Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

sábado, 30 de maio de 2015

Relato da quase chacina: Professor Donizethe

No dia em que o Massacre do Paraná completa um mês, conheça o comovente relato do Professor Donizethe

29 de Maio de 2015, por Tânia Mandarino
Na noite do dia 29 de abril de 2015, ao saber que vários companheiros tinham sido conduzidos até a delegacia, decidi me apresentar como voluntária para os companheiros que tinham sido conduzidos arbitrariamente até lá.
Na condição de diretora jurídica da Associação dos Blogueiros e Ativistas Digitais do Paraná – ParanáBlogs, e a pedido da família, assumimos a defesa de um deles, o Professor Donizethe -, no Processo 0013247-44.2015.8.16.0182, junto ao 2º Juizado Especial Criminal de Curitiba.
Todos estão sendo acusados de desacato e provocação de tumulto.
Neste dia, em que o aterrorizante Massacre do Paraná completa um mês, devidamente autorizados pelo Professor Donizethe, divulgamos o comovente relato que ele fez ao Ministério Público sobre aquele dia nefasto.
Para que ninguém se esqueça. Para que nunca mais aconteça!‪#‎NuncaEsqueçaQueméBetoRicha‬
Na foto, o professor Donizethe, no momento em que era agarrado pela polícia truculenta de Beto Richa.
Abaixo, seu importante relato:
Eu, Donizethe, professor da Rede Pública Estadual do Paraná desde 1996, relato a seguir o que vivi e presenciei no dia 29 de abril de 2015 no Centro Cívico de Curitiba durante protesto; manifestação pela garantia de nossas conquistas e direitos trabalhistas bem como preservação e salvaguarda do nosso Plano de Previdência.
Após passar a noite de terça, fria e chuvosa, no acampamento (nós professores e funcionários, carregados de tensão pelo ocorrido aos nossos amigos e retirada truculenta de nossos dois carros de som na madrugada anterior; de segunda-feira), passamos a de terça para quarta com muito estresse e alguns alarmes pelo fato da polícia querer avançar com o perímetro da cerca já demarcado no meio da rua que passa em frente à Assembleia, nesses momentos corríamos para o entorno do nosso meio de organização: o caminhão de som a fim de evitar que fosse removido novamente como na noite anterior, para mim todos foi impossível realmente dormir naquela noite tensa de frio e muita ansiedade.
Na quarta-feira após toda a manhã de protestos, intercessão de autoridades, tentativas de negociação de nosso sindicato, representantes e autoridades sensíveis à nossa causa, assim que começou a votação gritávamos a plenos pulmões a palavra de ordem: RETIRA! Pedindo a retirada do projeto que confiscava nosso fundo previdenciário.
Estava ali sem alimentação e pela angústia da situação não conseguia comer.
Nesse momento as bombas começaram e enquanto protestava em meio à fumaça das bombas que começaram recebi no rosto um jato de spray de pimenta que entrou em minha boca, garganta e olhos, pelas laterais, apesar dos óculos.
Como tive bronquite na infância e tenho rinite, fiquei sem respiração em meio à fumaça com uma blusa pequena de lã que alguém me passou para proteger o nariz, o que não resolveu o problema, andando sem rumo e me agachando em meio à fumaça me vi arrastado, sem enxergar bem por quem, afinal quase não conseguia abrir os olhos (registro em duas fotos que foram divulgadas na net; uma onde apareço no chão de jaqueta preta e outra onde fui arrastado para mais longe onde a jaqueta abriu, estragou o zíper e quase me foi arrancada por completo).
Após me levantar o policial me deu uma “gravata pelo pescoço, saiu me arrastando e deu ordem de prisão, identificou-se (não lembro o nome dito na hora) ao que respondi: “TUDO BEM”“.
Dali fui conduzido à rampa menor da Assembleia Legislativa de acesso para os Deputados. Lá permaneci durante todo o período do ataque aos professores sentado por ordem do policial que esteve o tempo todo em pé ao meu lado assistindo também à cena.
Não ofereci sequer resistência, em nenhum momento tanto que não fui algemado enviei várias mensagens informando a amigos e parentes o ocorrido e recebi outras tantas de conforto, amparo e providências, bati algumas fotos e gravei vídeos mesmo sentado (o que mostra que estou sem algemas, fato que pode ser comprovado pelas fotos e em vídeo quando mais tarde me juntei aos outros que foram detidos, os quais não conhecia e foram presos também durante esse dito “conflito”).
Da rampa via, ouvia todo o tumulto e os apelos vindos do caminhão de som da APP sindicato; via “nos bastidores” os policiais com os cães pitbull e outros correndo em direção à região do que chamaram conflito com caixas de papelão (tamanho médio) fechadas. Nesse momento passou por mim muito tenso e entrou na Assembleia o deputado Rasca.
