Wstawać
do Blog A terceira noite, de Rui Bebiano, Portugal
Mais um post com algum tempo, neste caso quatro anos, que recupero do arquivo.
Primo Levi é figura nuclear da literatura testemunhal do Holocausto. Nasceu em 1919 em Turim e parece ter-se suicidado em 1987 na mesma cidade. Participou na resistência contra a ocupação nazi e a República de Saló, acabando por ser preso por milícias fascistas e, após ser descoberta a sua ascendência judia, enviado para o campo de extermínio de Auschwitz. Sobreviveu apenas por uma conjugação de acasos, um deles a condição de engenheiro químico que o tornou momentaneamente útil para os seus carcereiros. Foi com base nessa experiência-limite pessoal, e como expressão de um sentido «dever de testemunho», que Levi escreveu o primeiro livro, Se Isto é um Homem, com uma edição inicial de 1947 da qual – numa época em que grande parte dos potenciais leitores preferia não encarar relatos desta natureza – se venderam apenas 1.500 exemplares. Só em 1958 a editora Einaudi publicaria uma edição revista e com tiragem condigna. É desta obra – uma discrição objetiva, serena, contida, estranhamente desprovida de amargura, do brutal dia-a-dia de um prisioneiro de Auschwitz que se esforça a cada minuto por não esquecer a sua humanidade – que se transcreve um fragmento.
Assim se arrastam as nossas noites. O sonho de Tântalo e o sonho do conto inserem-se numa teia de imagens mais indistintas: o sofrimento do dia, feito de fome, pancadas, frio, fadiga, medo e promiscuidade, transforma-se de noite em pesadelos sem forma, de uma indescritível violência, que na vida livre acontecem somente nas noites de febre. Acorda-se a cada instante, gelado pelo terror, com um sobressalto de todos os membros, sob a impressão de uma ordem gritada por uma voz cheia de ira, numa língua incompreensível. A procissão do balde e o barulho dos calcanhares nus na madeira do chão transformam-se numa outra procissão simbólica: somos nós, cinzentos e idênticos, pequenos como formigas e grandes até às estrelas, apinhados uns contra os outros, espalhados por toda a planície até ao horizonte: às vezes fundidos numa única substância, uma massa angustiante em que nos sentimos presos em visco e sufocados; às vezes numa marcha circular, sem início nem fim, com uma vertigem obcecante e um mar de enjoo que sobe dentro de nós do peito até à garganta; até que a fome, ou o frio, ou a bexiga cheia dirigem os sonhos para dentro dos esquemas habituais. Procuramos em vão, quando o próprio pesadelo ou o desconforto nos acordam, distinguir os elementos e empurrá-los separadamente para fora da área de atenção atual, de forma a defender o sono da sua intrusão: mal os olhos voltem a fechar-se, mais uma vez sentimos que o nosso cérebro se põe a trabalhar independentemente da nossa vontade; bate e zumbe, incapaz de repousar, fabrica fantasmas e sinais terríveis, e desenha-os e agita-os sem parar num nevoeiro cinzento no écran dos sonhos.
Mas durante toda a noite, através de todas as alternâncias de sono, de vigília e de pesadelo, vigiam a espera e o terror do momento de despertar: graças à misteriosa faculdade que muitos conhecem, o homem é capaz, mesmo sem relógios, de prever o momento exato com grande aproximação. Na hora de despertar, que varia conforme a época do ano, mas que surge sempre muito antes do amanhecer, toca demoradamente o sino do campo, e é então, em todos as barracas, que o guarda da noite acaba o seu turno: acende as luzes, levanta-se, espreguiça-se, c pronuncia a condenação de todos os dias: – Aufstehen – ou mais frequentemente em polaco: – Wstawać.
Muito poucos esperam o Wstawać dormindo: é um momento de sofrimento tão intenso, que até o sono mais profundo se dissolve ao seu aproximar-se. O guarda da noite sabe-o, e é por isso que não o pronuncia em tom de comando, mas com voz calma e baixa, como de quem sabe que o anúncio encontrará todos os ouvidos preparados e será escutado e cumprido.
A palavra estrangeira cai como uma pedra no fundo de todas as almas. «Levantar-se»; a efémera barreira dos cobertores quentes, a leve couraça do sono, a evasão noturna, apesar de atormentada, caem em pedaços à nossa volta, e encontramo-nos acordados sem remissão, expostos à ofensa, atrozmente nus e vulneráveis. Começa um dia como todos os dias, a tal ponto longo que não se pode razoavelmente conceber o seu fim, de que nos separam tanto frio, tanta fome, tanta fadiga; pelo que é melhor concentrar a atenção e o desejo no pedaço de pão cinzento, que é pequeno, mas dentro de uma hora será certamente nosso, e durará cinco minutos, e, enquanto o não tivermos devorado, constituirá tudo o que a lei daquele lugar nos permite possuir. Ao som de Wstawać recomeça a tempestade.
Primo Levi, fragmento de Se Isto é um Homem (Lisboa, Teorema, 2008; trad. de Simonetta Cabrita Neto).
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