Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012


A rebelde líbia que fugiu da revolução que ajudou a fazer

por KIKO NOGUEIRA 5 DE DEZEMBRO DE 2012 

Magdulien Abaida lutava pelos direitos das mulheres de seu país. Foi presa e depois espancada



Magdulien Abaida é uma moça bonita de 25 anos, com uma história como ativista das forças rebeldes que derrubaram o ditador da Líbia Muamar Gadafi. Deveria estar, neste momento, desfrutando da glória de ter ajudado a revolução em seu país e batalhando para reconstruí-lo. Mas não é isso o que acontece. Magdulien fugiu e acabou de ter seu pedido de asilo acatado no Reino Unido.
Filha de um advogado, ela cresceu em Trípoli, a capital. Durante os protestos, foi ao Cairo e a Paris para organizar o envio de medicamentos e alimentos para os rebeldes. Quando Gadafi caiu, mudou-se de volta a Trípoli para lutar pelos direitos das mulheres na nova constituição, que estava sendo escrita. Magdulien estava preocupada com os fundamentalistas islâmicos. Em outubro do ano passado, Mustafa Abdul Jalil, a face mais conhecida entre os revoltosos, falou, em seu primeiro discurso, sobre sua proposta de facilitar aos homens que tivessem mais de uma mulher.
No meio do ano, numa visita à segunda maior cidade do país, Benghazi, onde participava de uma conferência, Magdulien foi presa por membros de uma das milícias que se espalharam pela Líbia. Eles a capturaram em seu quarto de hotel. Foi detida, libertada, e no dia seguinte presa novamente na base da milícia.
“Nós queríamos mais direitos, não a destruição dos direitos de metade da sociedade”, disse para a BBC. “Alguém entrou na minha cela e começou a me chutar. Me bateu com sua arma, dizendo: ‘Vou matar você e te enterrar num lugar que ninguém vai saber qual é’. Me chamou de espiã de Israel, puta e vagabunda’”.
Com marcas de espancamento e temendo ser assassinada, Magdulien voou para a Inglaterra em setembro.
Seu caso está longe de ser isolado. Segundo a Anistia Internacional, as milícias armadas estão descontroladas, prendendo e torturando quem eles querem. O novo ministro da Justiça, Salah Marghani, ex-advogado especializado em direitos humanos, declarou que a Líbia precisa por um fim nos abusos, particularmente em prisões e centros de detenção.
“É muito triste se colocar em risco pela revolução e, no final, você ter de ir embora porque seu país não é mais seguro”, afirma Magdulien, que continuará sua campanha — mas a partir da cidadezinha de Sunderland. “Todos estávamos unidos, trabalhando juntos, mas agora ficou difícil. Se eles me pegarem outra vez, tenho certeza de que não serei solta nunca mais”.

No fim...



Dedicatórias e cartas encontradas em livros revelam histórias emocionantes que mexem com corações e mentes de donos de sebos do Rio

