Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

sábado, 24 de novembro de 2012

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Visita ao inferno  
Jacques Gruman

Cadeia no Brasil foi feita para quem é pobre e miserável, para quem já está acostumado a passar fome (padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária)
       
Era sagrado. Bastava sentar na mesa do almoço e uma musiquinha tensa anunciava no rádio a Patrulha da Cidade. O locutor, Samuel Samuca Corrêa, tinha o estilo sensacionalista de certa imprensa nos idos dos anos 60. O script era de um noticiário policial comentado. Sobraram na memória o tratamento agressivo contra os “bandidos” (muquiranas era o adjetivo mais suave) e uma delegacia que simbolizou, no meu imaginário adolescente, um terrível castelo de sombras. Era a Invernada de Olaria, apresentada com requinte de sadismo por Samuca como o local de defesa da sociedade, dos justiçamentos. Podíamos dormir tranquilos, os policiais sabiam o que tinham que fazer ... Ninguém ouvia ileso aquele programa. Ainda mais entre uma colher de arroz e outra de abóbora.

Violência naquela época tinha outra cara. O Rio convivia com punguistas, batedores de carteira, “olha o rapa !”, ladrões de galinhas, malandragem-navalha na Lapa, um ou outro crime passional, aqui e ali escândalos na classe média (como o assassinato de Dana de Teffé, jamais esclarecido; “onde estão os ossos de Dana de Teffé ?” virou bordão do Carlos Heitor Cony). Garrafas de leite e bisnagas eram colocados de manhã nas portas das casas, que não tinham grades, e não eram roubados. Andava-se pelas ruas a qualquer hora, sem a sensação de risco iminente. Nada de milícias ou bandos de traficantes armados dominando comunidades pobres. Poucos criminosos ganhavam notoriedade. Cara de Cavalo e Mineirinho foram exceções e, quando caçados, engordaram as tiragens da imprensa marron. Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, atuou principalmente no Território Sagrado, a minha Tijuca. Foi cafetão, pequeno bicheiro, fumava seu baseado. Permaneceria apenas uma estatística se não tivesse matado, em tiroteio, um detetive famoso: Milton de Oliveira Le Cocq. Foi jurado de morte. Mais de 2 mil policiais participaram da caçada, que terminou na estrada para Búzios. Com 23 anos, Cara de Cavalo foi executado por 52 tiros, sendo 25 somente na região do estômago. Entre seus algozes estavam alguns policiais, mais tarde tidos como sócios-fundadores e ativistas do Esquadrão da Morte. Foi o caso de Guilherme Godinho Ferreira, Sivuca, que imortalizou o lema “bandido bom é bandido morto”.

        Cara de Cavalo tinha uma aura romântica. Roubava cargas e as distribuía no morro do Esqueleto, onde morou até os 16 anos. Conviveu com os artistas plásticos Lygia Clark e Hélio Oiticica. Foi nele que Hélio se inspirou para criar uma de suas obras mais famosas: um desenho, onde aparece o corpo de Cara de Cavalo e se lê: “Seja marginal, seja herói”.

        Comparando com o que se vê hoje nas grandes metrópoles brasileiras, minhas memórias parecem roteiro de filme amador. A criminalidade se estruturou em pequenos exércitos, com armamento sofisticado, domínio de técnicas de mercado e penetração no espaço político institucional. Na outra ponta, o consumidor financia a algazarra, comprando drogas. “De noite, Ipanema brilha”, dizia o ex-delegado Hélio Luz. O Estado fica amarrado entre a corrupção do aparato policial e a brutalidade das instituições carcerárias. Um Judiciário paquidérmico e obediente a leis que punem os mais fracos completam essa festa macabra.

        Em tal contexto, a declaração do ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, de que preferia morrer a passar alguns anos numa prisão brasileira, merece um olhar atento. Não é comum uma autoridade reconhecer que sua área de atuação anda mal das pernas. A rotina é a indústria de douração de pílulas. Reconhecido esse mérito, cabe perguntar por quê a constatação não veio acompanhada de uma necessária autocrítica. Afinal, a turma do doutor está no poder há uma década e, embora a calamidade seja muito mais antiga, ficamos sem saber o que se está fazendo para retirar o sistema prisional brasileiro do status de masmorra medieval.

        O quadro é de vomitório. Temos a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de meio milhão de pessoas presas em celas superlotadas. Os detentos vivem em péssimas condições de higiene, são forçados muitas vezes a se revezar para dormir, nas delegacias a tortura é arroz de festa, praticamente não há programas de ressocialização. Um deputado federal identificou unidades prisionais onde cada preso tinha cerca de 70 centímetros quadrados para viver. Latifúndio ... para um coelho. O desespero e a corrupção fizeram prosperar grupos criminosos nos cárceres, que agem com desenvoltura e impunidade, comandando ações dentro e fora das prisões. Atestado de absoluta incompetência do poder público para desatar esse nó. O governo federal não coordena, nem articula. Os governos estaduais se omitem. Os recursos para diminuir a tragédia, já escassos, se perdem em infinitas malhas burocráticas. A questão é: por que esse descalabro continua ?

