Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

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Uma história em fascículos (II)

do Blog de Joana Lopes, Portugal
No passado dia 2, divulguei um primeiro texto de Manuel Loff. Fica aqui o segundo (Público de hoje, sem link). Leitura mandatória.

Expresso decidiu oferecer gratuitamente aos seus leitores a História de Portugal em 9 fascículos, coordenada por Rui Ramos (RR). Nela, apresenta-se-nos uma ficção sinistra e intelectualmente cínica sobre a ditadura salazarista, procurando aquilo que, até hoje, ninguém na historiografia séria e metodologicamente merecedora do nome tinha tentado: desmontar a natureza ditatorial do Estado Novo. Como comecei a expor aqui há duas semanas atrás, é inaceitável que se pretenda consagrar uma leitura tão manipulada da História. 

Para RR, o salazarismo era “uma espécie de uma monarquia constitucional, em que o lugar do rei era ocupado por um Presidente da República eleito por sufrágio direto e individual” (pp. 632-33), que “reconhec[ia] uma pluralidade de corpos sociais (...) com esferas de ação próprias e hierarquias e procedimentos específico”, mas que só “não admitiu o pluralismo partidário” (p. 650). Nada se diz sobre o papel das eleições como simulacro de legitimação popular ou a fraude generalizada, realizada mesmo quando nenhuma candidatura alternativa se atrevia perante a do partido único, para inflacionar artificialmente a votação e simular um consenso que não existia. 

É inacreditável ver produtos típicos da fascização da sociedade, importados diretamente do fascismo mussoliniano, como foram os sindicatos nacionais, as casas do povo (verdadeiras “associações de socorro e previdência” que “desenvolviam atividades desportivas e culturais”) e os grémios corporativos, descritos como meras “associações” de “representação da população ativa” (p. 644), sem se escrever uma linha sobre a guerra total aberta aos sindicatos livres do período liberal, feita de prisões, deportações e mortes. 

Para RR, a repressão, definidora de qualquer ditadura, “tem de ser colocada no contexto do uso da violência na manutenção da “ordem pública””. Sem citar documentos, Ramos faz aquilo que ele próprio diz que “os salazaristas fizeram sempre questão” de fazer: “Comparar os métodos repressivos [de Salazar] com a ‘ditadura da rua’ do PRP” (p. 652), sustentada sobre o “trabalho sujo” de “gangues chefiados por ‘revolucionários profissionais’” (p. 591), empurrando o leitor a achar que a I República fora muito mais violenta que a ditadura. Esta teria sido tão generosa que muitos “conspiradores e ativistas conservaram as suas posições no Estado em troca de simples abstenção política”; contrariando quase tudo quanto se escreveu na História social e da educação do salazarismo, diz-se que “não houve saneamentos gerais de funcionários” (p. 653)! Pior terá sido a Revolução de 1974-75, em que “20 mil pessoas [se] viram afastadas dos empregos” e “pelo menos 1000 presos políticos” terão sido detidos, “7 vezes mais do que no fim do Estado Novo” (p. 732)... 

Espantados? Para RR, o salazarismo, afinal, “não destoava num mundo em que a democracia, o Estado de Direito e a rotação regular de partidos no poder estavam longe de ser a norma na vida política”. A democracia não existia nem na “Europa ocupada [sic] pela União Soviética”, nos “novos Estados da África e da Ásia” ou “mesmo na Europa democrática”, que “produziu monopólios de um partido (...), sistemas de poder pessoal (...), restrições e perversões” como “a proibi[ção] de partidos comunistas” ou “tortura e execuções sumárias” (p. 669). Em 1968, substituído Salazar por Marcelo, “a democratização não estava na ordem do dia” no mundo. Os “constrangimentos policiais”, justificados “no resto do Ocidente” pela “‘luta armada’ da extrema-esquerda” (pp. 697-98) que se inicia no final dos anos 60, eram semelhantes aos do Estado Novo. Eis aquilo que me parece puro cinismo: a democracia, afinal, não existia em lugar nenhum, o que esbate qualquer diferença entre ditaduras e sistemas liberal-democráticos, onde a violência do Estado e de classe coexiste com um mínimo de liberdade de ação para partidos e movimentos que contestem o Estado e os ricos. 

Da violência colonial, dos massacres perpetrados contra africanos, nem uma palavra! E a guerra? “A opção [de recusa de sair das colónias] não pareceu inicialmente excêntrica na Europa” porque “a retirada europeia de África só começou em 1960”, omitindo que ela começara dez anos antes. Se a guerra colonial (nunca assim designada, claro) “foi o maior esforço militar de um país ocidental desde 1945” (p. 680), as “guerrilhas” tiveram “reduzido impacto”, a guerra “não foi demasiado cara” e era “pouco mortífera”, e, “talvez por isso, o recrutamento nunca foi um problema” (pp. 684-85), o que é talvez o erro factual mais despudorado de todos quantos RR comete! Em resumo, “a guerra foi aceite” (p. 685) pelos portugueses. 

Dedução lógica: o que nos habituámos a chamar uma ditadura não era mais do que um regime semelhante aos que por lá fora havia, melhor até, no campo da repressão, do que muitos, a começar pela I República e o 25 de Abril! Em tempos de transição do Estado Social para o Estado Penal, como designa o sociólogo Loïc Wacquant à criminalização dos dominados que se opera nos nossos dias, o salazarismo voltaria a ser um regime para o nosso tempo!

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