Política da desconstrução
Maria Sylvia Carvalho Franco - O Estado de S. Paulo
11 Outubro 2014 | 16h 00
O recurso à mentira e à repetição persuasiva são a tônica das atuais campanhas eleitorais

Em todos os tempos a violência - assassinatos, perfídias, traições, calúnias, fraudes, maledicências de toda sorte - tece a história das instituições políticas, culminando com as tiranias, campo por excelência da injustiça. Modernamente, os especialistas em desmoralizar o adversário são os spin doctors, sombrios personagens encarregados de criar e difundir boatos no intuito de “desconstruir” (no jargão moderno) o antagonista. Sem dúvida, essa técnica surte efeitos positivos para seus manipuladores.
No cerne dessa rede publicitária está a falácia dos argumentos repetidos ad nauseam, fundados no pressuposto de que, quanto mais reiterados, mais corretos parecem e mais eficazmente são incutidos no ânimo do cidadão, sejam verazes ou falsos. Um bom exemplo dessa operação é oferecido pela publicidade mercantil americana, focalizado em romance e filme da década de 1940 no qual um magnata delineia as bases da boa propaganda: “Uma simples e boa ideia repetida até que o público esteja tão irritado que compre sua marca porque não consegue esquecê-la”. A seu ver, os profissionais da propaganda temeriam perder clientela, mas, ao contrário, diz ele, “o público gosta disso se você souber como fazê-lo relaxar e divertir-se.” (Vance Packard, The Hidden Persuaders). Note-se a sequência: um estado de tensão, de desgosto, sanado pela experiência prazerosa.
Foi a esse modelo - a publicidade comercial norte-americana - que Gobbels disse reportar-se ao conceber a propaganda nazista. Com efeito, associada ao relato acima, a frase atribuída a Goebbels, “a mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, insere-se em um circuito complexo de emoções conduzindo ao consentimento. Ironicamente, foi Edward Bernays, judeu austro-americano conselheiro de Woodrow Wilson, que forneceu a Goebbels a engenharia psicossocial que orientou suas bem-sucedidas campanhas. Ao recurso espalhafatoso das grandes reuniões e discursos ruidosos ele associou técnicas sutis de persuasão, valendo-se da imagem, da música, do esporte, de mensagens indiretas. Note-se que Bernays, assim como seu associado Lippmann, partiam da premissa de que os indivíduos, na multidão, abstraem inibições, abandonam padrões morais, perdem a capacidade crítica e racional, tornam-se altamente emotivos, descambam para a violência (Le Bon). Por isso mesmo, as massas, por meios de estímulos e reflexos (Pavlov), precisariam ser condicionadas por um conjunto preciso de opiniões e juízos predeterminados pelos “virtuosos”. Para esses pioneiros da propaganda moderna - pasme-se! -, tais controles seriam essenciais para preservar a democracia. Indiferente à mentira ou à verdade, o objetivo, vender sabonetes ou eleger políticos, é atingir o âmago do público e dirigi-lo para os fins estabelecidos.
Goebbels conhecia e admirava essas técnicas de controle e, doutor em filosofia, estava bem preparado para acioná-las. Para ele, assim como para Hitler, os atributos das massas populares - falta de memória, estupidez, reduzida capacidade de compreensão, intensa emotividade - as tornavam propícias à persuasão e acarretavam a necessidade de dirigi-las. Poucas ideias simples e essenciais devem ser intensamente repetidas até que o último obtuso as compreenda e delas se lembre.
Nessa linha de argumentos, os métodos de Bismarck foram também objeto de interesse para Goebbels, tal como a utilização de “turmas especiais de boateiros” (Gerüchtemacher), não tardando ele em organizar dossiês contra adversários e preparando-se para usá-los e distorcer os “fatos” no momento azado. O insulto insere-se nessas técnicas de desmoralização perversa.
Todos esses recursos permanecem vivos nas práticas políticas. A avalanche de imagens insidiosas e de impropérios - mentiroso, corrupto, incompetente, hipócrita - é espantosa e escapa ao mínimo de civilidade.
