um “agalma”, objeto precioso. Eis aí o amor de transferência
em ação: Alcebíades ama o que há em Sócrates e não Sócrates. Ama a voz de
Sócrates, o olhar de Sócrates, mas não a pessoa de Sócrates, nem sua
personalidade. O que lhe fascina é esse objeto precioso, esse não sei bem o quê
que lhe acelera o coração, o faz caminhar mais devagar, o faz escutar com muita
atenção, o faz se encantar. Alcebíades reconhece que com todos os outros não
acontece nada parecido. Não foi exatamente a transferência o que reuniu nosso
grupo de professores há três anos? Lembro de ter iniciado o trabalho com uma
citação de Freud em seu clássico “O Mal-Estar na Civilização” – diz ele que a
educação passa boa parte da vida ensinando o aluno a saber viver nos lagos
italianos e, de repente, quando ele pisa fora da escola, depara-se com vinte
graus negativos em pleno Polo Norte, e não nos lagos italianos. Esta é a
questão que Freud traz para as universidades: vocês pensam em ensinar e
aprender sem levar em conta o inconsciente? Pretendem ficar com a estátua
horrível jogando fora o objeto precioso?
Christian
Schwartz - Uma distinção importante – recorrendo aqui a um dos autores da
sua especialidade, Jacques Lacan – é a que opõe uma relação professor-aluno
“imaginária”, talvez por demais idealizada de parte a parte, a outro tipo de
relação, a do “simbólico”, em tese mais produtiva. Poderia explicar como, na
prática, elas se dão?
Leonardo
Ferrari - Lacan pensa a vida humana não no sentido de “zoé”, a vida comum dos
animais e dos homens, mas de “biós”, que indica a vida própria de um indivíduo
ou de um grupo. Essa distinção é de um outro pensador genial chamado Giorgio
Agamben. Lacan vai pensar essa vida própria como estando sustentada por três
registros fundamentais, o Real, o Simbólico e o Imaginário. Na prática, isso
significa o quê? Significa que viver no Imaginário é viver desenhando mapas de
lagos italianos, decorando a localização de cada lago, fazendo prova sobre
eles, desconsiderando o Real do desejo que anima cada um dos alunos ali
presentes – um desejo singular, não coletivizável – para um, viver no Saara;
para outro, a paixão pelo gelo. Por que estes desejantes, agrupados pela
universidade sob o nome de “turma”, devem estudar as mesmas coisas, ou seja, os
lagos italianos? Por isso Lacan também verifica a existência do Simbólico, ou seja,
a possibilidade de se organizar de outra forma, de outro jeito, levando em
consideração o Real do desejo. Na prática, é a proposta de Lacan para o
discurso vigente nas universidades: o cartel. O que é um cartel? Cartel é uma
palavra derivada do latim “dobradiça”. Em sua etimologia já há a característica
de passagem de um lugar para outro – ou, do Imaginário ao Simbólico e ao Real e
vice-versa. Porém, a psicanálise não propõe a abolição do Imaginário, caso
contrário acabaria a vida em sociedade. O Imaginário é fundamental, porém não
da forma como em geral ele se apresenta, fixo, imutável, inflexível. O que um
cartel propõe é uma reunião provisória de um grupo de pessoas que se escolhem
mutuamente, com o compromisso de apresentarem um trabalho individual no final
do percurso e organizadas em torno de mais uma pessoa, aquela que visaria
garantir que isso não funcionaria como uma burocracia ou uma bagunça. Há um
trabalho a ser feito. Qual? O trabalho particular, segundo o desejo
inquietante, estranho, apaixonante, de cada um. Impossível de pensar isso em
uma universidade? Nosso cartel comemora seu terceiro ano de existência dentro
da Universidade Positivo. Isso quer dizer que ele deva ser tomado como modelo,
como ideal para outras universidades? Não. Quer dizer que ele fez três anos de
idade. Quer dizer que em cada um desses três anos ele produziu trabalhos e
efeitos na prática de cada participante.
Christian
Schwartz - Como as mudanças na relação professor-aluno – atualmente, com
um número muito maior de estudantes, ela é muito menos, digamos, “íntima” –
transformaram a universidade em geral? E as novas tecnologias, contribuem para
esse apagamento da antiga figura do mestre experiente e sábio, já que os alunos
tendem a achar que podem ser autodidatas porque teriam o conhecimento todo
“acessível” na internet?
