DO BLOG DE ROBERTO ROMANO
sexta-feira, 11 de outubro de 2013
Jornal da Unicamp
Campinas, 07 de outubro de 2013 a 13 de outubro de 2013 – ANO 2013 – Nº 578
Por uma relação mais simétrica
Tese desenvolvida no IG relata exemplo de interação entre lideranças indígenas e a universidade
Os professores indígenas que atuam nas aldeias do país devem ser qualificados em nível superior. Mais que uma obrigação legal, este foi um direito garantido pela Constituição de 1988. A escola indígena tem reconhecidamente características que a diferenciam. Mas, apesar da criação do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind), em 2005, há, até hoje, apenas três experiências formais de terceiro grau indígena no Brasil. O trabalho pioneiro, realizado desde 2001, na Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), é objeto de tese de doutorado defendida pela pesquisadora Iraci Aguiar Medeiros no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. As outras duas experiências foram realizadas nas Universidades Federais de Roraima e Minas Gerais.
“O objetivo da pesquisa foi analisar uma experiência de articulação entre a universidade e o movimento indígena.
Verifiquei qual a relação do conhecimento tradicional indígena que os professores trazem para a universidade com o conhecimento científico, e como se dá a relação desses diversos saberes”, explica a pesquisadora.
Ecologia dos saberes é o termo utilizado pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos, para designar o conhecimento produzido na universidade a partir da interação com outros saberes. O tema é relativamente recente e suscita ainda muitos debates. Entretanto, a pesquisadora parte da afirmação de que, no caso da experiência da Unemat, que envolve uma relação intercultural, houve de fato a ecologia dos saberes, foco da tese.
Os professores indígenas que fazem graduação na universidade mato-grossense são provenientes de vários povos e etnias. O terceiro grau tem servido para resgatar tradições que estavam se perdendo nas aldeias. “Eles não vêm para a universidade só para aprender as ‘coisas de branco’ mas, a partir do envolvimento nos cursos, conseguem trazer de volta as tradições culturais da aldeia, músicas e rituais que voltam a realizar.”
A troca de conhecimentos e o uso de metodologia científica para o resgate de suas próprias vivências caracterizam, segundo Iraci, a relação intercultural. “Os indígenas fazem muita pesquisa com os idosos das aldeias. Eles conseguem, de fato, recuperar tradições que são registradas e podem compor material didático, passando a adotar aquela prática do conhecimento tradicional.”
A autora da tese ressalta o caráter coletivo de todas as decisões tomadas pelos povos originários. A decisão de enviar um professor da aldeia para a universidade parte de todos. “O interesse é coletivo, a aldeia é quem decide quem vem e a própria comunidade faz o acompanhamento do trabalho do professor. Ele repassa tudo o que aprendeu e tem um papel fundamental, porque é visto como um enviado que tem a oportunidade de estudar e assim ajudar seu povo”, afirma. Iraci complementa que o professor passa a ser uma liderança importantíssima na aldeia e, em alguns casos, torna-se cacique.
Na luta pela terra
O papel de liderança do professor indígena tem mais um sentido de ser. Ele funciona como o elo na relação da aldeia com a comunidade não indígena. Os professores que passam pelo terceiro grau aprendem a escrever, a usar computadores e toda tecnologia a que têm acesso com o objetivo de estabelecer uma relação mais simétrica com a comunidade não indígena. O ponto central para os povos indígenas é conseguir reivindicar seus direitos por meio das ferramentas que eles passam a dominar. “A manutenção da terra é fundamental para eles, é uma questão de sobrevivência”, salienta a pesquisadora.
De acordo com a autora da tese, no caso da Unemat todos os indígenas que frequentam a universidade moram nas aldeias, a maioria no Parque Indígena do Xingu. “Grande parte já está em terras reconhecidas ou em aldeias estruturadas. Mas há ainda os povos em conflito como os Xavantes, por exemplo.” Muitas lideranças dos movimentos que reivindicam a manutenção da terra foram alunos da Unemat. Os professores e os líderes das aldeias reconhecem, portanto, a importância do saber ler e escrever português como ferramenta de interlocução com a sociedade não indígena.
Movimento indígena
Antes de abordar a ecologia de saberes, a tese de Iraci se constitui em uma discussão sobre a trajetória do movimento indígena no Brasil desde a década de 1970 até os direitos conquistados na Constituição de 1988. A partir de 1990, a proposta do estudo é debater o protagonismo dos povos indígenas a partir da atuação dos professores na conquista das legislações e de uma série de direitos, entre os quais a manutenção da terra de origem. A educação escolar indígena diferenciada surge a partir da década de 1990.
A princípio sob a tutela da Fundação Nacional do Índio (Funai), a educação dos povos nativos passou para a esfera do Ministério da Educação (MEC), em 1990. “Houve uma série de conquistas formalizadas pela lei federal como, por exemplo, a lei que estabelece escola indígena diferenciada nas aldeias com professores indígenas, além da necessidade de formação do professor”. Toda a articulação do movimento indígena é recuperada na tese.