O arcabouço teórico e as linhas de ação exploradas atualmente pela propaganda política não têm sequer o mérito da novidade. Descontando-se o rude despudor, as distorções estereotipadas e as premissas diferentes, o recurso à mentira e à repetição persuasiva pode ser rastreado por vários milênios. Platão constitui o ápice desse ideário, embora, antes dele, a tragédia e a historiografia gregas o tenham explorado. Seu tratamento da questão reporta-se especialmente ao adestramento do guardião, o jovem de escol destinado a tornar-se “demiurgo da liberdade”. Sua educação parte da constatação de que, numa polis belicosa, faz-se necessário formar o guerreiro que, em sua gênese, deve unificar predicados contraditórios: doçura para com os de casa, hostilidade com estranhos, articulados ao desejo de conhecimento. O modelo dessa natureza aparentemente impossível é encontrado no cão. A humanidade é parte da physis, dos movimentos constitutivos do universo, ordenados e estabilizados na composição do cosmos pelo demiurgo divino (Timeu), participando de sua dinâmica geradora, entretecida nas coisas e nos indivíduos, em seus corpos e almas, em suas percepções, desejos, saberes, em suas vozes e atos.
Apesar dos fortes vínculos que o unificam, a formação compósita do cosmos abre-se para a possibilidade de sua ruptura, donde a necessária e constante atenção a sua “sustentabilidade”. No caso do guardião, é preciso cuidar para que não se transforme de cão de guarda em lobo devorador. Essas figuras não formam apenas uma alegoria; elas projetam-se na própria natureza humana, em sua efetiva lhanura e selvageria inatas, passíveis de serem dirigidas.
O poder das palavras, suas implicações sensíveis e seu controle racional, o impacto que desferem ou sofrem, o modo como se cruzam e se fecundam, determinam a retórica, circunscrevendo o enquadramento necessário à discussão socrática sobre a escrita (inerte) e a oralidade (potente), ao mister de operar racionalmente com esses poderes e não apenas de modo empírico. Além do reconhecimento preciso de seu campo de atuação, definindo tanto as almas visadas quanto as forças capazes de atingi-las, o retor precisa regular o poder da palavra, discernindo a oportunidade para acioná-lo ou retê-lo, contraponteando fala e silêncio, manobrando-o eficazmente.
Esse horizonte físico-político determina a oposição socrática entre monólogo grafado e conversa falada e também define os todos emergentes na linguagem: esses não se formam, se desenvolvem e se mantêm a partir de uma imperturbável teleologia inerente aos sistemas, anterior e superior às suas partes, mas são gerados, compostos e alterados pelo jogo dinâmico dos “poderes”que nele se entrecruzam. Nesse contexto, que envolve certa margem de indeterminação, torna-se imprescindível a arte - política ou medicina ou retórica- enquanto controle racional dessas forças, baseado no acúmulo e transmissão de conhecimentos.
A importância essencial da linguagem falada atravessa o longo percurso do treinamento do guardião, de recém-nascido a jovem militar especializado. Assim como Sócrates se propôs formar uma polis “em palavras”, também o guardião será produzido “em palavras”. No contexto acima lembrado, a dinâmica produtiva operando na retórica, nem a cidade nem o guardião constituem ficções, mas construções sociais e políticas efetivas. Não por acaso, esse adestramento inicia-se pela fiscalização das histórias contadas às crianças por mães e amas, pelas restrições a poetas, a Homero e Hesíodo, aos temas que poderiam, por exemplo, incutir o medo da morte em indivíduos destinados a serem guerreiros. Nessa exposição, a insistência no poder produtivo da palavra conjuga-se ao vocabulário das artes plásticas com variantes de moldar, pintar, produzir.
Dessa complicada e muito discutida censura lembrarei apenas um aspecto, a mentira. Após discutir como ela é inútil aos deuses perfeitos, afirma que, aos homens ela pode ser vantajosa, como forma de remédio. Platão joga aí com a polissemia do medicamento - to pharmakon -, ao mesmo tempo remédio e veneno, cuja administração, restrita ao médico, é interditada ao homem comum. Com isso, sua assertiva abre-se tanto para o caráter reversível do mito, pode ser veraz ou falso, como para o monopólio da mentira, prerrogativa da razão de Estado: o estadista pode mentir acertadamente para o benefício da cidade, mas não o homem comum, réu do maior e mais destrutivo dos erros. Com tal privilégio, maquinam-se enganos oportunos, “nobre mentira”, para persuadir mesmo os governantes (resta perguntar quem os persuade).