Fiquei durante o conflito sentado na rampa com o policial em pé ao meu lado. Após fui encaminhado para outro lado da Assembleia (entrada do térreo) onde vi pela primeira vez os outros detidos, dos quais ainda não conhecia nenhum, também saiu em meio ao aglomerado de pessoas o deputado Tadeu Veneri que pediu a uma assessora anotasse nossos nomes solicitando informação de para onde nos levavam (aí alguém já filmava também). Vim a saber que para seria para o DETO em frente ao Tribunal de Contas.
Durante o trajeto de encaminhamento, numa viatura que parecia uma van com bancos precários de madeira, vi de perto e tive o primeiro contato com os outros seis detidos, entre eles um adolescente estudante (que segundo soube mais tarde tinha entre 15 e 16 anos), esse adolescente sentado no banco à minha frente tentava expor seu dilema, imaginando o desespero dos parentes, etc. Quando, percebendo sua agonia, toquei em seu braço olhei firme e disse: “Fica tranquilo tudo acabará bem sabem onde estamos, o deputado Tadeu Veneri pegou nossos nomes ele e a APP enviarão advogados; ajuda”. Momento em que, fui rispidamente advertido por um policial que ironicamente faz e responde a uma pergunta retórica: “Você é advogado? Não!? Então fica quieto!”.
Lá no posto improvisado do DETO ficamos um longo período sob um toldo que saía do carro para esse fim, dos nossos registros, enquanto garoava frio. Quando do início dos registros dentro dessa viatura, soltaram as algemas dos estavam nessa condição.
Os detidos procuram aliviar a tensão conversando entre si, explicando como foram pegos, arrastados relataram estarem alguns inclusive deitados no chão. Mostravam as escoriações e ferimentos sofridos, nesse momento alertaram que EU TAMBÉM TINHA FERIMENTOS NO ROSTO. Só pude ver bem mais tarde, não tive como olhar antes.
Alguns policiais entabularam conversa no meio, risos, diziam coisas como: “Onde vocês pesquisam isso que vinagre resolve, ajuda? Na internet?... Risos... Algum dos detidos comenta que a água lançada pelos policiais até pareceu ter aliviado ao que o policial acrescenta que o motivo da água É POTENCIALIZAR O EFEITO DOS GASES, PARA PENETRAR COM MAIS INTENSIDADE (fixação), colocou que ainda tivemos sorte porque DEVIDO À DIREÇÃO DO VENTO MUITO DOS GASES E BOMBAS depois vinham para o próprio lado deles... Risos deles...
Os detidos que ali estavam e que depois pude conversar e conhecer superficialmente, no total outros seis eram:
mais dois professores (um de Maringá e outro de Pinhais)
um menor (estudante de Curitiba)
um funcionário da Saúde (Hospital de Campo Largo)
um estudante de arte/música de outra cidade e
um cobrador de ônibus que citou ser parente de professor.
Dentre esses os ferimentos eram vários, sendo que citavam terem sido alvejados quando estavam de mãos para cima, rendidos ou mesmo atordoados deitados no chão de costas como no caso do funcionário da saúde que nos mostrou os vários ferimentos por “balas de borracha” (círculos feito pústulas em carne viva, com rasgos nas roupas), dos professores e do jovem com as tatuagens com várias escoriações visíveis nos braços.
Ali, no DETO, como a chuva intensificou, nos tiraram do relento e entramos para uma construção antiga confortável com assoalho em madeira, nesse local ficamos na recepção uns em pé, outros sentados no chão onde recebemos a visita rápida de advogados da DEFENSORIA PÚBLICA os quais se identificaram, perguntaram sobre nossas condições e depois, pelo que percebi, eram chamados a se retirarem.
Na delegacia aguardamos longo tempo, respondemos às mesmas informações novamente mediante preenchimento de novas fichas, quando os advogados começaram a chegar e entrar em contato conosco, muitas vezes foram repreendidos pelo policial que digitava com a alegação de que estavam “atrapalhando”, notei uma certa dificuldade de quem fazia isso de escrever ou preencher o que “deveria” (?).
Ali ficamos com os policiais que nos prenderam, precisavam citar e assinar algo. Em meio a isso ofereci aos presentes pastilhas de sal de fruta que tinha no bolso e acrescentei: “AGORA VOU SACAR MINHA ARMA CONTRA VOCÊS”... Retirei do bolso um envelope com CINCO COMPRIMIDOS DE DORFLEX (estava com muita dor de cabeça) e engoli um dos comprimidos a seco... Inclusive riram.
Me senti indignado na verdade. PORQUE SOFRIA VERDADEIRA AFRONTA AOS DIREITOS HUMANOS. Fui preso porque queria defender meu direito ao trabalho, salário e aposentadoria. SOU HUMILHADO EM MEIO A ISSO, tratado como um marginal nocivo à sociedade.
Após esse novo preenchimento de formulários, informações fomos encaminhados a outra sala (espera?), sem que os advogados pudessem entrar, mesmo com a porta aberta para o saguão (recepção).
Antes disso oportunamente os advogados nos disseram que estava acontecendo algo MUITO ARBITRÁRIO; o confisco dos nossos celulares com a imposição da condição de darmos a SENHA para a liberação no dia seguinte ou então esperarmos os “trâmites” e, possivelmente, obtermos novamente a posse após aproximadamente quinze dias (o que para nós explicitava com clareza alguma intenção de violação). Também ali, pouco depois, e contestando tudo aquilo estavam os deputados estaduais Tadeu Veneri e professor Lemos.
