terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
ROBERTO ROMANO: O autor do artigo abaixo usa o título de um escrito célebre, de Sartre, no qual o filósofo apresenta as bases de sua teoria do saber e do mundo. O artigo toca em pontos essenciais da ética, sempre esquecidos pelos que militam na esquerda ou na direita. Cansei, quando estive preso no Presídio Tiradentes, de testemunhar pessoas que, saindo das torturas, defendiam a tortura, desde que fosse feitas pelo lado bom... O articulista recorda as situações de laboratório. Era o que sempre se dizia, nas celas da ditadura brasileira : quando eu e alguns outros nos colocávamos contra a tortura, em termos absolutos, vinha sempre a "hipótese": "e se no Vietnã, uma aldeia é cercada por marines, e um soldado norte-americano é pego, conhecendo os planos do inimigo? Torturá-lo não seria salvar a aldeia inteira? ". Sempre usei os mesmos argumentos apresentados pelo articulista. E, invariavelmente, recebia a resposta/acusação : "você é principista, pequeno burguês!". Enfim....a tortura é hedionda, covarde, instrumento de Estado e de partidos, como bem sabe o que estuda a URSS, a Alemanha nazista, a Itália fascista, o regime de Vichy, d ditadura grega, espanhola, portuguesa, as ditaduras argentinas, brasileiras, uruguaias, congolesas, francesas, belgas, norte-americanas, chilenas, etc. A boca do inferno, quando se abre, seu primeiro vocábulo é tortura. Não existe ética democrática que resista à tortura. A Santa Inquisição nos legou esta maldita herança, e suas justificativas. Basta ler o Manual de um Inquisidor. Malditos os torturadores de todas as crencas religiosas, políticas, ideológicas. Para sempre.
26/02/2013 - 03h30
Questão de método
Vladimir Safatle
Folha de São Paulo, 26/02/2013.
A filosofia moral, vez por outra, se vê
confrontada com problemas mal formulados que gostariam de se passar por
paradoxos astutos. Desmontá-los seria apenas um peculiar passatempo acadêmico,
se eles não aparecessem periodicamente como premissas de raciocínios tortuosos
na grande imprensa.
Tal astúcia constrói o que poderíamos chamar de
"paradoxos morais de laboratório". Trata-se de pequenos paradoxos do tipo
"podemos torturar alguém cuja confissão nos permitirá desativar uma bomba que
matará dezenas de inocentes?", com todas as suas variantes possíveis.
Do ponto de vista da filosofia moral, não há
exercício mais pueril do que procurar responder a tais inventivas. Pois elas
pressupõem condições de laboratório, como "sei que o sujeito torturado sabe algo
sobre a bomba", "sei que não há hipótese alguma de ter pego a pessoa errada",
"sei que ele falará antes de morrer", "sei que a razão de sua ação é
injustificável". Como ninguém mora em um laboratório, mas depende, no mais das
vezes, da sabedoria da polícia ou desta "inteligência militar" na qual Groucho
Marx viu a expressão mais bem-acabada de uma contradição em termos, tais
condições nunca são completamente asseguradas.
Mas paradoxos dessa natureza têm como
verdadeira finalidade fracionar a ação a fim de retirá-la de todo contexto
possível. Boa maneira de não começarmos por perguntar como chegamos a essa
situação.
Longe de ser uma enunciação neutra, essa é uma
enunciação profundamente interessada. Ninguém coloca uma questão dessas de
maneira inocente, como ninguém pergunta inocentemente se negros são, realmente,
tão inteligentes quanto brancos ou se o Holocausto, de fato, existiu na dimensão
normalmente descrita. Perguntar as reais motivações do enunciador é uma boa
maneira de começar a desmontar o paradoxo.
Pode ser, porém, que o enunciador queira apenas
insistir que, em situações excepcionais, a tortura aparece como o último recurso
dotado de certa eficácia. De fato, se tortura fosse eficaz, as favelas
brasileiras seriam um paraíso da paz. Melhor lembrar que a única eficácia
realmente comprovada da tortura é sua força de corroer completamente o que
restou das bases normativas do Estado. Pois se usamos a tortura contra o inimigo
n° 1 da democracia, por que não usá-la contra o n° 2, o n° 3... o n°
54.327?
Ninguém pratica a tortura sem se transformar no
verdadeiro inimigo da democracia. Por isso, seria o caso de perguntar: "Um
Estado que recorre sistematicamente à tortura merece ser salvo? No que ele se
transformou? Ele merece ser justificado diante de situações que, muitas vezes,
ele próprio ajudou a criar?".
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