A essa célebre passagem segue-se uma saga de difícil crença: Sócrates propõe que os guardiães suponham que sua educação tenha sido imaginária, como em sonho, mas que, na verdade, durante todo o tempo estivessem debaixo da terra, sendo aí moldados e nutridos. Quando prontos, nasceriam da terra, a qual, como sua mãe, seria defendida, sendo os compatriotas vistos como irmãos. A essa tradição sobre a autoctonia e unidade ateniense segue-se o mito sobre os componentes da cidade, com a reinterpretação do mito hesiódico das três raças, de ouro, prata e ferro. Diante dessas proposições, o interlocutor de Sócrates pergunta se há algum modo de fazer com que esses mitos sejam acreditados ao que ele admite que a presente geração não o fará, mas sim seus filhos, sucessores e o resto da humanidade, guiados pela fala reiterativa. Aí está a semente da operação repetitiva da propaganda. Resta indicar que esse automatismo é invocado por razões de Estado e não para interesses privativos, sendo estabelecidas cautelas, por exemplo, contra a corrupção pelo dinheiro.
Resta indicar que a analogia do sonho e do processo educativo tem desdobramentos que nos remetem novamente à exploração publicitária comercial e política tendente a atingir o mais profundo dos processos físicos, psíquicos e sociais, tendo o desejo por alvo. Introduzindo a dinâmica da alma na exposição sobre a gênese do tirano, Platão destaca os desejos desnecessários, ativados nos sonhos, quando a parte racional sucumbe no sono e a parte bestial emerge e satisfaz seu próprio modo de ser, desavergonhado, mentiroso, sanguinário. Ao contrário, o homem sóbrio, saudável, prudente, aplaca sua parte selvagem e desperta a racional com belas palavras e pensamentos, dormindo com visões e sonhos conformes as leis e costumes. Se a concepção platônica dos sonhos antecipa a freudiana, inclusive na questão da censura acima assinalada, é questão alheia a essas notas. Entretanto, vale lembrar que o nexo entre sua concepção de sonho e educação evidencia que os procedimentos nesta preconizados visam a chegar, podemos sugerir, até ao inconsciente. Não será talvez ocioso indicar que Bernays... era sobrinho de Freud.
Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular do Departamento de Filosofia da USP e da Unicamp



O Fantástico foi ao ar pela primeira vez em agosto de 1973, mesmo ano de nascimento de Daniella Rubbo, coincidência que a levou à constatação de que toda a sua geração encontrou no discurso do programa as referências iniciais para a construção de um ideário sobre a ciência brasileira. “É difícil encontrar alguma edição em que a ciência não tenha sido abordada. E a tendência pela medicina está presente desde o primeiro programa, cuja pauta continha uma entrevista com o cirurgião plástico Ivo Pitanguy; uma matéria mostrando o momento em que o jogador Tostão recebia um laudo médico que o obrigava a abandonar o futebol; e uma reportagem sobre uma técnica de criogenia, desenvolvida nos Estados Unidos, com pretensão de congelar pacientes de doenças ainda sem cura para que, no futuro, fossem tratados.”
Das 104 reportagens do Fantástico que Daniella Rubbo gravou durante um ano, ela selecionou diversas para o CD que acompanha sua tese de doutorado, no intuito de mostrar momentos do programa em que aparece a divergência entre ciência e fé. Um colaborador fixo e que exerce grande influência sobre os telespectadores é o médico Dráuzio Varella que, na opinião da pesquisadora, ganha no programa uma imagem abnegada, competente e esforçada. “Sua figura remete à de um sacerdote oferecendo a salvação. Há uma matéria versando sobre pesquisas de novos medicamentos em que ele aparece num barco, atravessando o rio Amazonas, como um missionário que abandona todo o conforto da cidade e coloca muito de si para ir atrás dessas curas”.