A mudança de paradigmas na oferta de educação escolar às comunidades indígenas foi gradativa, mas por muitos anos esteve pautada pela catequização, civilização e integração forçada dos índios à sociedade nacional. “Ou seja, servindo de instrumento de imposição de valores alheios e negação de identidades e culturas diferenciadas” salienta Iraci. No modelo de escola do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que precedeu a Funai, predominava a formação de trabalhadores rurais voltados para o mercado regional.
“Desde 1991 está em tramitação no Congresso Nacional um novo Estatuto dos Povos Indígenas, que envolve reivindicações e foi objeto de várias reformulações”, comenta Iraci, hoje coordenadora de projetos e programas na pró-reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Unemat. Na época de elaboração do primeiro curso de licenciatura, ela já estava na universidade e acompanhou todo o processo. Ela conta que participaram da criação dos cursos docentes de universidades paulistas como a Unicamp, USP e a Unesp, que já trabalhavam com o tema. Eles ajudaram a formar os professores que passaram a dar aulas para os indígenas.
Em 2001, ingressaram 200 professores. Na segunda turma foram 300, representando 44 etnias. Em 2006 formaram-se 186 indígenas. São cursos de Licenciatura em Ciências Sociais, Ciências Matemáticas e da Natureza, Línguas, Artes e Literatura e o mais novo deles, Pedagogia Intercultural. As aulas ocorrem no período de férias escolares nas aldeias, no campus da Unemat, em Barra do Bugres. Os cursos são realizados em parceria com a Fundação Nacional do Índio (Funai), Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação (MEC), Fundação Nacional da Saúde (Funasa), Secretaria deEstado de Educação de Mato Grosso (Seduc/MT), Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia (Secitec) e Prefeitura Municipal de Barra do Bugres.
A convivência das várias etnias indígenas com os professores dos cursos de licenciatura da Unemat também trouxe para a prática docente muitas mudanças. Iraci avalia que os docentes não índios passaram a perceber outras lógicas, “além do enfoque monocultural da ciência eurocêntrica”. A articulação entre os conhecimentos foi estabelecida. Um exemplo é a física, tão presente nas maneiras de medição do tempo entre os povos originários.
“Da parte dos índios, eles conseguem explicar, através da matemática e da geometria, a razão para os desenhos nas peneiras ou as pinturas que utilizam no corpo e que têm um significado ritual. Também identificam as formas do triângulo e do círculo e percebem a geometria na construção das casas.” Várias monografias dos cursos de licenciatura associam o conhecimento indígena ao não indígena.
Uma experiência que também se transformou em material didático foi a elaboração de um dicionário eletrônico, constituído de palavras que não existiam na língua indígena. No dicionário estará o nome da palavra e a referência da etnia de onde vem, o que significa em português e o desenho que mostra do que se trata. Interessante como foram feitas as adaptações da língua portuguesa para a língua indígena de palavras que nos tempos ancestrais não existiam como “avião”, “internet” ou “computador”. Avião na língua tapirapé passou a ser “xixinyara”, – uma variação da palavra libélula.
Metodologia
A pesquisadora entrevistou 48 professores indígenas e realizou três etnografias que geraram relatórios para a tese. No campus de Barra do Bugres, ela observou como eram as aulas de arqueologia, antropologia e informática, além de conhecer melhor a documentação do projeto. Na aldeia Umutina, município de Barra do Bugres, acompanhou a rotina dos professores e alunos na escola, e também o envolvimento da comunidade. “Precisava conhecer a proposta pedagógica da escola, a relação dos conteúdos com o aprendizado na universidade, e as contribuições desse processo para o fortalecimento da cultura e da identidade Umutina”.
A última etnografia foi relacionada ao processo de realização da I Conferência Regional de Educação Escolar Indígena, no Parque Indígena do Xingu.“As etnografias nos permitiram não só percorrer a trajetória da elaboração de um currículo multicultural no contexto da educação escolar indígena, como também mergulhar em suas práticas. No curso de formação de professores e em uma escola de aldeia, foi possível analisar e discutir o espaço/tempo da sala de aula e a relação entre o cotidiano e as perguntas colocadas pela pesquisa”, complementa.
Se a ecologia dos saberes é uma espécie de extensão ao contrário, como coloca o sociólogo criador do termo, na experiência estudada por Iraci os povos indígenas puderam até hoje se organizar e fortalecer suas tradições para poder lidar com os não indígenas. Para a universidade, ressalta a pesquisadora, o ganho maior foi a incorporação de uma nova visão de mundo que agrega à sua forma de produzir conhecimento, outros conhecimentos de outras culturas e línguas.