Publicado: 25/11/12 - 19h01
Atualizado: 25/11/12 - 19h02

Sylvio Massa e a foto da mulher. No sebo Baratos da Ribeiro, ele reencontrou a dedicatória que escreveu para a falecida esposa em um livro de J.D. Salinger, em 1966 Leonardo Aversa / Agência O Globo
RIO - Era uma noite de terça-feira insuspeita em Copacabana. No fim daquele dia, 23 de outubro, um grupo de frequentadores do sebo Baratos da Ribeiro faria exatamente o que faz há cinco anos: se espremeria entre as prateleiras abarrotadas da livraria para mais um encontro do Clube da Leitura, evento quinzenal em que leem trechos de livros e trocam impressões sobre contos próprios. Quando chegou a sua vez na roda, o dono do sebo e fundador do clube, Maurício Gouveia, tirou da gaveta um livro que guardava há dez anos escondido no acervo: um exemplar em italiano de “Nove contos”, do escritor americano J.D. Salinger.
Não tinha coragem de vendê-lo. Com as bordas amareladas e as páginas carcomidas, aquele “Nove racconti” guardava uma dedicatória em português na página de rosto que Maurício considerava mais bonita do que todo o livro do autor do clássico “O apanhador no campo de centeio”. Um homem comum — que poderia ser um médico, um vendedor de sapatos ou um trapezista de circo — declarava seu amor a uma mulher, em Milão, em 26 de dezembro de 1966. Maurício leu a dedicatória enorme, que começava com a frase “De tudo que vem de você, permanece em mim uma vontade de sorrir” e se encerrava com a oração “a vida é um contínuo chegar de esperanças”. Ao final, subiu o tom para ler o nome do santo: Sylvio Massa de Campos.
Foi quando um dos frequentadores do clube soltou um “opa!”. O jornalista George Patiño conhecia a família Massa, da qual Sylvio era o patriarca. Ele não vendia sapatos, trabalhava em circo ou morava em Milão: o matemático e escritor Sylvio Massa de Campos estava vivo, trabalhara a vida toda na Petrobras, tinha 74 anos e morava logo ali, no Leblon.
— Tem certeza? — perguntou Maurício.
— Trago ele aqui no próximo encontro — prometeu George.
Feito. No dia 6 de novembro, um senhor de cabelos brancos, sorriso fácil e porte altivo entrou no sebo acompanhado de duas filhas e três netos. Emocionado, recebeu das mãos de Maurício o livro perdido. Releu a dedicatória em voz alta, com pausas longas entre uma frase e outra, o que só aumentava o suspense na livraria, entrecortado pelo ruído dos netos inquietos. Depois de ser longamente aplaudido, contou aos novos colegas a história por trás daquela mensagem.
Em 1966, ele fazia mestrado em Matemática em Milão com uma bolsa do governo brasileiro. Lá, conheceu uma italianinha de nome Febea, que tinha concluído os estudos em Literatura em Londres, e acabava de retonar à Itália. Quando ela comentou que conhecia José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto, e que adoraria aprender português para ler Guimarães Rosa, Sylvio se apaixonou na hora: apesar de trabalhar com algoritmos, era na literatura que descansava seus teoremas. Prestes a terminar a pós-graduação, no entanto, logo voltaria ao Brasil. O amor foi construído à distância.
— Nosso namoro durou um ano, 136 cartas, nove livros, dois telegramas e um telefonema — contou Sylvio, para suspiro coletivo da plateia, e espanto das filhas, que não conheciam todos aqueles números. — Naquele tempo, dar um telefonema era uma fortuna. Esta dedicatória escrevi no dia do meu aniversário, já doido por ela. Eu nem sei como perdi o livro, acho que foi numa mudança nos anos 80.
Um ano depois, Febea veio morar no Brasil, e Sylvio montou um apartamento no Méier para ela. Tiveram duas filhas, Isabella e Gabriella — que a essa altura se debulhavam em lágrimas na livraria —, e viveram felizes para sempre. Até que um câncer levou Febea aos 41 anos de idade. Sylvio nunca mais se casou.
— A arte de viver é a arte de acreditar em milagres, disse o poeta italiano Cesare Pavese, e se hoje eu estou aqui é porque ele está certo. Febea foi a pessoa que eu amei mais profundamente em toda a minha vida. E ela está presente aqui, nessas cinco pessoas que fizemos, nossas duas filhas e três netos. Esse é o milagre — declarou Sylvio, lembrando, ao final, uma frase que ouvira do neto quando ele tinha 4 anos, e que levava como mantra de vida: “Vovô, nada é grave.”
Na rotina dos livreiros de sebos, dedicatórias anônimas aparecem com muita frequência. Mais até do que os exemplares usados de “O Xangô de Baker Street”, de Jô Soares, um campeão nacional em rotatividade. Os livros já chegam com cantadas, desculpas, felicitações, despedidas, malfazejos.
— O livro usado traz uma história que muitas vezes é mais interessante do que aquela que ele conta. Aqui na Baratos nós tínhamos uma caixinha para guardar os objetos encontrados dentro das páginas, como cheques, receitas médicas, ingressos de cinema, flores, contas, fotos... Daria uma exposição — comenta Maurício, que também guardou por algum tempo dois livros trocados entre amigos, com dedicatórias irônicas em que tentavam dissuadir o outro das suas convicções políticas (um era de direita; o outro, um anarquista convicto).
Mas acabou vendendo os exemplares. É da natureza da profissão: o livreiro não é um colecionador, mas um comerciante.
— Todo sebo começa do mesmo jeito, quando a pessoa precisa vender os próprios livros. Esta é a diferença de um livreiro para um colecionador. Só o livreiro tem coragem de se desapegar. Ele sabe que os livros que são de verdade voltam. Já encontrei livro que tinha sido meu em acervo que fui comprar. Todo lote sempre está cercado de histórias, seja uma morte, uma herança, uma mudança repentina de casa, de estilo de vida — explica Marcelo Lachter, que começou a vender livros usados há 14 anos e hoje é dono da Gracilianos do Ramo, um sebo virtual.
Mesmo defendendo o caráter comercial do ofício, Marcelo tem um “Nove racconti” para chamar de seu: há seis anos, guarda na gaveta um exemplar de “Recortes”, livro de ensaios de Antonio Candido publicado em 1993, na esperança de devolvê-lo à família do antigo dono. A história teve início em 2006, quando Marcelo recebeu o telefonema de uma moradora da Barra da Tijuca, interessada em se desfazer da biblioteca do marido, morto meses antes. Como era uma coleção especializada em Humanas, área com muita procura, Marcelo arrematou o lote todo. Antes de fechar negócio, no entanto, a viúva fez um pedido: caso ele encontrasse ali perdido um exemplar com uma dedicatória do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan ao marido, que devolvesse o título. Ambos tinham sido amigos de infância, perderam o contato e retomaram pouco antes de Malan tornar-se o braço forte de Fernando Henrique Cardoso.
Marcelo encontrou o livro e a dedicatória: “Meu melhor, apesar de distante, amigo. Espero que você goste deste ‘Recortes’, deste gênio literário e excepcional figura humana que é Antonio Candido. Precisamos ler coisas como estas para que não esqueçamos nunca de que há muito mais coisas na vida e no mundo que o nosso trabalho e nossas pequenas procupações cotidianas. Feliz aniversário, um abraço deste amigo e saudoso, Pedro Malan.” Mas perdeu a viúva de vista.
Outra história que aguarda um desfecho parecido é a de Nice Motta, de 46 anos, livreira há dez. Assim como Marcelo, Nice desistiu de uma loja física para se dedicar às vendas pela internet, suporte que salvou da falência milhares de livreiros no país, através do sucesso de sites como o Estante Virtual. Dona da Bola de Gude Livros, um acervo que ocupa 98% do seu apartamento na Vila da Penha, Nice é ainda mais romântica do que os colegas livreiros: ela embarga a voz cada vez que se depara com um fragmento de história perdida nos livros que compra e vende. É mais metódica também. Os objetos encontrados nos livros são reunidos numa caixa que ela guarda como um pequeno museu alheio.
Em meio aos objetos, há fotos, desenhos infantis, ingressos de espetáculos e até um passaporte para o Museu do Holocausto, na Alemanha. Há uma carta bem alegre: “Esta porra foi concebida pelo maior amigo putinho, mas com carinho. Uma beijunda e um abraçaralho deste que te escreve, com muito amor, 27/10/86, Edinho”); e uma muito triste (“À amiga Katia: cursei faculdade e não terminei, namorei cinco anos e não me casei, escrevi um livro e não publiquei. Minha vida segue em frente, sempre pela metade. Wagner, 73.”
Mas a pepita é um livro encontrado por ela em 2007: “O poder do jovem”, best-seller de autoajuda do parapsicólogo Lauro Trevisan. O exemplar tem duas dedicatórias. Uma escrita nas costas da primeira página: “Bruno, eu vi este livro e achei que você ia gostar. É coisa de mãe, fica tentando adivinhar o gosto do filho, eu queria te dar o mundo, mas é melhor você descobrir com a ajuda deste livro o seu mundo inteiro. Estou sempre aqui, filho, conte comigo, sua mãe, beijos, te amo, te amo e te amo, Rio, 15/03/02.”
Seria só uma mensagem emocionada, não houvesse a segunda, na página seguinte: “Rafael, este livro foi o último presente que eu dei para o Bruno, ele não chegou a ler. Como eu sei que ele te adorava, gostaria de dar a você, leia por ele e por você, com carinho, Clara, 15/03/06.”
— É muito emocionante pensar no amor desta mãe, que o filho morreu, e que ela teve o carinho de dividir o amor com o amigo do filho. Eu sou mãe, e sei como é inconcebível pensar na perda de um filho. Se ao menos eu pudesse repará-la em relação à perda do livro... — diz Nice, sonhando com um acaso que a coloque no caminho daquela mãe. — Trabalhar com livros é apaixonante. O livro não é só a história que o autor conta, mas a história que o antigo dono também conta.
No início deste ano, Nice encontrou outro volume de “O poder do jovem”, que ela ainda está pensando se vai para a caixinha ou não. A mensagem na folha de rosto diz o seguinte: “Para o meu querido neto Fábio conservar à sua cabeceira, e enfrentar a caminhada da vida sempre forte! E vencedor! 05/88, vovó Abigail Araújo.” Por enquanto, vai ficar lá.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Banksy

Jayme pergunta no fecebook: Tiempo de compras, consumismo, ausentismo en el trabajo, celebraciones con cualquier pretexto... ¿quién inventó la Navidad?


Jornal da Unicamp.

do blog de Roberto Romano

Campinas, 03 de dezembro de 2012 a 09 de dezembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 548

ALIMENTAÇÃO
DO FAST-FOOD
À IDENTIDADE NACIONAL

Leila Mezan Algranti e Carlos Alberto Dória
analisam, à luz da perspectiva histórica, o papel
das práticas culinárias na construção da nação

1
Pela primeira vez o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp sediou um evento em que o tema alimentação foi discutido à luz da história, do gênero e da cultura material. No início de novembro, um seminário internacional voltado a alunos de graduação e pós-graduação reuniu, no auditório da instituição, representantes de centros de ensino e pesquisa brasileiros e de Portugal em torno de uma série de temas relacionados aos saberes (e aos sabores) das práticas culinárias em diferentes épocas, do Egito Antigo à São Paulo novecentista, contemplando ainda o Brasil colonial.
Organizado pela historiadora e docente do IFCH Leila Mezan Algranti, o encontro expôs o interesse crescente das ciências humanas pela temática alimentar. Recentemente e de forma inédita em uma universidade pública paulista, o curso de graduação em História da Unicamp passou a oferecer uma disciplina intitulada História da Alimentação.
A iniciativa teve como inspiração a disciplina de pós-graduação Sociologia e História da Alimentação, ministrada no IFCH por Leila e por Carlos Alberto Dória, sociólogo e pesquisador do Instituto, e que também integrou uma das mesas-redondas do seminário. Ambos participam da entrevista a seguir, em que o tema central é o debate sobre a construção de uma identidade nacional a partir do que sai das panelas para os pratos nas mesas brasileiras.