        Uma das respostas me parece óbvia. A sociedade não se incomoda em conviver com essa barbárie. Sancionando o tratamento desumano dado aos presos comuns, ela ecoa o Samuca: esses muquiranas estão tendo o que merecem. Na linha de mestre Sivuca, parece dizer que bandido bom é bandido torturado, com selo de qualidade das autoridades. Claro que os filhos da nossa aristocracia têm tratamento diferente. Flagrados com a boca na botija, detentores de diploma de nível superior, parlamentares, governadores, prefeitos, líderes religiosos e oficiais das Forças Armadas e do Corpo de Bombeiros têm direito a prisão especial. Todos os bichos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros. Um alto magistrado acaba de dizer, a propósito de um dos condenados no processo do mensalão, que, à falta de vagas para cumprimento das penas em regime semi-aberto, o sentenciado deve cumprir seu castigo em liberdade. Sujeito humanista, esse. No entanto, por que não lança uma ampla campanha nacional, defendendo igual direito para os milhares de presos que, sem poder pagar os honorários de bons advogados, apodrecem em delegacias ou celas indignas ?
        Estamos tão habituados com certas cenas que o absurdo passa por natural. Quantas vezes já vimos os chamados presos de alta periculosidade serem transferidos para prisões de segurança máxima ? E de lá para outras, em regiões remotas ? É uma prova tão robusta de incompetência, que deveria resultar em demissão de todos os responsáveis pela segurança pública no país. Todos. Se não conseguem evitar que gente encarcerada se comunique com o exterior, uma tarefinha elementar, desencadeando ações criminosas, melhor seria que pedissem o boné.
        Se o ministro Cardozo não está à altura do desafio que ele, corajosa mas insuficientemente, reconheceu, deveria pedir as contas. Se não tem capacidade para comandar uma reação, mais digno seria passar o bastão. Estamos em área dolorosa, furúnculo numa sociedade hipócrita, preconceituosa e cínica. Que seleciona vítimas, define o que é suportável com base numa espécie de seleção natural. Faz lembrar um poema do Manuel Bandeira, que nem era dado a voos sociológicos: 

Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos./Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade./O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato./O bicho, meu Deus, era um homem.

       


Elizabeth Bishop: A arte de perder

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério. ”

Tradução de Paulo Henriques Britto

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Hoje eu acordei assim...


Em Portugal...


O menino que Gaspar não conhece

do Blog de Joana Lopes, Portugal

Nicolau Santos, hoje, no Expresso online.

«Supermercado do centro comercial das Amoreiras, fim da tarde de terça-feira. Uma jovem mãe, acompanhada do filho com seis anos, está a pagar algumas compras que fez: leite, manteiga, fiambre, detergentes e mais alguns produtos.

Quando chega ao fim, a empregada da caixa revela: são 84 euros. A mãe tem um sobressalto, olha para o dinheiro que traz na mão e diz: vou ter de deixar algumas coisas. Só tenho 70 euros.

Começa a pôr de lado vários produtos e vai perguntando à empregada da caixa se já chega. Não, ainda não. Ainda falta. Mais uma coisa. Outra. Ainda é preciso mais? É. Então este pacote de bolachas também fica. Aí o menino agarra na manga do casaco da mãe e fala: Mamã, as bolachas não, as bolachas não. São as que eu levo para a escola. A mãe, meio envergonhada até porque a fila por trás dela começava a engrossar, responde: tem de ser, meu filho. E o menino de lágrima no canto do olho a insistir: mamã, as bolachas não. As bolachas não.»

Continuar a ler AQUI.

Algarismo não passa fome, não sente dor...não...


Aqui jaz o algarismo 7

do Blog de Joana Lopes

Ricardo Araújo Pereira, hoje sobre Finanças (e chimpanzés – diz ele).

«O ser humano comparece com pouca frequência nas folhas de Excel, ao contrário do algarismo. E o algarismo não passa fome, ao contrário do ser humano. É raro encontrarmos uma lápide, no cemitério, com a inscrição: "Aqui jaz o algarismo 7. Faleceu na sequência de um engano numa multiplicação. Paz à sua alma."» 

Na íntegra AQUI.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Os gatos e seus homens...

Borges e seu gato Beppo
Foucault e seu gato
o gato...


Do Blog de Roberto Romano:Estado. Concordo em tudo, em genero número e caso.

Início do conteúdo

Cada coisa em seu lugar

Pode-se louvar a Deus com dinheiro sujo, dinheiro de corrupção, dinheiro na cueca ou transferido para conta secreta?

18 de novembro de 2012 | 2h 07

SÍRIO POSSENTI - O Estado de S.Paulo
 
Os discursos são organizados com bastante rigidez. Às vezes parece que não. Numa cidade, por exemplo, parece que se vê de tudo em todos os lugares. Mas, observando as coisas mais de perto, vemos que há muita ordem. Não há luminosos em qualquer lugar, não há outdoors em qualquer lugar. E, principalmente, não se lê Banco do Brasil em um prédio do outro banco nem o nome de outro banco num do Banco do Brasil.
Cédulas de Real - Fábio Motta/Estadão
Fábio Motta/Estadão
Cédulas de Real
 
Numa banca de revistas, as coisas podem parecer misturadas, mas procurando um pouco - às vezes, isso nem é necessário - encontram-se as revistas femininas aqui e as de língua portuguesa acolá. Mais: ao abrir uma delas, descobre-se que cada texto, cada propaganda e cada carta de leitor(a) fazem sentido nessa e não naquela revista. 

