Há alguns dias deixei no meu mural do Facebook uma ligação para um post de J. Rentes de Carvalho publicado no Tempo Contado. A propósito da atual crise e da necessidade de muitos portugueses de classe média cortarem nas despesas correntes, referia-se aí o recurso imoderado aos serviços das chamadas mulheres-a-dias como sinal de um certo desperdício e de menosprezo pelo trabalho manual recorrente entre muitos de nós. A partir desse texto, abriu-se então uma conversa que divergiu em algumas direções: a necessidade ou o direito a fruir de trabalho manual pago, a relação entre esse tipo de serviço e o complexo horário de trabalho de quem a ele recorre, ou o modo como ele é importante para a economia doméstica das pessoas que dele fazem o seu meio de vida. No entanto, talvez tenha passado um pouco ao lado da discussão aquela que me pareceu ser a intenção do autor e a razão pela qual chamei a atenção para o que ele escrevera no seu blogue. Sublinho: a desvalorização do trabalho manual que afasta do horizonte de muita gente a simples possibilidade de sacudir uma passadeira, de cozinhar o seu próprio almoço ou de limpar o quarto de banho que sujou.
O tema é tanto mais pertinente quanto se sabe que no norte da Europa – objetivamente mais rico, com mais pessoas de vida desafogada – esse tipo de serviço é usado apenas em situações especiais, não diria raríssimas mas bastante limitadas. Além disso, trata-se por ali de um serviço muito bem pago. No seu post, o escritor invocava o caso holandês e a influência da ética calvinista, que conhece diretamente, mas poderíamos alargá-lo a outros exemplos e tradições. Ao seu comentário, que não será indiscutível mas no essencial faz para mim todo o sentido, posso entretanto juntar um outro. O costume da casa burguesa arrumada todos os dias, com tudo no seu lugar, os metais a brilhar e o ambiente a cheirar a limpeza recente, é típico das classes média e alta do sul da Europa. Um estudo sociológico recente que me foi relatado – não tenho a referência completa mas a pessoa que me falou dele merece confiança – refere a forma como essa obsessão cultural pela limpeza irrepreensível é responsável até pelo agravamento, em alguns países, das condições de trabalho das chamadas donas de casa, por sua causa forçadas a uma sobrecarga de trabalho. É possível cartografar esta situação: Portugal, a Espanha, o sul de França, a Itália. A ética católica será aqui irrelevante, uma vez que a Irlanda não participa deste culto do detergente e do espanador. No norte, de facto, ninguém se incomoda tanto em ter de tirar uma pilha de papéis de cima de uma cadeira para se sentar ou receber as visitas. Ou de ter os brinquedos dos miúdos espalhados pela casa. Ou de reparar em que está um pouco mais de pó sobre o parapeito. Não sei se não teremos de nos adaptar rapidamente a tais hábitos.