Jornal da Unicamp – É possível, em um país com a história de colonização, a dimensão e as diferenças como as existentes no Brasil, estabelecer um símbolo culinário representativo de sua cultura gastronômica?
Carlos Dória – De verdade, não vejo porque se deveria estabelecer símbolos culinários representativos de uma determinada gastronomia. O valor gastronômico na atualidade reside justamente na diversidade, nos múltiplos caminhos do comer. A sociedade de massas, especialmente na sua fase globalizada, é desenraizada. É isso, aliás, que o fast food nos apresenta como espetáculo: cozinha chinesa, japonesa, italiana, brasileira, árabe. Somos todos comedores mundializados no gosto.

Leila Algranti – Durante a colonização, um dos grandes problemas a enfrentar na América portuguesa dizia respeito à alimentação enquanto necessidade básica para a sobrevivência. Isso é válido não só no dia-a-dia dos colonos, mas igualmente fundamental nas longas travessias marítimas e durante as expedições terrestres de reconhecimento do território. Sem víveres, seria impossível um empreendimento de tal porte. É por isso que os cronistas portugueses e demais observadores sempre descreveram com detalhes a natureza americana, a fim de informarem sobre a disponibilidade de alimentos que pudessem garantir e ao mesmo tempo incentivar a vinda dos colonos para esse lado do Atlântico.
É certo que os problemas enfrentados diferiram de região para região, assim como o sucesso ou não da aclimatação de produtos apreciados pelos europeus, pois por mais que os reinóis tenham consumido alimentos locais, sempre preferiram aqueles com os quais estavam acostumados.
Nesse sentido, não temos uma cozinha única no período colonial e sim cozinhas no plural, pois a culinária dependia do intercâmbio entre saberes europeus e aqueles relativos aos produtos americanos transmitidos pelos índios. Assim, se a mandioca foi durante muito tempo associada ao Nordeste, devido à sua abundância, e o milho ao Sudeste e aos bandeirantes, é preciso lembrar que durante os séculos XVII e XVIII a capitania de São Paulo, por exemplo, exportava trigo para as demais regiões.  Ou seja, sempre houve um conjunto de produtos importantes na alimentação colonial.
Desde essa época, portanto, é difícil falar em um símbolo culinário para o Brasil. Porém, a partir do século XVIII com a difusão do feijão ou dos feijões, talvez pudéssemos pensar em um produto que paulatinamente foi se tornando representativo de diversas regiões. Até porque são muitas as espécies de feijões e, segundo os especialistas, em cada região se consome hoje um feijão diferente considerado “típico”: feijão preto, roxinho, mulatinho, rajado, verde, etc. Com feijão se faz: feijão com arroz, feijão com farinha (de milho ou de mandioca) cujas combinações originam alguns pratos típicos, como o angu de feijão, o feijão tropeiro, o tutu de feijão, o acarajé, o baião de dois e por aí vai.
JU – Quais são os alimentos ou pratos que melhor representariam a cozinha tipicamente brasileira? Quais são os critérios para essas escolhas?
Carlos Dória – Eu não sei o que é cozinha “típica” brasileira. A não ser que recorramos aos níveis mitológicos da realidade. É preciso muita mediação histórica e política para se chegar a um conceito como esse. Tomemos Câmara Cascudo como exemplo: ele parte da noção pré-concebida de que somos um mix de heranças indígenas, negras e portuguesas. Essa é uma ideia que os Modernistas da Semana de Arte de 1922 propagandeavam. Isso foi há um século e é muito difícil amarrarmos nosso burro numa coisa tão distante. Nestes 90 anos decorridos, o modo brasileiro de comer mudou imensamente!

Leila Algranti – Além dos pratos feitos com feijão, temos muitos outros pratos considerados típicos: a moqueca, o vatapá, o caruru, a tapioca, o acarajé, o barreado, o frango ao molho pardo, o virado a paulista, o cuscuz, a maniçoba, e ainda numerosos doces feitos com frutos tropicais e açúcar, para citar apenas alguns. Todos esses pratos representam a nossa cozinha muito bem.
Porém, para falar de critérios de escolha ou como cada um foi alçado ao papel de prato típico é preciso estudar suas origens e sua história. Há trabalhos já desenvolvidos nesse sentido e há muito ainda por fazer. Mas é preciso também não esquecer que assim como o nacionalismo, as identidades culinárias e ou gastronômicas resultam de longos processos de construção, nos quais múltiplos aspectos e interesses políticos entram em jogo. 
JU – Como é possível pensar sobre a possível construção de identidade nacional baseada em hábitos alimentares, visto que a culinária brasileira reflete a influência de um mosaico sociocultural formado por processos migratórios e pela apropriação de elementos de outras culturas?
Carlos Dória – De onde vem a ideia de que identidade é refratária a trocas culturais com outros povos? Por acaso os imigrantes conspurcaram um corpo nacional “puro” que não existe mais? De modo algum! Somos o que somos justamente porque estamos “no mundo”, não como uma definição prévia, fora do tempo.
Somente no período de formação da nação, entre 1822 e mais ou menos 1890 esse tipo de postura, de fechamento da nação sobre si mesma, fazia sentido. Afinal, os intelectuais se perguntavam: uma nação ex-colônia está condenada a repetir a história da sua antiga metrópole? Esse é o drama de Euclides da Cunha, Silvio Romero e tantos outros. No plano da culinária, surgiu nos anos 1870 o Cozinheiro Nacional, livro que basicamente se perguntava se seria possível fazer uma cozinha nacional equivalente à francesa pela simples substituição dos ingredientes importados por ingredientes brasileiros como, por exemplo, trocar a alcachofra pela taioba. Em síntese, a identidade se faz e refaz constantemente, e para ser fértil, conectar o país com a civilização mundial, não pode se atrelar à tradição imutável.