É bastante raro que os textos estejam fora do lugar. Outdoors com a inscrição "Deus os fez macho e fêmea", espalhados pelo pastor Silas Malafaia, são uma raridade. Estes só foram possíveis em uma campanha contra homossexuais e, ainda mais, porque a defesa de seus direitos foi lida como tentativa de imposição a todos de uma opção sexual de minorias.

É um pouco por causa dessa ordem dos discursos que corre um debate a respeito da inscrição da frase "Deus seja louvado" em cédulas de nossa moeda. Essa frase, em um templo ou em texto religioso, não causa estranheza. Mas o que ela faz numa cédula?

Uma hipótese é que uma sociedade profundamente religiosa (na verdade, cristã, pelo menos atualmente, por mais que se queira forçar as interpretações apelando para a história ou para vaguidades como "a palavra designa qualquer divindade ou força superior") se sinta compelida a louvar a Deus sempre e em qualquer lugar.

Observe-se bem: trata-se de louvar. A frase não é "Deus nos ajude", mas "Deus seja louvado". 

Deus, em sociedades como a nossa, de tradição católica, tem diversas serventias: pede-se a ele proteção ou ajuda (às vezes, automaticamente, quando o avião decola), agradece-se quando acontecem coisas boas (ou milagrosas) ou, mais modestamente, se não acontece nenhuma desgraça. Quando essas ocorrem, aliás, muitos praguejam ou blasfemam, e perdem sua fé. 

Desinteressadamente. Há versões do cristianismo que se dedicam a louvar. Outras, a pedir. Algumas levam a viver com Deus uma relação especial, como fazem os monges. Louvar é uma ação que decorre fundamentalmente da crença de que Deus possui todos os predicados que o fazem superior. É uma ação sem interesses. Louva-se graciosamente, porque Deus é onipotente. Aliás, monges louvam muito. 

Mas esse sentido está preservado pela inscrição no dinheiro que se ganha e se gasta de mil maneiras, muitas pouco religiosas? Significa que não é só nos templos que se pode orar, que se pode fazer isso em qualquer lugar, mesmo no dinheiro? Que Deus seja louvado porque recebi esta grana por meu trabalho ou porque tenho dela o suficiente para pagar minhas contas, sem pedir esmola ou, pior, um empréstimo bancário, com suas pouco louváveis taxas de juro? Pode-se louvar a Deus com dinheiro sujo, dinheiro de corrupção, dinheiro na cueca ou transferido online para uma conta secreta? Dinheiro do suor, dinheiro do pó, dinheiro das máfias: será que Deus aceita o louvor de todas as granas, ou só do sagrado dinheiro do dízimo e das doações para a construção do templo? 

A discussão está nas mídias. Membro do Ministério Público quer retirar a inscrição das notas. A frase atentaria contra os princípios da igualdade e da não exclusão de minorias. Além disso, o Estado é laico. Portanto, não pode misturar nada com igrejas (o argumento foi mobilizado há algum tempo para tentar retirar crucifixos dos tribunais). 

O argumento da defesa (do BC) foi invocar a Constituição, que inclui a expressão "com a proteção de Deus". Mas não se pergunta como foi parar lá. 

Como se dá com quase tudo que ocorre nos últimos 30 anos, Sarney está no meio da disputa. A frase teria ido parar nas notas a pedido dele. O curioso é que foi mantida por FHC, quando ministro da Fazenda. O argumento seria que se trata de "tradição da cédula brasileira". Logo FHC, o ateu, que por isso perdeu uma eleição em São Paulo.

Há quem argumente que até a moeda americana traz inscrição semelhante: "In God we trust". Pode bem ser que esta seja a versão para o americano comum. Para os que têm dólares em penca, a inscrição deveria ser "We trust in trusts".

Segundo uma fonte, o MP pede que a Justiça Federal estipule multa diária de R$ 1 se a União não cumprir a decisão. O que não está dito é se deve ser paga em moedas com ou sem a inscrição.

SÍRIO POSSENTI - PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA / INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM DA UNICAMP E AUTOR DE QUESTÕES PARA ANALISTAS DE DISCURSO (PARÁBOLA)

Menu na livraria LILITH no Paraguai








Entrada"Cómo funciona el mundo"Noam Chomsky

Vino de la casa "Violeta ClandestinaMaria Gabriela Ini


Postre: 
  
 
"Nueve pares de zapatosYun Heung-gil

Quando a soja substitui humanos...


Quem poderá salvar os guarani-caiovás?