Esse “problema de cerceamento/controle” dos celulares, resolveu-se, APESAR DE ME TER SIDO DEVOLVIDO NO DIA APÓS NEGOCIAÇÃO DE ADVOGADOS E DEPUTADOS, gerou e causa ainda posteriormente um estresse contínuo, tendo afetado muito, inclusive, minha vida pessoal uma vez que meu celular estava totalmente aberto (NÃO USO SENHA), toda hora penso que meu celular foi grampeado, que estão rastreando, etc... Avisei aos amigos e parentes, fato que implicou por parte de alguns, também, certo receio e estamos restringindo o contato uma vez que diante das incertezas ou possíveis perseguições é comum as pessoas ficarem receosas.
Aguardamos sozinhos (sem os advogados poderem entrar) nessa sala, dali chamados por vez ante a presença do delegado para os registros e depoimentos. Como optei pelo silêncio na hora, não contestei sequer prestei atenção ali ao registro ABSURDO na acusação de porte de material cortante, etc. uma vez que estava atordoado pelo turbilhão de acontecimentos. COISA DESCABIDA, a acusação, que me pareceu depois quando li em casa o teor total: COMO ALGO PRATICAMENTE SURREALISTA, parecia um sonho absurdo. No meu entender, para um Estado Democrático, é praticamente algo doentio, insano para os dias de hoje um verdadeiro pontapé na democracia, construção da cidadania e dos direitos votar-se situações que interfiram na vida de milhares, ou melhor milhões sem discussão, sem
Resumidamente citei os ferimentos, de raspão, no meu rosto (observados pelos outros detidos), do efeito de asfixia e queimação dos gases, de como perdi a visão naquele momento, visto que não conseguia manter os olhos abertos e de como fora arrastado e preso. O que no meu ponto de vista naquela circunstância foi um SEQUESTRO; não prisão.
Não citei na ocasião A DORES INTENSAS DE CABEÇA E NO JOELHO ESQUERDO QUE SENTIA, porque imaginava isso não teria como ser comprovado e achando que logo tudo passaria. Citei no preenchimento da ficha o problema de limitação de articulação no braço direito que tenho desde a adolescência devido a um acidente, sinto muitas dores nessa região e tenho movimento limitado. Não mencionei o problema do colesterol elevado e histórico de infartos na família (parte materna), tomo medicação de uso contínuo: RUSOVAS e ASPIRINA. Naquele período de tensão, senti muitas vezes o coração por demais acelerado e muito desconforto. Naquele momento apenas lutava pela garantia de direitos.
Tendo registrado boletim, citei o problema do gás e spray de pimenta, a esfoliação no rosto, após liberação fui ao IML, acompanhado por parentes que me aguardavam na delegacia, para o exame de corpo delito.
O resultado de tudo isso? Além de todo sofrimento pelas lutas anteriores, retiradas de direitos, ameaças profissionais, insegurança em relação ao futuro, salário, aposentadoria, etc.
Um sentimento de decepção com a sociedade que desde jovem acreditei, idealizei, trabalhei e dentro das minhas possibilidades lutando para construir. Trabalho desde quando menor de idade, dez anos com registro em carteira antes de entrar para o Estado, fora os trabalhos informais (vendas de livros, estágios, etc.); sem registro (fato comum na minha juventude), somando-se aos vinte anos de serviço na Educação a se completarem em 2016.
Uma tristeza profunda no coração, um sentimento de humilhação, de desvalorização absoluta como ser e como profissional. Estamos sendo atacados em pontos cruciais da dignidade humana: a segurança, a liberdade de expressão, o direito de se posicionar na vida, de lutar pelos ideais, o direito ao trabalho e justa remuneração, à garantia de direitos historicamente conquistados, humilhados como pessoas e como profissionais. Penso que seja esse de certo modo o sentimento geral de quem se dedica à Educação nesse Estado, atualmente, de DESVARIO; INSANIDADE GOVERNAMENTAL.
ESPERO Sinceramente que os olhos das pessoas de bem do Brasil e do Mundo, da esfera política à social se voltem para esse acontecimento lamentável e a injúria que BRUTAL, VIL E COVARDEMENTE SOFREMOS NA LUTA pelos valores que nós professores, inclusive, ajudamos ou nos esforçamos para construir através da nossa labuta dentro da Educação. ISSO JAMAIS PODERÁ SE REPETIR, ser esquecido ou ficar sem apuração: SER, cinicamente, MINIMIZADO esse caso grave, repito, de desrespeito aos direitos e valores humanos.
Questiono, estamos ou não em uma democracia em pleno século XXI? Talvez nosso governador não tenha sido avisado ou, pior ainda, não saiba fazer a leitura de seu tempo nem tem o devido preparo e valores esperados para o cargo a que se propôs pelos encaminhamentos que dá às questões sociais.
Curitiba, 11 de maio de 2015.
DONIZETHE APARECIDO BARBOSA

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