Leila Algranti – Como já explicitado na pergunta, trata-se da construção de uma identidade e, para isso, antes de mais nada, é preciso haver um país independente e uma nação, algo  que no caso do Brasil,  só aconteceu no século XIX. Antes disso não temos um país chamado Brasil e tampouco uma cozinha ou cozinhas ditas nacionais. A história da edição dos livros de cozinha no Brasil talvez ajude a entender o papel da culinária na construção da identidade nacional e pode ser apenas um entre outros elementos utilizados para esse fim, tais como a existência de uma história oficial ou memória dos feitos da nação. 
No caso da culinária, o primeiro livro considerado “brasileiro” publicado no Brasil intitula-se Cozinheiro Imperial; é uma obra anônima da década de 1840. Trata-se de uma compilação de receitas de dois livros portugueses dos séculos XVII e XVIII, embora no prefácio o autor enfatize a necessidade de uma publicação com características da culinária local. Contudo, só uma entre as dezenas de receitas de doces disponíveis nesse livro foi proposta com um fruto tropical. As demais evocam produtos europeus.
O segundo livro “brasileiro” de cozinha, no entanto, chama-se Cozinheiro Nacional e foi editado às vésperas da proclamação da República (estima-se entre 1874/1888). Essa obra traz várias receitas com produtos tropicais ou locais, e essas possuem títulos alusivos ao Brasil. Um caso semelhante e já estudado aconteceu com a Bélgica. Nos anos 1900-1940, para reforçar sua identidade nacional, os restaurantes e menus passaram a nomear pratos antes fortemente marcados por uma influência francesa com novos nomes, todos eles referentes a cidades, regiões ou especialidade belgas, como por exemplo, “frango assado de Bruxelas”, “arroz de carneiro à nossa moda” ou “frango a Rubens”.
Assim, influência portuguesa, italiana e alemã no caso da culinária no Brasil, ou francesa no caso da Bélgica, leva-nos a perguntar: seria possível uma cultura que não tivesse se apropriado de elementos de alguma outra?
JU – Sabendo que a alimentação é determinada a partir de condições sociais, geográficas e econômicas, é correto dizer que o Brasil não tem uma identidade nacional por causa da existência de várias cozinhas regionais (como a gaúcha, a amazonense e a baiana, por exemplo), cada uma com suas particularidades e identificadas com as especificidades de suas regiões e de seus grupos populacionais, e que acabam constituindo identidades alimentares regionais distintas?
 Carlos Dória – Mesmo num país como a França, com uma centralização política forte e precoce, os regionalismos culinários permanecem e, inclusive, são hoje revalorizados dentro de uma perspectiva conservadora, como testemunhos da “velha França rural”. Mas há também uma leitura moderna, uma nouvelle cuisine de terroir, que valoriza de um modo diferente o passado.
Quero dizer com isso que sem diversidade não é possível estabelecer a dinâmica moderna da nação, que é um processo incessante de resignificação do que existe. Procurei mostrar num artigo recente (“Beyond rice neutrality: beans as Patria, Locus and Domus in the Brazilian Culinary system”, in Richard Wilk & Livia Barbosa (orgs.), Rice and Beans. A unique dish in a hundred places, NY, Berg, 2012), como um produto tão simples como o feijão, em sua diversidade biológica e de modos de fazer, permite que os cidadãos se situem na pátria, na região ou no lar. Vários produtos nos permitem esses trânsitos, mostrando que não há qualquer contradição entre identidade e diversidade.
Leila Algranti – Os autores que se dedicaram ao estudo dessa questão consideram que o nacional engloba o regional. Dito de outra maneira, a identidade regional estaria contida na identidade nacional. Para os adeptos do Manifesto Regionalista de 1926 a questão que se colocava, e poderíamos dizer que ainda hoje suscita debates, é: a afirmação de uma identidade nacional passa primeiro pela construção de uma identidade regional? Partindo-se dessa premissa, no caso da culinária, a paçoca confeccionada com farinha e carne pilada, hoje considerada um prato típico nordestino, não deixaria de ser um “prato brasileiro” ou representativo da culinária do Brasil, mesmo que preparado e consumido primordialmente no Nordeste.
  JU – A historiografia da alimentação no Brasil e os novos estudos sobre as práticas alimentares têm permitido contestar o discurso construído pelo movimento modernista da década de 1920 de que a culinária brasileira descendeu da mistura harmônica de hábitos de índios, negros e brancos. Como então se delineou historicamente a gastronomia brasileira?
Carlos Dória – Gastronomia, é bom que se diga, é a busca incessante do prazer ao comer. Uma diretriz hedonista que tem muito de subjetivo e do espírito de uma época. Ela muda sempre e, mais importante, não tem uma dinâmica determinada claramente pela política, pelo nacionalismo. Há momentos nacionalistas, é certo, mas eles não conseguem perdurar por muito tempo. A ideia modernista era generosa, sobretudo em relação aos negros. Dizia-nos que os negros também pertenciam à nação. Daí a ênfase na “contribuição” negra à culinária, o que é um exagero, pois escravos não eram senhores do próprio nariz, comiam o que lhes era oferecido numa espécie de ração animal.
Como então influenciariam o mundo do colonizador? De verdade, a própria culinária do Recôncavo Baiano, que nasce nos terreiros, só aparece organizada em sistema no final do século XIX, após a Abolição e com a unificação dos cultos religiosos. Os índios? Bem, estes já haviam sido dizimados há séculos...

Leila Algranti – Essa é uma questão bem interessante. Certamente vamos encontrar na culinária brasileira elementos das práticas alimentares indígenas, africanas e portuguesas, mas também de outros povos e culturas. Dizer que a nossa comida é uma mistura das três raças ou que esta foi a base da nossa alimentação é simplificar um processo bem mais complexo de trocas e de relações culturais que ocorreram ao longo da colonização entre conquistadores e conquistados. Além do fato de ignorar conflitos e tensões.
Essa ideia de que uma “pitada” de cada uma das três raças é que teria resultado em uma cozinha híbrida ou mestiça, não satisfaz totalmente. Vamos encontrar na culinária colonial, substituições de alguns produtos e incorporações de outros, mas também transformações na forma de processar os alimentos. Então não basta apenas captar o produto final desse intercâmbio, até porque não houve ao longo da colonização um sistema único alimentar, mas sim convivência e justaposição de regimes alimentares distintos. Se ocorreram substituições, como no caso da mandioca pelo pão de trigo, sinal de incorporação de hábitos e técnicas, também houve resistências.
Ao invés de atentar apenas aos resultados desse intercâmbio, a historiografia sobre a alimentação tem destacado a necessidade de se compreender o processo de constituição do que chamaríamos de culinária brasileira, e mesmo assim só a partir de finais do século XIX.
JU – O conhecimento dos hábitos alimentares na sociedade colonial brasileira está contribuindo para a definição de uma identidade nacional? O que já foi possível se trazer à tona acerca da constituição da cozinha brasileira, sobretudo em relação à incorporação dos hábitos alimentares europeus no Brasil e à adoção de alimentos originários daqui pelos portugueses?
Carlos Dória – Não creio que o conhecimento do passado alimente a culinária. Essa é uma perspectiva duvidosa, pois a cozinha é algo vivo, algo que se pratica, não o que se rememora. A idéia de “resgate”, defendida por uma historiografia e uma antropologia muito pobres teoricamente, só encontra eco no Estado, isto é, naqueles setores da sociedade sempre prontos para “monumentalizar” a vida.
Quanto aos ingredientes, é claro que os portugueses foram o povo que mais difundiu espécies pelo mundo, através do “comércio de leva e traz”. Isso aconteceu desde o século XVI. Garcia d´Orta, um cristão novo estabelecido em Goa, formou um pomar de onde se difundiu pelo mundo português dezenas de espécies. Inversamente, as “drogas do sertão” brasileiro se espalharam pelo mundo. As coisas se difundiam por serem úteis para todos. Dessa perspectiva é dificil estabelecer fronteiras. Por mais que nos identifiquemos com a manga, a jaca, ou a carambola, elas são frutas asiáticas.
Em relação aos pratos propriamente ditos, me chama a atenção a proximidade técnica entre a antiga cozinha portuguesa de origem rural e a cozinha indígena. Ambas eram fartas em caldos, cozidos, o que deve ter facilitado muito o diálogo. Depois vieram outros povos, cuja culinária ficou confinada em guetos e demorou décadas para ser assimilada, como é o caso dos japoneses, que chegaram no final do século XIX e só impuseram sua culinária na capital paulista por volta dos anos 1970.

