Legado para não esquecer
Vladimir Safatle - Folha de SP, 15.7.14
Não serei o primeiro a lembrar que, dentre os vários legados da Copa do Mundo, um dos mais duradouros será certamente a ampliação da zona de suspensão de direitos. O Brasil já era conhecido por seu histórico de violência policial, de desrespeito aos direitos civis e pela proximidade entre bandidos e a polícia. Nesta Copa do Mundo, a despeito da segurança contra manifestações políticas, tal processo chegou muito próximo da perfeição.
Enquanto todo o mundo se preparava para ver a final entre as seleções da Alemanha e da Argentina, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro mostrava, na praça Saens Peña, porque tem a palavra "militar" em seu nome.
Transformando praça pública em verdadeiras praças de guerra nas quais pessoas ficaram confinadas por horas à força, espancando jornalistas, moradores, advogados e ativistas de maneira indiscriminada --ao menos nisto eles são democráticos-- e prendendo por "formação de quadrilha" pessoas cujo maior crime foi manifestarem-se politicamente, as "forças da ordem" conseguiram impor um padrão de excelência em matéria de indistinção entre democracia e passado ditatorial.
Já em São Paulo, a ocasião de manifestações para a liberação de pessoas presas por estarem protestando, em vez de ficarem em casa vendo a gloriosa campanha da nossa grandiosa "famiglia Scolari" em sua luta renhida e emocionante contra os teutônicos, a polícia havia mostrado quão pouco realmente se deixa intimidar por certas "ideias abstratas", como respeito ao direito popular de contestação e às garantias constitucionais. Neste ponto, a Fifa fez bem em escolher países como o Brasil e a Rússia para sediar a Copa do Mundo. O nível da política de segurança interna dos dois países é, hoje, praticamente o mesmo.
O problema, como costumava dizer o filósofo italiano Giorgio Agamben, é que práticas de exceção, quando aparecem devido a situações, digamos, excepcionais (como Copas, Olimpíadas, uma invasão de argentinos, guerras ou catástrofes naturais) não desaparecem mais. Elas vão se tornando uma espécie de jurisprudência muda, que pode existir nas entrelinhas, sem precisarem ser claramente enunciadas para serem efetivamente seguidas.
Assim, ao ritmo de Copas do Mundo e Jogos Olímpicos, o Brasil joga fora suas máscaras para mostrar a mais clara ausência de complexo em relação a seus arcaísmos. Mas, para um país que conseguiu, no século 19, o feito de ser, ao mesmo tempo, liberal e escravocrata, qual, afinal, é a dificuldade em ser, agora, democrático e com uma polícia fora da lei?
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