Entrevista de 2012, UNISINOS
"Deus não morreu. Ele
tornou-se Dinheiro". Entrevista com Giorgio Agamben
"O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e
irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem
trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo
objeto é o dinheiro", afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe
Salvà e publicada por Ragusa News, 16-08-2012.
Giorgio Agamben é um
dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, Giorgio
Agamben foi definido pelo Times e por Le Monde como uma das
dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo
ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília,
Itália, onde concedeu a entrevista.
Segundo ele, "a nova ordem do poder mundial funda-se sobre um
modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a
ver com o que este termo significava em Atenas". Assim, "a
tarefa que nos espera consiste em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo
que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si
mesma, “vida política”, afima Agamben.
A tradução é de Selvino J. Assmann, professor de Filosofia do
Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
Eis a entrevista.
O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e parece ser a
única saída tanto da catástrofe financeira quanto das formas indecentes que o
poder havia assumido na Itáli. A convocação de Monti era a única saída, ou
poderia, pelo contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às
liberdades democráticas?
“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como
palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem
medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. ”Crise”
hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja
evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão
o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um
funcionamento que nada tem de racional.
Para
entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de
Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a
mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não
conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo
objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os
seus cinzentos funcionários e especialistas - assumiu o lugar da Igreja e dos
seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que
docilmente abdicaram de sua soberania ), manipula e gere a fé – a escassa,
incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de
o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um
grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a
qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa
“a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa
perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações
tão evidentemente absurdas e desumanas.
A crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus
pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade?
A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como
se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com
o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É
procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós,
europeus – são obrigados a interrogar o passado. Eu disse “nós, europeus”, pois
me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido, ele, como
hoje aparece como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos
ainda econômico, mas talvez consista nisso, no fato de que o homem europeu – à
diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história e
o passado tem um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua
verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as
contas com a sua história.
O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições, de
memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico
essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada
vez, para o que ele foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus (a
Itália, ou melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar)
têm com relação às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se
trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e
disponíveis; trata-se, isso sim, da própria realidade da Europa, da sua indisponível
sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com as autopistas e
a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas
de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens
culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens,
que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse
possível liquidar e por à venda a própria identidade.
Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa
nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens havia
chegado ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a não ser duas
possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american
way of life) ou o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a
celebrar as suas cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado
histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um
Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo
histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que
continua sendo humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz
de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de
alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida.
A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder
político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos.
Qual é o ponto de mediação possível entre os dois pólos?
Minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde
a sua origem, na separação entre vida nua (a vida biológica, que, na Grécia,
encontrava seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu
lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo, foi
incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o
fundamento negativo do poder. Tal separação atinge sua forma extrema na
biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam
aquilo que está em jogo na política. O que aconteceu nos estados totalitários
do século XX reside no fato de que é o poder (também na forma da ciência) que
decide, em última análise, sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não
é. Contra isso, se trata de pensar numa política das formas de vida, a saber,
de uma vida que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua.
O mal-estar, para usar um eufemismo, com que o ser humano comum se põe
frente ao mundo da política tem a ver especificamente com a condição italiana
ou é de algum modo inevitável?
Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além
do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a
ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical
das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem
do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define
como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas.
E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais econômico e funcional
é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até
poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das
pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade
as próprias decisões com a violência. As formas da política por nós conhecidas
– o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos
políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma
de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste,
portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora
havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida
política”.
O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania,
hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam
perdidos perante a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível atenuar
esta sensação?
Vivemos há decênios num estado de exceção que se tornou regra,
exatamente assim como acontece na economia em que a crise se tornou a condição
normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é,
pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que
se dizem democráticos. Poucos sabem que as normas introduzidas, em matéria de
segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se havia começado a
partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o
fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram
possibilitados exatamente pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o
poder, ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente
ele não dispunha das possibilidades de controle (dados biométricos,
videocâmaras, celulares, cartões de crédito) próprias dos estados
contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o Estado considera todo cidadão um
terrorista virtual. Isso não pode senão piorar e tornar impossível aquela
participação na política que deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por
videocâmaras não é mais um lugar público: é uma prisão.
A grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor,
investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que,
dizendo-o de forma banal, o futuro será melhor do que o presente?
Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como
escrevia Marx em carta a Ruge: ”a
situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.
Podemos fazer-lhe uma pergunta sobre a lectio que o senhor deu em
Scicli? Houve quem lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se
fosse uma homenagem devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros
viram nela uma indicação de como sair do xequemate no qual a arte contemporânea
está envolvida.
Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli,
pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A
situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a
crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que
o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio
passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente,
se tornam lugares problemáticos. Em uma sociedade que já não sabe o que fazer
do seu passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis
da mercadorização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que
são os museus de arte contemporânea, as duas coisas coincidem.
Duchamp talvez tenha
sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que
faz Duchamp quando inventa o ready-made? Ele toma um objeto de
uso qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e, introduzindo-o num museu, o
força a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente - a não ser o breve
instante que dura o efeito do estranhamento e da surpresa – na realidade nada
alcança aqui a presença: nem a obra, pois se trata de um objeto de uso
qualquer, produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de
forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque
aquele que assina com um irônico nome falso o vaso sanitário não age como
artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer
Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo.
Em todo caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte, mas
desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercadorização. Vocês
sabem: o que de fato aconteceu é que um conluio, infelizmente ainda ativo, de
hábeis especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de
arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp,
enchendo com não-obras e performances a museus, que são meros organismos do
mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o
dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras.
Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir
a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço.
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