Leila Algranti – Tenho estudado as práticas alimentares no período colonial – as quais, sempre é bom lembrar, não se resumem à comida, pois alimentação é bem mais do que comida – a fim de melhor compreender a colonização portuguesa na América. Interessam-me a sociedade e a cultura desse período, e a alimentação se apresenta como uma chave, uma categoria explicativa que ajuda na aproximação com os agentes históricos. Os historiadores começaram a explorar a temática bem mais recentemente do que outros cientistas sociais.

Os antropólogos, por exemplo, desde o surgimento da Antropologia como disciplina, prestam muita atenção aos hábitos alimentares das comunidades que estudam. Por outro lado, nas áreas biológica e tecnológica a produção de conhecimento sobre a alimentação é também anterior.  Não tenho me detido na questão da culinária como construção da identidade nacional, nem na questão dos saberes culinários em termos de patrimônio imaterial.  De qualquer forma, são temas recorrentes na historiografia.

Trabalhei mais de perto com a doçaria colonial e não creio hoje que tenha ocorrido uma simples substituição de produtos aliada às técnicas portuguesas. Surgiram novos doces, houve criação e transformação, além de incorporações, o que seria inevitável. Em termos dos temperos (especiarias, ervas secas ou naturais), por sua vez, os portugueses incorporaram vários produtos americanos tanto na culinária como na botica para fins medicinais. Este é um segmento da alimentação colonial (os temperos) que estou estudando no momento. Apresentei no Colóquio da Unicamp alguns resultados dessa pesquisa. 

JU – O Brasil é um país privilegiado em manifestações culinárias e gastronômicas. Entretanto, a gastronomia aparentemente não recebe a devida importância nas estratégias de promoção turística dos destinos brasileiros. Não haveria aí um paradoxo no aproveitamento dessa riqueza turística? Por que isso ocorre? Como mudar essa situação?

Carlos Dória – É verdade. O Estado brasileiro está de costas para a culinária. Se olharmos o Plano Nacional de Turismo só encontraremos lá uma única menção a comida. Mas não só o turismo. Os organismos de financiamento a pesquisas ainda acham que o tema é uma “frescura”, isto é, não pertence ao campo do que é culturalmente relevante.

É que as elites brasileiras sempre comeram olhando as mesas européias, parisienses, e olhar para dentro é mesmo uma heresia desse ponto de vista. É uma tradição distinta daquela das elites mexicanas ou peruanas. O México, graças à revolução de 1910, levou as elites a sentirem um certo “orgulho” da cultura pré-colombiana. Isso não houve no Brasil.

Por outro lado, o modelo turístico brasileiro tem sido nocivo à vida comunitária. Onde chegam os grandes pólos, como resorts, o que se vê é só desolação: especulação imobiliária, proletarização, falta de infraestrutura urbana, prostituição infantil, criminalidade. Há muitos estudos que demonstram isso. Então o paradoxo é mais profundo: se destrói quando se pensa “valorizar”.

Leila Algranti – Tendo a discordar dessa posição. Cada vez mais a gastronomia é um aspecto de interesse, haja vista o espaço que conquistou na mídia com programas na TV e canais especializados, além de cadernos semanais em periódicos importantes. As pessoas têm interesse e curiosidade em experimentar pratos típicos, mesmo sem viajar. Na chamada alta gastronomia os produtos nacionais estão cada vez mais em destaque.

O problema, me parece, não é com a gastronomia, mas com o turismo como um todo no país, onde é difícil e muito caro viajar. As facilidades de transporte dos produtos, as mudanças nos hábitos de consumo dos brasileiros e a velocidade nos meios de comunicação permitem um intercâmbio de conhecimentos até pouco tempo impensável. Porém, viajar para vivenciar essas experiências é certamente outra coisa.

JU – A valorização da gastronomia nacional não passa necessariamente pelo seu reconhecimento como bem patrimonial que merece ser protegido como expressão da cultura nacional? Por que isso não acontece? A falta de políticas públicas para o setor também ajuda a explicar porque a culinária brasileira ainda não tem o devido reconhecimento como bem cultural?

Carlos Dória – A valorização da culinária brasileira passa pela reforma do seu marco institucional. A legislação sanitária, por exemplo, é toda feita segundo o figurino da grande indústria. O artesanato não tem vez, pois não consegue atender às exigências descabidas no Estado no plano sanitário. É o caso do queijo Canastra, em Minas Gerais. Então, proteger significa, em primeiro lugar, elaborar um estatuto próprio de funcionamento dessa economia baseada na pequena agricultura, que aproxime produtor e consumidor sem a mediação dos processos industriais.

Esse quadro de exclusão está em contradição com os esforços internacionais por preservar modos de fazer, ingredientes e produtos ligados à pequena propriedade agrícola. A Unesco tem promovido esforços nesse sentido, visando à preservação cultural da diversidade. O mesmo em relação ao slow food. São pressões sobre o Estado e a sociedade e acabarão por produzir resultados, mas isso demorará.

Leila Algranti – Não penso que devamos ir transformando saberes culinários e alimentos em bens culturais ou patrimônios nacionais velozmente. Há excelentes estudos e especialistas que advertem sobre essa tendência patrimonializadora. Tivemos uma mesa-redonda no evento sobre História da Alimentação, na Unicamp, dedicada a essa questão do patrimônio. O tema é polêmico e foi defendida a posição de que um saber culinário deve ser entendido para além de seu valor identitário.  Muitas vezes esses saberes são formas de sobrevivência para muitas famílias e é isso que deve ser estimulado: a vivência, a dinamização de uma região, a tradição do modo de fazer e a sobrevivência desse envolvimento humano com a natureza e com a terra. Tendo a concordar com tal posição no momento e penso que é mesmo importante perguntarmos: o que desejamos preservar? O que se teme perder?

JU – Associada à imagem de charme e glamour, a gastronomia transformou-se em um fenômeno de massa no Brasil atualmente. A culinária ocupa espaços em dezenas de programas de televisão, cresce o número de cursos superiores na área e chefes de cozinha são elevados ao patamar de celebridades. A que atribuir esse aumento de interesse do brasileiro pelo assunto? Em que medida isso contribuiu (ou não) para a melhor percepção do valor cultural da alimentação na vida cotidiana?

Carlos Dória – É verdade. Nunca se falou tanto em comida no mundo. Talvez porque nunca, como agora, as pessoas estiveram tão desenraizadas de um conhecimento sobre alimentação e nutrição. Nos EUA, uma família só se reúne em torno da mesa umas 4 horas por semana. O resto do tempo é cada um por si. O Brasil segue esse caminho, e nos estratos superiores de renda, 50% dos gastos com alimentação já são efetuados fora de casa.

Quem ensina essa gente a comer? Ainda não é a escola. Então, surge a grande oportunidade para os meios de comunicação, para a glamourização dos chefs como a personificação de cozinhas sem cara e assim por diante. É um fenômeno mundial, com seus reflexos no Brasil. Mas falar sobre comida é um traço cultural melhor do que não falar sobre comida. Estamos nesse caminho, e podemos nutrir esperanças de que formaremos gerações culinariamente mais cultas do que somos.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Caminhando com Delfim, Stedile, Cabral, Fiesp, Maluf, Palocci e Zé Dirceu...

