Porque é que a cultura não é notícia?
Participei esta semana num debate organizado em Coimbra pela Escola da Noite e subordinado ao mote «Porque é que a cultura não é notícia?». Nele foi apresentado por Carla Baptista e Maria João Centeno, do Centro de Investigação Media e Jornalismo, um recente estudo no qual se procurou, a partir da observação das primeiras páginas de jornais portugueses publicados entre 2000 e 2010, fazer o diagnóstico da cobertura jornalística dos temas culturais. Este trabalho, «A Cultura na Primeira Página» (culturaprimeirapagina.fcsh.unl.pt) não responde diretamente à pergunta que motivou a sessão, mas ajuda bastante a perceber de uma forma sustentada algumas das razões que nos obrigam a colocá-la. E também a verificar que o modo como determinadas abordagens continuam a ser destacadas, como outras são remetidas para páginas secundárias e outras ainda pura e simplesmente desaparecem dos jornais, obriga a questionar a forma como neles o próprio conceito de cultura é entendido.
Os resultados do estudo confirmam aspetos desta realidade que não serão de todo surpreendentes, enquanto outros chamam a atenção para fatores cuja importância pode passar desapercebida na leitura diária mas que não resistem a uma análise atenta. Menciono algumas das conclusões apresentadas: a cultura «é nacional e lisboeta» enquanto «o resto é paisagem», há cada vez menos notícias culturais na primeira página, os autores «estão mais nas imagens do que as suas obras» sendo visível «uma fulanização da cultura», a primeira página refere-a sobretudo quando morre uma das suas figuras, os suplementos culturais são «menos e mais generalistas», o jornalismo praticado «não trata de política cultural» e é em larga medida «festivaleiro», a cultura «raramente é manchete», e, apesar de padecer também das falhas apontadas, o diário Público é de longe, honra lhe seja feita, o «campeão das notícias culturais na primeira página».
Colocar esta situação sob uma perspetiva histórica pode ajudar-nos a compreender como foi possível chegar a ela. Se nos anos finais do Estado Novo a cultura representava nos jornais um território no qual regime e oposição travavam um importante combate, e se durante a transição democrática passou a ser considerada uma arma ao dispor da construção de uma sociedade que se pretendia renovada e melhor, as décadas de democracia assistiram a uma inversão desse interesse. Nos anos 80 ainda era possível ver destacados os acontecimentos literários, os espetáculos de teatro, os festivais de música, as exposições de artes plásticas ou figurativas, o trabalho da crítica, uma atividade cultural cada vez menos apoiada pelo Estado mas ainda pujante. Porém, a partir dos finais da década de 1990, com a transferência de grande parte das publicações para grandes grupos económicos, com a redução dos apoios públicos, com a afirmação de uma cultura de entretenimento centrada na redução do gosto ao menor denominador comum, tornou-se quase natural o seu desaparecimento das páginas de rosto. Situação hoje agravada pela forma como os agentes da crise tendem a colocar, tantas vezes com a cumplicidade dos próprios jornais, os temas de cultura na prateleira das irrelevâncias despesistas.
A solução não está em encolher os ombros e aceitar ver nas primeiras páginas apenas as declarações das autoridades e dos responsáveis partidários, os escândalos de sociedade, os crimes de sangue ou as novidades do futebol, nem na nostalgia de um impossível regresso ao passado. Mas na produção de alternativas, também no campo da informação e do debate cultural, parte delas passando pelo online, em condições de alimentar um público mais exigente e de combater o estado de estupidificante anestesia induzido pelos títulos vazios e passageiros que todos os dias nos são atirados à cara.
Crónica publicada no Diário As Beiras.
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