09 de novembro de 2012 | 2h 09
WASHINGTON NOVAES
Há mais de 20 anos - 15 dos quais nesta página - o autor destas linhas escreve sobre a situação dramática dos índios guarani-caiovás, em Mato Grosso do Sul (MS). Naquele tempo já eram centenas os casos de suicídio entre essa gente (a segunda maior etnia indígena no País, 45 mil pessoas). E já nesse tempo eles não tinham onde viver segundo seus formatos próprios - as terras para as quais gradativamente os expulsavam eram muito pequenas, não permitiam manter a tradição de plantar, colher, caçar, pescar. Fora de suas terras, sem formação profissional adequada, seguiam a trajetória fatal: trabalhar como boias-frias, tornar-se alcoólatras, mendigos, loucos. E suicidas, como o jovem de 17 anos que se matou no dia seguinte ao de seu casamento - enforcou-se numa árvore e, sob seus pés, na terra, deixou escrito: "Eu não tenho lugar".
Quando ganhou espaço na comunicação a atual crise em dois hectares onde vivem 170 índios (Estado, 29/10), dois dias antes se suicidara um jovem de 23 anos, pelas mesmas razões. Felizmente, a desembargadora Cecília Mello, do Tribunal Regional Federal, determinou que os guarani-caiovás permaneçam na área até que se conclua a delimitação da que lhes deve caber - e onde estão "em situação de penúria e falta de assistência", o que, segundo ela, "reflete a ausência de providências do poder público para a demarcação das terras". Dizia o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), nesse momento, que 1.500 guarani-caiovás já se haviam suicidado.
Só pode levar ao espanto trazer à memória que havia 5 milhões de índios ocupando os 8,5 milhões de quilômetros quadrados em 1500, quando aqui chegaram os colonizadores - ou seja, cada um com 1,7 quilômetro quadrado, em média. E hoje os guarani-caiovás da aldeia em questão precisam ameaçar até com suicídio coletivo para manterem 170 pessoas em dois hectares, 20 mil metros quadrados, menos de 120 metros para cada um, pouco mais que a área de um lote dos projetos habitacionais de governos. Mas nem isso lhes concedem.
Talvez já tenha sido mencionado em artigo anterior pensamento do antropólogo Lévi-Strauss num de seus livros, no qual se perguntava por que os índios brasileiros, que eram milhões, não massacraram os primeiros colonizadores, que eram umas poucas centenas. Teria sido muito fácil. Mas ele mesmo respondia: não só não mataram, como os trataram como fidalgos; porque na cosmogonia do índio brasileiro está sempre presente a chegada do outro - e esse outro é o limite da liberdade de cada pessoa. Tal como pensava outro antropólogo, Pierre Clastres (A Sociedade contra o Estado): nas culturas indígenas não há delegação de poder, ninguém dá ordens; cada indivíduo é livre; mas o limite da liberdade de cada pessoa está em outra pessoa. Só que o respeito à liberdade dos colonizadores custou aos índios o massacre. E situações como as que vivem hoje.
De pouco têm adiantado relatórios de organismos internacionais, entre eles o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), que destacam a importância (a começar pelo Brasil) das áreas indígenas para a conservação da biodiversidade, em perigo no mundo. Também têm sido esquecidas as lições do jurista José Afonso da Silva, que com seu parecer levou o Supremo Tribunal Federal a decidir pelo direito dos índios ianomâmis à demarcação de suas reservas, em Roraima: é um direito reconhecido desde as ordenações da coroa portuguesa, no século 17.
Mas quem comove o poder brasileiro? Ainda no ano passado - talvez também já tenha sido comentado aqui -, quando completou meio século a criação do Parque Indígena do Xingu pelo presidente Jânio Quadros, por proposta dos irmãos Villas Boas, o autor destas linhas, com apoio do ex-ministro Gilberto Gil, do artista plástico Siron Franco, do compositor e criador Egberto Gismonti, do ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) Márcio Santilli - entre muitas outras pessoas -, tentou levar à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) a proposta de transformar o parque em patrimônio ambiental, histórico e cultural da humanidade. Afinal, naqueles 26 mil quilômetros quadrados, onde vivem 16 povos, está um pedaço riquíssimo do patrimônio ambiental brasileiro - de sua flora, sua fauna, seus recursos hídricos -, hoje cercado pelo desmatamento e pelo plantio de grãos; um pedaço importante da nossa História, pois a presença de etnias por ali tem mais de 2 mil anos; um pedaço valioso do patrimônio cultural, com todas as manifestações lá nascidas e que perduram. Mas para que a Unesco receba um pedido como esse é imprescindível - foi-nos dito - que ele tenha o aval de alguma autoridade brasileira. E não conseguimos sequer uma audiência da Funai ou de outro órgão para expor o pleito.
Não estranha. Aprendemos mais uma vez que uma iniciativa como essa é considerada "ameaça à soberania nacional e ao uso de recursos naturais". Tal como já acontecera em 2002, quando o autor destas linhas, membro da comissão que preparava o projeto da Agenda 21 brasileira, observou, numa reunião, que faltava no texto um capítulo sobre clima e mudanças nessa área. E propunha que ele fosse escrito. Imediatamente o representante do Itamaraty na comissão se levantou e impugnou a proposta, alegando que "essa área, que envolve a soberania brasileira, é privativa das Forças Armadas e do Itamaraty". Ponto final. Já promulgada a Agenda, no início do novo governo, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) pediu que este escriba a representasse na Comissão da Agenda. A proposta do capítulo sobre clima e desenvolvimento sustentável foi reapresentada e aprovada em princípio. Mas jamais foi discutida. Morreu.
Tampouco estranha, assim, que os guarani-caiovás enfrentem esse calvário. Se o Parque do Xingu não pode ter prioridade, se centenas de milhares de índios em todo o País vivem um drama diário, que importância tem para o poder a sina de algumas dezenas de guarani-caiovás perdidos em meio à soja sul-mato-grossense?
* JORNALISTA
E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR 

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Encontrei o texto do Washington Novaes lendo o facebook e o Blog do Claudio Willer, abaixo.