Sobre Fux, Dirceu e o STF

De PAULO NOGUEIRA 2 DE DEZEMBRO DE 2012

A louca cavalgada do juiz Luiz Fux por uma vaga no sonhado Supremo Tribunal Federal

Ia usar a palavra perplexidade para descrever o sentimento que toma conta do leitor ao ver, na Folha de hoje, a entrevista que o juiz do STF Luiz Fux concedeu à jornalista Mônica Bergamo.
Mas recuei ao me lembrar de que grandes filósofos como Sêneca e Montaigne defenderam a tese de que a perplexidade é atributo dos tolos, tanto os coisas de repetem ao longo dos tempos.
Então ficamos assim: é uma entrevista altamente reveladora sobre o próprio Fux, o STF e as ligações imorais entre a justiça e a política no Brasil.
No último ano do governo Lula, Fux, em busca da nomeação para o STF, correu sofregamente atrás do apoio de quem ele achava que podia ajudá-lo.
Está no texto de Bergamo: “Fux “grudou” em Delfim Netto. Pediu carta de apoio a João Pedro Stedile, do MST. Contou com a ajuda de Antônio Palocci. Pediu uma força ao governador do Rio, Sergio Cabral. Buscou empresários. E se reuniu com José Dirceu, o mais célebre réu do mensalão. “Eu fui a várias pessoas de SP, à Fiesp. Numa dessas idas, alguém me levou ao Zé Dirceu porque ele era influente no governo Lula.”

Paulo Maluf, réu em três processos no STF, também intercedeu por Fux, segundo o deputado petista Cândido Vacarezza, ouvido na reportagem de Mônica. Vacarezza era líder do governo Lula.

Palavras de Vacarezza, na Folha: “Quem primeiro me procurou foi o deputado Paulo Maluf. Eu era líder do governo Lula. O Maluf estava defendendo a indicação e me chamou no gabinete dele para apresentar o Luiz Fux. Tivemos uma conversa bastante positiva. Eu tinha inclinação por outro candidato [ao STF]. Mas eu ouvi com atenção e achei as teses dele interessantes.”
Fux afirmou ao jornal que jamais viu Maluf. Faço aqui uma breve pausa para notar que seu juízo sobre Fux não depõe muito, aparentemente, sobre o poder de discernimento de Vacarezza.
O contato mais explosivo, naturalmente, foi o com Dirceu. Na época, as acusações contra Dirceu já eram de conhecimento amplo, geral e irrestrito. E Dirceu seria julgado, não muito depois, pelo STF para o qual Fux tentava desesperadamente ser admitido.
Tudo bem? Pode? É assim mesmo que funcionam as coisas?

Fux afirma que quando procurou Dirceu não se lembrou de que ele era réu do Mensalão. Mesmo com o beneficio da dúvida, é uma daquelas situações em que se aplica a grande frase de Wellington; “Quem acredita nisso acredita em tudo”.

A entrevista mostra um Fux sem o menor sentido de equilíbrio pessoal,  dono de uma mente frágil e turbulenta. Considere a narração dele próprio do encontro que teve com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no qual acabaria recebendo a notícia de que atingira o objetivo: estava no STF.

“Aí eu passei meia hora rezando tudo o que eu sei de reza possível e imaginável. Quando ele [Cardozo] abriu a porta, falou: “Você não vai me dar um abraço? Você é o próximo ministro do Supremo Tribunal Federal”. Foi aí que eu chorei. Extravasei.”
Fux, no julgamento, chancelou basicamente tudo que Joaquim Barbosa defendeu, para frustração e raiva das pessoas que ele procurara para conseguir a nomeação, a começar por Dirceu.

Se foi justo ou injusto, é uma questão complexa e que desperta mais paixão que luz. Talvez a posteridade encontre uma resposta mais objetiva.

O certo é que Fux é, em si, uma prova torrencial de quanto o STF está longe de ser o reduto de Catões que muitos brasileiros, ingenuamente, pensam ser. Por trás das togas de Batman, dos semblantes solenes e do palavreado pernóstico pode haver histórias bem pouco inspiradoras.



poizé!


o puder, ah, o puder...


Em campanha para o STF, Luiz Fux procurou José Dirceu

Do Blog de Roberto Romano

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MÔNICA BERGAMO
COLUNISTA DA FOLHA 
O ministro Luiz Fux, 59, diz que desde 1983, quando, aprovado em concurso, foi juiz de Niterói (RJ), passou a sonhar com o dia em que se sentaria em uma das onze cadeiras do Supremo Tribunal Federal (STF).
Quase trinta anos depois, em 2010, ele saía em campanha pelo Brasil para convencer o então presidente Lula a indicá-lo à corte.
Fux era ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça), o penúltimo degrau na carreira da magistratura. "Estava nessa luta" para o STF desde 2004 --sempre que surgia uma vaga, ele se colocava. E acabava preterido. "Bati na trave três vezes", diz.

Sérgio Lima/Folhapress
Ministro Luiz Fux no prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília
Ministro Luiz Fux no prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília
AVAL
Naquele último ano de governo Lula, era tudo ou nada.
Fux "grudou" em Delfim Netto. Pediu carta de apoio a João Pedro Stedile, do MST. Contou com a ajuda de Antônio Palocci. Pediu uma força ao governador do Rio, Sergio Cabral. Buscou empresários.
E se reuniu com José Dirceu, o mais célebre réu do mensalão. "Eu fui a várias pessoas de SP, à Fiesp. Numa dessas idas, alguém me levou ao Zé Dirceu porque ele era influente no governo Lula."
O ministro diz não se lembrar quem era o "alguém" que o apresentou ao petista.
Fux diz que, na época, não achou incompatível levar currículo ao réu de processo que ele poderia no futuro julgar. Apesar da superexposição de Dirceu na mídia, afirma que nem se lembrou de sua condição de "mensaleiro".
"Eu confesso a você que naquele momento eu não me lembrei", diz o magistrado. "Porque a pessoa, até ser julgada, ela é inocente."
Conversaram uma só vez, e por 15 minutos, segundo Fux. Conversaram mais de uma vez, segundo Dirceu.
A equipe do petista, em resposta a questionamento da Folha, afirmou por e-mail: "A assessoria de José Dirceu confirma que o ex-ministro participou de encontros com Luiz Fux, sempre a pedido do então ministro do STJ".
Foram reuniões discretas e reservadas.
CURRÍCULO
Para Dirceu, também era a hora do tudo ou nada.
Ele aguardava o julgamento do mensalão. O ministro a ser indicado para o STF, nos estertores do governo Lula, poderia ser o voto chave da tão sonhada absolvição.
A escolha era crucial.
Fux diz que, no encontro com Dirceu, nada disso foi tratado. Ele fez o seguinte relato à Folha:
Luiz Fux - Eu levei o meu currículo e pedi que ele [Dirceu] levasse ao Lula. Só isso.

O puder, ah, o puder...


Rose e a sedução do poder 


do Blog de Roberto Romano

HTTP://REVISTAEPOCA.GLOBO.COM/BRASIL/NOTICIA/2012/12/ROSE-E-SEDUCAO-DO-PODER.HTML

Rosemary em 2008 no Perú  

NO PERU Luiz Inácio Lula da Silva (à dir.) em viagem ao Peru, em maio de 2008, com Rosemary no detalhe. Ela viajou 23 vezes ao exterior na comitiva do presidente (Foto: Celso Junor/Estadão Conteúdo)

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ENTREVISTA
A Gazeta do Povo publicou essa entrevista, mas cortada, retaliada. Aqui está inteira.