Publicação
Tese: “Ecologia de saberes? Estudo de uma experiência de interação da universidade com movimento indígena”
Autora: Iraci Aguiar MedeirosOrientadora: Leda Maria Caira GitahyUnidade: Instituto de Geociências (IG)
IHU/Unisinos/CIMI
Sexta, 11 de outubro de 2013
"Eles estão anunciando que vão tirar a gente à bala", dizem indígenas Terena
Cerca de 300 indígenas Terena foram atacados por homens armados em caminhonetes, no município de Miranda (MS), na noite de quarta-feira (9), depois de terem ocupado 3,2 mil hectares de fazendas que incidem sobre a Terra Indígena Pillad Rebuá, em processo de demarcação. Ninguém ficou ferido.
A reportagem é de Ruy Sposati e publicada pelo portal do Cimi, 10-10-2013.
Cápsulas de 9mm foram encontradas no local e entregues à Polícia Federal. Indígenas temem outro ataque na noite desta quinta-feira (10). Os Terena exigem que seja instituído o Grupo de Trabalho (GT) para finalizar o processo de identificação e demarcação de Pillad Rebuá.
Segundo os indígenas, depois de terem passado o dia inteiro sendo intimidados pelo vai-e-vem de caminhonetes e carros na porteira da fazenda - com homens armados nas caçambas -, a comunidade sofreu três ataques a tiros durante a noite.
"Nós estamos acampados no entorno da sede da fazenda. As caminhonetes circulam toda hora pela entrada, na porteira", explica um guerreiro Terena. "Entre às 8 e 10 da noite, eles atacaram o acampamento três vezes. Tava tudo escuro, não dava para ver. Os tiros vinham da porteira".
"No primeiro ataque, nós estávamos cantando e dançando, para fortalecer a nossa retomada", conta. Foi quando eles ouviram cerca de quatro disparos, e começaram a correr. "A gente gritava 'abaixa! abaixa!', ficou todo mundo assustado. Aí as mulheres, crianças e idosos se esconderam e nós organizamos um grupo de homens pra ficar acordado a madrugada toda". Durante a madrugada, os carros continuaram rondando a entrada da propriedade.
"Atiraram para acertar"
Para os indígenas, não resta dúvida de que os tiros não eram apenas intimidatórios. "Eles atiraram apra acertar a gente sim. Teve uma senhora que sentiu a quentura da bala. Atiraram contra a gente, acertaram a casa e o telhado, perfuraram um bebedouro", relata.
Os indígenas fotografaram as marcas de bala e recolheram nove cápsulas de calibre 9mm, munição de pistola de uso restrito das forças armadas.
Dois agentes da Polícia Federal estiveram no local, segundo relataram os indígenas. "Eles explicaram que não vieram ontem porque não tinham combustível. E hoje [quinta], só vieram para fazer um relato, eles ainda não tem como dar segurança".
Desde quarta, os Terena aguardam a chegada de uma equipe da Força Nacional de Segurança Pública, que estaria a caminho da fazenda ocupada. No entanto, a informação, segundo os indígenas, foi negada pelos agentes da PF que estiveram na área.
"Falaram que por enquanto nós temos que usar nossa estratégia, tirando foto. E se eu morrer, para que vai servir essa foto?", questiona o guerreiro.
"Nosso maior medo é um ataque deles [fazendeiros]. Na cidade, estão comentando a mesma coisa. Eles estão anunciando que vão tirar a gente à bala hoje à noite. Precisa vir segurança [Força Nacional e Polícia Federal] para cá". Os Terena afirmam que pistoleiros ligados aos proprietários e arrendatários da área ocupada estariam reunidos na fazenda Jambeira, na outra margem da rodovia BR-262, que corta a terra indígena.
Em declarações para a imprensa, os ruralistas dizem que se as autoridades não resolverem a questão, eles mesmos vão resolver.
"Nós realmente precisamos de apoio. Nós temos medo também da Polícia Militar de Miranda. Depois do tiro, pedimos que eles passassem aqui. Eles passaram com o giroflex desligado. Quem vem com luz desligada, nós sabemos que é fazendeiro. E os policiais vieram da mesma forma. Encontraram com a caminhonete que atirou em nós e não fizeram nada. A gente acha que a polícia está do lado dos produtores rurais. Nós estamos abandonados. Não temos nenhum amparo, nenhuma segurança. Até agora ficou tudo bem, mas e hoje à noite? E depois?", conclui.
Contexto
Até as retomadas de ontem, eram 2,2 mil indígenas em 94 hectares, divididos em duas aldeias, Moreira e Passarinho. A terra indígena teve o primeiro registro de reconhecimento pelo Estado em 1904. Um processo de demarcação teve início em 1950, mas não seguiu.
Na semana passada, como parte da Mobilização Nacional Indígena, convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), os Terena realizaram outra retomada na região de Miranda.
A fazenda, com 600 hectares, tem como proprietário Pedro Paulo Pedrossian, filho do ex-governador biônico da ditadura militar, Pedro Pedrossian. A área é parte da Terra Indígena Cachoeirinha, que faz divisa com a Pillad Rebuá.
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