Interessante debate porque expõe as opiniões diversas, inclusive, a opinião do neo midiático Luiz Pondé que ontem, dia 19 de novembro de 2012, escreveu um texto na Folha de São Paulo achincalhando usuários da internet que são pró Guarani-Caiowá.  Mas o problema não está na internet nos blogueiros, nos usuários do facebook que manifestam sua solidariedade ao povo guarani-caiowá. O problema - o problema real - está na matança de índios, crianças e jovens a adultos, que expulsos de suas terras por fazendeiros, madeireiros, são dizimados por doenças, fome, depressão. 
A  internet - diferente da FSP e de outros meios de comunicação (sic) - deu vazão a isso. E o Pondé - para fazer currículo na mídia televisiva e escrita da hegemônica patota - tenta desconstruir algo que desestabiliza essa mídia. Pondé, em minha opinião, não é um intecletual público, é um intelectual da FOlha de São Paulo. Privado. 

Parque do Xingu: Patrimônio da Humanidade?

Dias atrás, perguntei qual dos neo-conservadores viria a público atacando defensores dos Guarani-Caiová do Mato Grosso do Sul. Apostava em Luiz Felipe Pondé. Não deu outra: em seu artigo na Folha de hoje, 19/11, verbera usuários do Facebook que acrescentaram essa designação a seus próprios nomes. Ignora o problema real, a ameaça aos ocupantes dos dois hectares na fazenda Cambará em Naviraí, MS, capítulo da tragédia enfrentada por esses índios – e que as manifestações na rede social alertaram, precedendo o noticiário na imprensa e contribuindo (provisoriamente, ao menos) para evitar que prosseguisse a violência.
Melhor ficar com o artigo de Washington Novaes, alguém que conhece o assunto, no Estadão de 09/11/2012. É objetivo, didático:
Nesse artigo, uma informação do maior interesse: a proposta de transformar o Parque Indígena do Xingu em patrimônio ambiental, histórico e cultural da humanidade pela Unesco, apresentada por Novaes com apoio do ex-ministro Gilberto Gil, do artista plástico Siron Franco, do compositor e criador Egberto Gismonti, do ex-presidente da Funai Márcio Santilli, entre outros. Não recebeu apoio do governo brasileiro. Novaes informa: “Mas para que a Unesco receba um pedido como esse é imprescindível – foi-nos dito – que ele tenha o aval de alguma autoridade brasileira. E não conseguimos sequer uma audiência da Funai ou de outro órgão para expor o pleito.”
Entre outras manifestações anteriores desse estudioso, esta:
O Parque do Xingu foi o marco inicial do que houve de positivo em matéria de política indigenista no Brasil. Um precedente, contribuindo para a criação de reservas para os Ianomami, e, mais recentemente, a Raposa – Terra do Sol, além da devolução de algumas terras aos Pataxós da Bahia; e, outro dia, a decisão da justiça em favor de Xavantes em Mato Grosso.
O significado da proclamação do Parque do Xingu como Patrimônio da Humanidade é evidente. Consolidará avanços. Contribuirá para que se corrijam barbaridades como essas que atingem os Guarani-Caiová.
Que tal retomarmos? Vamos apoiar e mobilizar?
Em tempo: acrescento ao corpo desta publicação o comentário que acaba de chegar de Rita Alves:
Estou, junto com a família Villas Boas, em processos árduos de estabelecimento do Instituto Orlando Villas Boas. Precisaremos de muitos apoios. Acervo do indigenista com mais de 2 mil peças, ainda sem destino. Arquivos linguísticos, arqueológicos, filmografia, fotografias… material rico para pesquisa de nossas mais profundas raízes… vamos em frente, sem titubear,a tentos a todos os que vão contra também. Beijo grande, Willer! Rita Alves.
Vamos apoiar!




segunda-feira, 19 de novembro de 2012


Livros gratuitosdo blog Rerum natura

A partir de amanhã, dia 20, e até dia 24, a versão Kindle dos meus livros Essencialismo Naturalizado  e Pensar Outra Vez  estarão disponíveis gratuitamente na Amazon.

Em Portugal 1


Na primeira pessoa 1

de Joana Lopes, Portugal

«Durante a minha participação pacífica na manifestação da Greve Geral frente à Assembleia da República a polícia dispersou os manifestantes com foguetes, bastões e balas de borracha. Eu, como milhares de pessoas, corremos pelas ruas do Largo de São Bento para evitar bastonadas. Não querendo confusão, eu e os meus amigos seguimos pela 24 de Julho, no sentido do Cais do Sodré a caminho de casa. 

Fomos surpreendidos por um grupo de polícias fardados a correr atrás de nós e, pela frente, homens não fardados mas armados ordenaram que nos deitássemos. Deitei-me de barriga para baixo e gritei “por favor não me faça mal” duas ou três vezes. A resposta do homem não fardado foi clara – uma bastonada na nádega direita e outra nas costas com marca bem visível. Fui algemado enquanto me gritavam que não me mexesse. Entretanto trocaram as algemas por braçadeiras, bem mais desconfortáveis. 

Fui revistado (não possuindo nada de ilegal ou ilícito). Um agente da PSP rebentou as abas daminha mochila para ma tirar das costas através das braçadeiras que me prendiam os braços. Fui empurrado para uma carrinha da PSP com 6 lugares, onde me fizeram sentar na parte de cima da roda, nas traseiras. Fomos transportadas 9 pessoas na carrinha de 6 lugares. 