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Leonardo Ferrari é psicanalista com consultório em Curitiba e professor na Universidade Positivo, das disciplinas de Psicologia e de Estética nos cursos de Comunicação Social. Coordena também o Grupo de Estudos de Educação, Comunicação e Psicanálise e o Laboratório de Criatividade no curso de Publicidade e Propaganda desta Universidade.


Christian Schwartz  - Num belo livro, Lições dos mestres, o erudito George Steiner fala de certa dimensão, a “da troca, a de um Eros de confiança recíproca e, de fato, de amor”, que seria essencial às artes de ensinar e aprender. Esse é também o tema d’O banquete, de Platão, dileto discípulo de Sócrates. Tal dimensão da pedagogia ainda é possível na educação dos universitários de hoje?

Leonardo Ferrari - Em 1914, a direção do ginásio em que Freud estudou lhe pediu um escrito para comemorar o cinquentenário da escola. Ele escreveu, então, um de seus mais belos textos, chamado “Sobre a Psicologia do Colegial” (presente no volume 11 de suas obras completas na nova edição da Cia. das Letras). Nele, Freud conta o reencontro dele, adulto, com um antigo professor, pelas ruas da cidade. Desse encontro resulta uma questão fundamental: o que vale mais na relação entre aluno e professor, nessa relação transferencial? A ciência transmitida, o conhecimento repassado, o saber, ou a personalidade do professor que, de algum jeito, marcou a vida do aluno? Freud vai responder de um modo inquietante: o encontro de um professor com um aluno e vice-versa não é nunca um primeiro encontro; é um reencontro. Por isso os inevitáveis mal-entendidos, confusões e trapalhadas que podem acontecer. Um professor não é só professor para um aluno e um aluno não é só um aluno para um professor. É como se nessa relação aparentemente a dois, estivessem quatro, cinco, seis outras pessoas – foi o que Freud denominou de “condensação” em sua análise dos sonhos. Ora, aqui já se pode evidenciar que, se há amor nesse relacionamento entre professor e aluno, certamente não é o amor imaginário, o amor no sentido ingênuo, a dois, romântico – esse que acaba virando tema de curso para ensinar os professores a serem mais amorosos em sala de aula. É, sim, o amor de transferência. Poderá ou não ser construído pois não depende só da vontade ou da preparação de ambos, mas também do inconsciente de cada um. Ou seja, ele não é automático, não está dado em uma lista de nomes denominada “turma”, tampouco em uma nota ou conceito de avaliação. Um exemplo disso é o livro que trabalhamos em nossos estudos e que se chama “O Infante de Parma – A Educação de um Príncipe Iluminista” de Elisabeth Badinter. Lá está a família real do ducado de Parma, na Itália, em pleno século XVIII, contratando os dois melhores professores da época, entre eles o renomado filósofo Condillac, para educar seu filho nos trilhos do Iluminismo, ou seja, da razão acima de tudo. Entretanto, a realização do ideal da melhor educação não acontece. Pior, o aluno sai dos trilhos. Quando se torna príncipe depois da morte do pai, ele vai restabelecer os Tribunais da Santa Inquisição nos territórios de seu ducado, entrando na história com o apelido de “príncipe carola” – exatamente o contrário do príncipe iluminista que seus mestres planejavam produzir. Por que aconteceu isso? Porque o inconsciente não pode ser governado por ninguém, nem por reis, princesas, reitores ou diretores – não se legisla nem se decreta sobre ele. Lacan vai denominar esse desencontro que acontece todos os dias em sala de aula, de “aturdito”, ou seja, uma palavra que contém duas, “aturdido”, perturbado, atarantado, e “dito”. Essa impossibilidade de controlar o inconsciente decorre também do fato de termos aí dois seres falantes, o que introduz aí a complicação da linguagem. Os bichos, que já nascem sabendo o que fazer da vida, não falam, não se inquietam com essa coisa denominada universidade. No Banquete de Platão, há um general no auge de sua vida, Alcebíades, que está interessado em alguém que não lhe quer do jeito que ele gostaria, o feíssimo Sócrates. Como entender esse desencontro? Para descrever o estranho fascínio que Sócrates exerce sobre ele, Alcebíades usa a metáfora de uma estátua horrível, chamada pelos gregos de “sileno”, que, quando aberta ao meio, revela um “agalma”, objeto precioso. Eis aí o amor de transferência em ação: Alcebíades ama o que há em Sócrates e não Sócrates. Ama a voz de Sócrates, o olhar de Sócrates, mas não a pessoa de Sócrates, nem sua personalidade. O que lhe fascina é esse objeto precioso, esse não sei bem o quê que lhe acelera o coração, o faz caminhar mais devagar, o faz escutar com muita atenção, o faz se encantar. Alcebíades reconhece que com todos os outros não acontece nada parecido. Não foi exatamente a transferência o que reuniu nosso grupo de professores há três anos? Lembro de ter iniciado o trabalho com uma citação de Freud em seu clássico “O Mal-Estar na Civilização” – diz ele que a educação passa boa parte da vida ensinando o aluno a saber viver nos lagos italianos e, de repente, quando ele pisa fora da escola, depara-se com vinte graus negativos em pleno Polo Norte, e não nos lagos italianos. Esta é a questão que Freud traz para as universidades: vocês pensam em ensinar e aprender sem levar em conta o inconsciente? Pretendem ficar com a estátua horrível jogando fora o objeto precioso?

Christian Schwartz  - Uma distinção importante – recorrendo aqui a um dos autores da sua especialidade, Jacques Lacan – é a que opõe uma relação professor-aluno “imaginária”, talvez por demais idealizada de parte a parte, a outro tipo de relação, a do “simbólico”, em tese mais produtiva. Poderia explicar como, na prática, elas se dão?