Leonardo
Ferrari - Eu acho que essas propaladas “mudanças” não são bem o que pretendem
ser. Há um gosto enorme em julgar nossa época como “única”, “pós-moderna”,
“avançada” porque a cada cinco minutos um novo objeto portátil tecnológico
aparece trazendo “extraordinárias” novidades. Então, se fala muito em I-pad,
I-phone, como se no tempo do meu pai e do meu avô não existisse a
I-pandorga, o I-estilingue, o I-gibi, o I-figurinha, que fazia esses “excelentes”
alunos aproveitarem qualquer momento para faltar aula, sair mais cedo, não
aguentar os ideais que lhes tentavam passar goela abaixo. Quando perguntados
sobre a escola, do que essa velha geração se lembra? Da pinta engraçada na
perna daquela professora e do grito tresloucado do ridículo professor de
educação física. É verdade que um certo saber foi adquirido, mas o foi por
causa dessa pinta, por causa desse grito, por causa daquilo que havia ali de
“inútil”, de fascinante para o desejo de cada um – e não por causa da melhor
estrutura da escola, dos melhores professores e assim por diante. Há um
mal-estar dentro das universidades que não se trata com “melhores” aulas (o
discurso das competências) ou com “melhores” tecnologias (o discurso da
ciência), nem com a demissão e substituição sistemática de professores como se
eles fossem parafusos (o discurso do capitalismo selvagem). O mal-estar se
chama sujeito do inconsciente, ou seja, aquilo que a ciência não quer saber,
porém está lá, incomoda, é a pedra no meio do caminho do cientista, é o que não
deixa marcas no tubo de ensaio, que não é visível no tomógrafo computadorizado
e, no entanto, como já apontava brilhantemente Kant, estraga a neutralidade e a
ingênua objetividade da relação sujeito-objeto. É o que faz o paciente
irrequieto se queixar mais uma vez, “você me deu isso, mas continuo não me
sentindo bem”. Foi essa exatamente a queixa que, no final do século XIX, levou
uma paciente chamada Katarina a Freud, fazendo-o inventar e construir uma
resposta completamente diferente da medicina, fundando o que se chamou
psicanálise. O que ele fez? Inverteu a relação médico-paciente, professor-aluno
e mestre-escravo. Ali, não era ele quem mandava, sequer ensinava. Ele se dispôs
a aprender a radical diferença presente no discurso dessa mulher, a singular
verdade de uma vida enclausurada por uma ciência cega e surda aos acenos e
gritos de seu desejo. Com ela Freud entendeu que o sujeito do inconsciente não
é uma pessoa, mas é aquilo que justamente contraria a ideia que fazemos de nós
mesmos, a ideia de uma pessoa única, centrada, organizada pela razão e pela
consciência. Sujeito do inconsciente é a resposta de Freud a Descartes, ou
seja, ali onde penso não sou. Em outras palavras, sujeito do inconsciente
é essa pinta que me conduz, muda minhas escolhas, fixa meu percurso, me aturde
cada vez que a reencontro.
Christian
Schwartz - Uma das grandes incompreensões em relação ao papel das
universidades diz respeito à persistência, nelas, de um tipo de pesquisa tido
por muitos como “inútil” – aquele que não dá “resultados”, não contribui para o
“progresso”, nas chamadas Humanidades, por exemplo. Pensando no seu próprio
campo de especialização, como responderia à pergunta: para que servem, nesse
caso, as universidades?
Leonardo
Ferrari - Lacan também passou pela universidade, deixando-a inclusive com uma
tese rigorosa e inovadora sobre a psicose. Em uma linda homenagem à
universidade, ele escreveu “De nossos Antecedentes”, onde vai demonstrar o
quanto ele devia a uma série de mestres e ao saber que desenvolveu na
universidade. O interessante é que ele nunca chegou a conhecer pessoalmente
Freud, seu melhor professor e inesquecível mestre. Assim também, no capítulo
mais emocionante do livro do George Steiner citado por você, em que o autor
trata da relação entre Dante e Virgílio na Divina Comédia, constatamos que
Dante nunca conheceu pessoalmente Virgílio, porém foi na obra deixada por este,
a Eneida, que ele fez uma de suas primeiras descidas ao inferno. Freud foi para
Lacan o que Virgílio foi para Dante. Lacan passou a vida relendo minuciosamente
a obra de Freud, criando novos conceitos e abrindo novas perspectivas de
pesquisa, uma contribuição admirável à universidade. Ler um autor, pensar com
este autor e criar com este autor. Não está aí uma resposta possível para a
pergunta “para que serve uma universidade”? Serve para caminharmos juntos e
separados, próximos e distantes, pelas montanhas e praias, pelo centro e pela
periferia, pela borda e pela terceira margem. Raul Pompéia, aliás, traz na sua
obra-prima “O Ateneu” uma resposta fascinante. Após descrever o vale de
lágrimas de sua passagem pela escola, fica a perplexa sensação de que sem esse
vale de lágrimas não haveria esse resto chamado “O Ateneu”. Resto fecundo. Em relação
ao inútil, seria a leitura de “O Ateneu” dispensável? Quem julga o que é
útil e o que não é? Uma comissão de “sábios”? Henry Ford declarou que se fosse
obedecer ao que o mercado estava pedindo na época, o útil, ele teria
fabricado cavalos mais velozes, cavalos mais resistentes, cavalos mais
lustrosos. Cavalos, não automóveis. De onde veio a ideia de fazer um automóvel?
Por incrível que possa parecer, ideias inovadoras vêm de um conjunto de
pesquisas aparentemente inúteis, como a análise de uma criança de cinco anos do
Tatuquara, o jeito do besouro voar no Parque Barigui, a vida de um pequeno
grupo na Sanepar, uma apresentação do grupo de dança do Teatro Guaíra, um
pequeno conto de Dalton Trevisan, uma pintura de Guido Viaro, um único verso de
Dante Alighieri e, não esqueçamos, da pinta da perna da professora. Sem essas
“inutilidades”, a ideia de automóvel não vem. Aliás, sem essas “inutilidades”,
pode existir “zoé”, mas não “biós”. Pode haver cursos, mas não universidade.
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