Chegado ao Tribunal fui revistado mais duas vezes e, descalço, fui colocado numa cela com mais 4 pessoas, um deles com ferimentos na cabeça e costas, com sangue a cair na cela. Outro, um menor, de 15 anos, foi libertado com aflição pelos agentes ao aperceberem-se da detenção ilegal do menor. Eu pedi várias vezes para fazer o telefonema a que tenho direito. Responderam-me que “aqui não há telefones”. Insisti com diferentes agentes que sempre me recusaram esse direito. 

Nenhum dos agentes que me detiveram e revistaram estavam identificados, tendo retirado a placa com o seu nome. Nenhum dos agentes no tribunal estava identificado. 

Horas depois fui chamado a uma sala onde fui coagido a assinar um Auto de Identificação com os meus dados mas em branco no “local, hora e motivo da detenção”. Questionei o agente que me disse ser um procedimento normal, que depois eles preencheriam o resto “para bater certo com os outros detidos”. Insisti não me sentir à vontade para assinar um papel que será preenchido depois. O Agente colocou, então, o local de detenção mas recusou-se a pôr a hora e motivo. Foi-me dado a entender que bastaria assinar para ser libertado. Coagido, assinei. 

Levaram-me para a rua, para a porta do tribunal, onde, já libertado, confirmei que não tinha direito ao telefonema. 

A minha advogada foi impedida de entrar enquanto lá estive, foi impedida de ver os papéis que assinei. Chegado cá fora pedi aos agentes de serviço que me facultassem uma cópia do Auto que assinei, ou que o mostrassem à minha representante. Esse acesso foi negado com o argumento deque “já não estava detido”. 

Saí sem nenhuma acusação ou explicação para o sucedido. 

Conclusão: Estou no Cais do Sodré a caminho de casa (ali perto) quando homens não fardados me agridem, me algemam e detêm durante horas, sendo libertado cerca das 00h em Monsanto, sem forma de voltar a casa ou ao local de detenção. Não me foi feita acusação nem dada qualquer explicação. Foi-me recusado telefonar e também me foi recusado ver a minha advogada, como é direito de qualquer pessoa detida. O meu dia foi transtornado, fui agredido, e nenhuma explicação me foi dada. Foi uma experiência miliciana.

Fábio Filipe Varela Salgado
BI 13018976
DN 8/4/1986
Lisboa, 15 de Novembro de 2012»
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Em Portugal...


Na primeira pessoa (2)

de Joana Lopes, Portugal
Conheço o Sérgio Manso Pinheiro, cujo filho foi detido na passada quarta-feira, e que escreveu este texto no Facebook.

«Parece que é possível em Portugal a polícia deter uma pessoa no Cais do Sodré (a 1,6kms da Assembleia da República), algemá-la, omitir dos familiares o local para a leva durante 3 horas (parece que se chama sequestro), apreender o telemóvel, impedir ao advogado qualquer acesso ou informação, identifica-la (e só, porque quem estava detido sabe que não se atira pedras às pessoas, que não se atira pedras aos polícias) e deixá-la às 23horas em Monsanto (sem permitir qualquer chamada a não ser já fora das instalações)… 

Detida estava também uma pessoa ferida, a quem não foi prestado ou o acesso a qualquer tratamento. O Ministro da tutela já felicitou a conduta.

Missing, com Jack Lemmon, retrata a história do pai Americano que procura sem sucesso o seu filho desaparecido depois do golpe militar no Chile de 1973 que depôs o Presidente Salvador Allende, eleito democraticamente.»


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Deriva autoritária na Europa

do Blog de Joana Lopes, Portugal...

Via ATTAC, cheguei a este texto de Xavier Caño Tamayo, que pode ser lido na íntegra aqui.

«Os fascistas da Aurora Dourada e os grupos ou partidos xenófobos de extrema-direita da Holanda, Bélgica e outros países europeus são certamente detestáveis e dignos de toda a rejeição; há que estar alerta, tomar precauções e tentar isolá-los. O seu crescimento nos últimos anos, alimentado pelos medos que suscita a crise que assola a Europa, é preocupante. Mas não são o maior perigo dos nossos dias. É a própria classe política dirigente europeia, ao serviço descarado do poder financeiro, que caminha para o autoritarismo e se encarrega da democracia. Barroso, Draghi, Van Rompuy, Olli Rehn, Merkel, Rajoy, Monti, Samaras, Passos Coelho e companhia não precisam dos esquadrões fascistas tradicionais. Por agora. Eles desmantelam o sistema democrático sem a ajuda de fascistas by the book, porque prescindem olimpicamente da cidadania, nem lhes ocorre ouvi-la, ignoram-na, violam os seus direitos e reprimem duramente quando se resiste ou se protesta. Além disso, o que é insultuoso é que pretendam ser defensores da democracia quando o que fazem é esvaziá-la de conteúdo. Reduzem-na a um cenário, a uma liturgia, a algo que parece uma farsa. (...)

William Shakespeare escreveu que "a erva cresce à noite e que, quando os ricos saem para passear no dia seguinte, já cresceu entre as lajes do átrio". Para bom entendedor ... Porque o mundo nunca mudou pela generosidade de quem tem o poder, o mundo mudou pelo protesto, pela resistência e pela acção dos governados e explorados: o mundo mudou sempre apesar dos que mandavam e detinham o poder. Porque, em última instância, a democracia verdadeira não é um objetivo, mas um caminho. Por muito que lhes custe.» 