Leonardo Ferrari - Lacan pensa a vida humana não no sentido de “zoé”, a vida comum dos animais e dos homens, mas de “biós”, que indica a vida própria de um indivíduo ou de um grupo. Essa distinção é de um outro pensador genial chamado Giorgio Agamben. Lacan vai pensar essa vida própria como estando sustentada por três registros fundamentais, o Real, o Simbólico e o Imaginário. Na prática, isso significa o quê? Significa que viver no Imaginário é viver desenhando mapas de lagos italianos, decorando a localização de cada lago, fazendo prova sobre eles, desconsiderando o Real do desejo que anima cada um dos alunos ali presentes – um desejo singular, não coletivizável – para um, viver no Saara; para outro, a paixão pelo gelo. Por que estes desejantes, agrupados pela universidade sob o nome de “turma”, devem estudar as mesmas coisas, ou seja, os lagos italianos? Por isso Lacan também verifica a existência do Simbólico, ou seja, a possibilidade de se organizar de outra forma, de outro jeito, levando em consideração o Real do desejo. Na prática, é a proposta de Lacan para o discurso vigente nas universidades: o cartel. O que é um cartel? Cartel é uma palavra derivada do latim “dobradiça”. Em sua etimologia já há a característica de passagem de um lugar para outro – ou, do Imaginário ao Simbólico e ao Real e vice-versa. Porém, a psicanálise não propõe a abolição do Imaginário, caso contrário acabaria a vida em sociedade. O Imaginário é fundamental, porém não da forma como em geral ele se apresenta, fixo, imutável, inflexível. O que um cartel propõe é uma reunião provisória de um grupo de pessoas que se escolhem mutuamente, com o compromisso de apresentarem um trabalho individual no final do percurso e organizadas em torno de mais uma pessoa, aquela que visaria garantir que isso não funcionaria como uma burocracia ou uma bagunça. Há um trabalho a ser feito. Qual? O trabalho particular, segundo o desejo inquietante, estranho, apaixonante, de cada um. Impossível de pensar isso em uma universidade? Nosso cartel comemora seu terceiro ano de existência dentro da Universidade Positivo. Isso quer dizer que ele deva ser tomado como modelo, como ideal para outras universidades? Não. Quer dizer que ele fez três anos de idade. Quer dizer que em cada um desses três anos ele produziu trabalhos e efeitos na prática de cada participante.
Christian Schwartz  - Como as mudanças na relação professor-aluno – atualmente, com um número muito maior de estudantes, ela é muito menos, digamos, “íntima” – transformaram a universidade em geral? E as novas tecnologias, contribuem para esse apagamento da antiga figura do mestre experiente e sábio, já que os alunos tendem a achar que podem ser autodidatas porque teriam o conhecimento todo “acessível” na internet?
Leonardo Ferrari - Eu acho que essas propaladas “mudanças” não são bem o que pretendem ser. Há um gosto enorme em julgar nossa época como “única”, “pós-moderna”, “avançada” porque a cada cinco minutos um novo objeto portátil tecnológico aparece trazendo “extraordinárias” novidades. Então, se fala muito em I-pad, I-phone,  como se  no tempo do meu pai e do meu avô não existisse a I-pandorga, o I-estilingue, o I-gibi, o I-figurinha, que fazia esses “excelentes” alunos aproveitarem qualquer momento para faltar aula, sair mais cedo, não aguentar os ideais que lhes tentavam passar goela abaixo. Quando perguntados sobre a escola, do que essa velha geração se lembra? Da pinta engraçada na perna daquela professora e do grito tresloucado do ridículo professor de educação física. É verdade que um certo saber foi adquirido, mas o foi por causa dessa pinta, por causa desse grito, por causa daquilo que havia ali de “inútil”, de fascinante para o desejo de cada um – e não por causa da melhor estrutura da escola, dos melhores professores e assim por diante. Há um mal-estar dentro das universidades que não se trata com “melhores” aulas (o discurso das competências) ou com “melhores” tecnologias (o discurso da ciência), nem com a demissão e substituição sistemática de professores como se eles fossem parafusos (o discurso do capitalismo selvagem). O mal-estar se chama sujeito do inconsciente, ou seja, aquilo que a ciência não quer saber, porém está lá, incomoda, é a pedra no meio do caminho do cientista, é o que não deixa marcas no tubo de ensaio, que não é visível no tomógrafo computadorizado e, no entanto, como já apontava brilhantemente Kant, estraga a neutralidade e a ingênua objetividade da relação sujeito-objeto. É o que faz o paciente irrequieto se queixar mais uma vez, “você me deu isso, mas continuo não me sentindo bem”. Foi essa exatamente a queixa que, no final do século XIX, levou uma paciente chamada Katarina a Freud, fazendo-o inventar e construir uma resposta completamente diferente da medicina, fundando o que se chamou psicanálise. O que ele fez? Inverteu a relação médico-paciente, professor-aluno e mestre-escravo. Ali, não era ele quem mandava, sequer ensinava. Ele se dispôs a aprender a radical diferença presente no discurso dessa mulher, a singular verdade de uma vida enclausurada por uma ciência cega e surda aos acenos e gritos de seu desejo. Com ela Freud entendeu que o sujeito do inconsciente não é uma pessoa, mas é aquilo que justamente contraria a ideia que fazemos de nós mesmos, a ideia de uma pessoa única, centrada, organizada pela razão e pela consciência. Sujeito do inconsciente é a resposta de Freud a Descartes, ou seja, ali onde penso não sou.  Em outras palavras, sujeito do inconsciente é essa pinta que me conduz, muda minhas escolhas, fixa meu percurso, me aturde cada vez que a reencontro.

Christian Schwartz  - Uma das grandes incompreensões em relação ao papel das universidades diz respeito à persistência, nelas, de um tipo de pesquisa tido por muitos como “inútil” – aquele que não dá “resultados”, não contribui para o “progresso”, nas chamadas Humanidades, por exemplo. Pensando no seu próprio campo de especialização, como responderia à pergunta: para que servem, nesse caso, as universidades?
Leonardo Ferrari - Lacan também passou pela universidade, deixando-a inclusive com uma tese rigorosa e inovadora sobre a psicose. Em uma linda homenagem à universidade, ele escreveu “De nossos Antecedentes”, onde vai demonstrar o quanto ele devia a uma série de mestres e ao saber que desenvolveu na universidade. O interessante é que ele nunca chegou a conhecer pessoalmente Freud, seu melhor professor e inesquecível mestre. Assim também, no capítulo mais emocionante do livro do George Steiner citado por você, em que o autor trata da relação entre Dante e Virgílio na Divina Comédia, constatamos que Dante nunca conheceu pessoalmente Virgílio, porém foi na obra deixada por este, a Eneida, que ele fez uma de suas primeiras descidas ao inferno. Freud foi para Lacan o que Virgílio foi para Dante. Lacan passou a vida relendo minuciosamente a obra de Freud, criando novos conceitos e abrindo novas perspectivas de pesquisa, uma contribuição admirável à universidade. Ler um autor, pensar com este autor e criar com este autor. Não está aí uma resposta possível para a pergunta “para que serve uma universidade”? Serve para caminharmos juntos e separados, próximos e distantes, pelas montanhas e praias, pelo centro e pela periferia, pela borda e pela terceira margem. Raul Pompéia, aliás, traz na sua obra-prima “O Ateneu” uma resposta fascinante. Após descrever o vale de lágrimas de sua passagem pela escola, fica a perplexa sensação de que sem esse vale de lágrimas não haveria esse resto chamado “O Ateneu”. Resto fecundo. Em relação ao inútil, seria a leitura de “O Ateneu” dispensável?  Quem julga o que é útil e o que não é? Uma comissão de “sábios”? Henry Ford declarou que se fosse  obedecer ao que o mercado estava pedindo na época, o útil, ele teria fabricado cavalos mais velozes, cavalos mais resistentes, cavalos mais lustrosos. Cavalos, não automóveis. De onde veio a ideia de fazer um automóvel? Por incrível que possa parecer, ideias inovadoras vêm de um conjunto de pesquisas aparentemente inúteis, como a análise de uma criança de cinco anos do Tatuquara, o jeito do besouro voar no Parque Barigui, a vida de um pequeno grupo na Sanepar, uma apresentação do grupo de dança do Teatro Guaíra, um pequeno conto de Dalton Trevisan, uma pintura de Guido Viaro, um único verso de Dante Alighieri e, não esqueçamos, da pinta da perna da professora. Sem essas “inutilidades”, a ideia de automóvel não vem. Aliás, sem essas “inutilidades”, pode existir “zoé”, mas não “biós”. Pode haver cursos, mas não universidade.