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do blog do Sérgio Fajardo

MP denuncia dirigentes da UFRJ por mau uso de dinheiro público


Destaque: "Segundo a CGU, o professor Geraldo Luiz dos Reis Nunes, diretor de Relações Internacionais da Universidade, contratou, sem licitação, a própria empresa, a Turbulência Consultoria e Serviços Limitada, para assessorar a UFRJ. A empresa funciona na casa de Geraldo Nunes. Lá, ninguém quis falar com o Fantástico. Segundo a CGU, o professor recebeu R$ 27 mil como consultor privado para fazer um trabalho que estava dentro das obrigações acadêmicas dele."

Sergio Fajardo: Fico imaginando: se esse tipo de "deslize" ocorre em uma universidade grande e tradicional como a UFRJ, imaginem o que acontece em universidades de menor expressão.

Do G1:


18/11/2012 22h37 - Atualizado em 18/11/2012 22h42

 

MP denuncia dirigentes da UFRJ por mau uso de dinheiro público

Investigação foi baseada em contrato da universidade com Banco do Brasil.
Infraestrutura precária também assusta alunos.


O Ministério Público Federal denunciou o reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Antônio Levi, e outros dirigentes da instituição por mau uso de dinheiro público. Segundo reportagem exibida pelo Fantástico, neste domingo (18), a ação civil por improbidade administrativa se baseia, principalmente, no relatório elaborado por três auditores da Controladoria Geral da União (CGU), que há dois anos começaram a investigar as contas da UFRJ.
“Entre servidores e não servidores, há um total de sete pessoas que vão responder essa ação no Judiciário”, explica a procuradora Geral da República, Márcia Morgado. "A ação de improbidade administrativa visa, conforme determina a lei, dentre outras penalidades, a perda de função pública, a suspensão de direitos políticos e também o ressarcimento integral do dano."
O principal objeto da investigação foi um contrato com o Banco do Brasil assinado por Aloísio Teixeira, que era o reitor da UFRJ em 2007, e Carlos Levi, que, à época, era pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimento. O valor total do contrato é de R$ 43,52 milhões, a serem pagos em cinco parcelas, quatro delas tendo sido depositadas em uma instituição privada ligada à UFRJ, a Fundação José Bonifácio. O dinheiro seria uma compensação paga pelo banco para manter a exclusividade na folha de pagamento dos funcionários da universidade.
Segundo o relatório da CGU, isso é ilegal, pois uma licitação deveria ter sido realizada para a escolha do banco. E o dinheiro recebido pela UFRJ teria, necessariamente, que entrar no orçamento da instituição.
Em nota, o reitor Carlos Levi escreveu que o “contrato foi apreciado e aprovado como determinava a legislação à época”, e que “a contratação das fundações de apoio é comum a todas as instituições federais de ensino superior, havendo total previsão legal”.
Réus
Além de Levi, são réus os professores da UFRJ João Eduardo Nascimento Fonseca e Geraldo Luiz dos Reis Nunes, além do espólio de Aloísio Teixeira, que morreu em julho deste ano. Também aparecem como réus Raymundo Theodoro Carvalho de Oliveira, o então presidente da Fundação José Bonifácio, a própria fundação como pessoa jurídica, e o secretário geral dela, Luiz Martins de Melo.

Raimundo de Oliveira, que foi deputado estadual no Rio de Janeiro de 1979 a 1983, e Luis Martins são acusados de descumprir a cláusula que prevê licitação nas despesas administradas por eles.
Especialistas em Direito Administrativo confirmam que transferir recursos para fundações privadas é uma prática usada por instituições federais de ensino superior, além de hospitais e institutos de pesquisa. O objetivo seria dar mais agilidade à aplicação do dinheiro.
Há dois anos a legislação mudou e tornou mais rígidas as regras sobre a aplicação do dinheiro das universidades nas fundações. A UFRJ diz que o contrato com o Banco do Brasil é anterior a essa mudança.
Detalhes
O relatório da CGU também analisou detalhes das despesas pagas pela Fundação José Bonifácio, que fica em um dos campus da UFRJ. O professor João Eduardo do Nascimento Fonseca era o responsável pelo Fundo Contábil da Reitoria quando autorizou, segundo a CGU, o pagamento de notas frias no valor total de R$ 10.083. Uma das notas é da empresa Ferragens Matoso. Ela foi extinta em 2002, oito anos antes da emissão da nota e, no endereço informado, funciona hoje uma clínica.

O repórter Eduardo Faustini deixou um contato na casa do professor João Eduardo, mas ele não retornou.
Também, segundo a CGU, o professor Geraldo Luiz dos Reis Nunes, diretor de Relações Internacionais da Universidade, contratou, sem licitação, a própria empresa, a Turbulência Consultoria e Serviços Limitada, para assessorar a UFRJ. A empresa funciona na casa de Geraldo Nunes. Lá, ninguém quis falar com o Fantástico.
Segundo a CGU, o professor recebeu R$ 27 mil como consultor privado para fazer um trabalho que estava dentro das obrigações acadêmicas dele.
Outras irregularidades
Mais um exemplo das irregularidades apontadas pela CGU aconteceu em 2008. Ainda na gestão do reitor Aloisio Teixeira, que ficou no cargo até 2011 e morreu no último mês de julho, foi contratada uma empresa para fornecer as agendas da UFRJ ao custo de R$ 17.500. Só que não houve licitação e, a empresa contratada, a Tecla, é da filha de Aloisio Teixeira, Clarissa Teixeira.

Durante duas semanas, Clarissa foi procurada. Recados foram deixados com parentes e na caixa postal de seu telefone celular.
Ainda segundo a CGU, a empresa Mark Buffet conseguiu o direito de explorar dois restaurantes na cidade universitária, sem concorrência pública. Procurada pelo fantástico, a dona do Mark Buffet, Tania de Souza, não quis falar: "Olha só, nesse exato momento eu tô no supermercado", disse Tania.
Já o professor Raymundo de Oliveira não retornou à ligação após recado. O secretário-geral Luiz Martins de Melo também não quis falar: “Eu estou no meio do cinema, tá?”, declarou Martins.
O reitor e os pró-reitores não quiseram gravar entrevista, mas, na última semana, receberam a equipe do Fantástico para uma conversa. Eles apresentaram uma tabela com o que seria o destino dos R$ 43 milhões do contrato com o Banco do Brasil. Junto da tabela, uma série de demonstrativos de despesas.
Carlos Levi afirmou que o contrato com o Banco do Brasil permitiu a UFRJ realizar seminários, congressos e recepções que custaram mais de R$ 9 milhões. Em obras prediais de manutenção e reformas, foram gastos R$ 10,7 milhões. E, só para a construção do restaurante universitário central, a UFRJ investiu outros R$ 7,3 milhões.
Instalações precárias
Mas esses investimentos não foram suficientes para resolver todos os problemas de infraestrutura da instituição. Outras instalações da UFRJ precisam de reformas urgentes. O Fantástico entrou no alojamento da universidade. São 504 quartos, uma moradia gratuita para estudantes que precisam desse apoio.

Uma sala de ginástica está em ruínas. Pelos corredores, há encanamento e fiação aparentes. Cabos de energia pesados ameaçam despencar. No teto há muitos buracos, como mostram as imagens de um dia de chuva feitas pelos alunos. Três dias antes da chegada da reportagem, também havia chovido. Pingos d’água caem das luminárias. Atrás das portas quebradas, a situação nos quartos dos estudantes é de assustar.
Natural de Acará, no estado do Pará, Deise é aluna de notas ótimas, e sempre trabalhou duro. Atualmente ela mora na cidade universitária da UFRJ. Passou em 2009 para o curso de Serviço Social. “É uma tragédia anunciada. O alojamento, para mim, é uma tragédia anunciada”, diz Deise.
Na planta do alojamento, os quartos são agrupados de três em três. Na maioria desses módulos, os estudantes têm um fogão alimentado por um botijão de gás. São três andares assim em cada prédio. E são dois edifícios. Técnicos em segurança ouvidos pelo Fantástico condenaram o uso de gás em lugar sem ventilação e com instalação elétricas que podem gerar curto-circuito.
Hospitais
Outro exemplo da necessidade de mais investimentos é o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, referência no tratamento de doenças graves, como câncer e hepatite. Dentro da unidade, alguns trechos estão alagados. Encontramos banheiros interditados e setores inteiros desativados. Cocôs de pombos cobrem uma cadeira próxima da enfermaria.

O presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, José Teixeira, pneumologista que se formou na UFRJ, aponta os riscos. “As fezes dos pombos provocam várias doenças graves e pode levar a óbito. Ainda mais numa pessoa com seu estado imunológico deprimido."
Fora da cidade universitária, outra unidade da UFRJ, o Hospital-Escola São Francisco de Assis, funciona num prédio tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. “Os médicos aqui são de uma gentileza que não tem tamanho. Nem parece que você está num hospital público. Inclusive entrou uma senhora aqui passando mal, e quem socorreu foi um médico pediatra”, diz Núbia Melo de Matos, auxiliar de creche. “Mas, se você entrar, você se assusta. Parece com a casa dos horrores", ressalta Núbia.
Pequenas obras emergenciais no telhado começaram a ser feitas, porque o prédio corre o risco de desabar.
A reitoria da UFRJ disse, em nota, que, por ser tombado, o hospital-escola apresenta dificuldades e altos custos para a realização de restaurações. Disse também que, desde janeiro deste ano, o hospital universitário passa por obras de reparo. Sobre a moradia dos estudantes, informa que trabalha em duas frentes: recuperação do atual prédio e construção de um novo complexo residencial.
Ainda segundo a reitoria, o reitor não teve conhecimento oficial sobre a ação do Ministério Público Federal, e por isso, qualquer manifestação da universidade sobre o assunto seria indevida e precipitada.
Histórico
A Universidade Federal do Rio de Janeiro é a mais antiga e tradicional instituição pública de ensino superior no Brasil. Fundada em 1920, conta hoje com 60 mil alunos e tem um orçamento anual de R$ 600 milhões.

Pelas várias unidades da UFRJ passaram personalidades como o arquiteto Oscar Niemeyer, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o poeta Vinícius de Moraes, o jurista Marco Aurélio Mello e os médicos Paulo Niemeyer e Ivo Pitanguy.