Do coração e outros corações

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quinta-feira, 10 de julho de 2014

DUAS EPISTEMOLOGIAS EM DEBATE: PIAGET E VYGOTSKY

 Hoje, diferente das outras postagens, publico um capitulo que levei anos para pensar e se o fiz, foi graças à Adriano Ruiz, Regina, Clélia e aos alunos/as. 



DUAS EPISTEMOLOGIAS EM DEBATE: PIAGET E VYGOTSKY

In: MACIEL, L. S. B.; VIEIRA, R. A.; SOUZA, Fátima C. L. S.  PESQUISAS EM EDUCAÇÃO. Diferentes abordagens teórico-metodológicas.
Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2013. p. 161- 173

Marta Bellini
Regina Maria Pavanello

1 Introdução

Quando falamos em pesquisa tomando como referências dois pensadores do porte de Piaget e Vygotsky vemos, na maioria das vezes, uma classificação desses autores em aquele que estudou a cognição do sujeito separada das determinações sociais e aquele que pesquisou a cognição no contexto do social. Muitas investigações sobre as dimensões cognitivas ou acerca das representações mentais buscam em Piaget a dinâmica cognitiva dos sujeitos em seu desenvolvimento ou buscam em Vygotsky a dinâmica da linguagem. No entanto, acreditamos que essa classificação abandona o debate epistemológico que circunda as teorias de Piaget e Vygotsky.
Um trabalho científico quando apresenta clareza quanto a sua escolha epistemológica, ou seja, quanto à sua concepção de ciência e à maneira de como vai interpretar o objeto de seu estudo, torna-se útil pelas informações teóricas e conceituais que traz aos leitores. 
Um exemplo das consequências do abandono do debate epistemológico em pesquisas acadêmicas é o uso de termos ou conceitos em abordagens teóricas que relacionam o cognitivismo ou a Piaget ou a Vygotsky. O termo mediação, por exemplo, tem sido utilizado em trabalhos acadêmicos como processo, mas um processo linear em que o ambiente determina o sujeito indicando uma concepção de ciência empirista em que a cognição é determinada de fora para dentro do sujeito. Aceitaríamos essa concepção se antes o pesquisador não tivesse assinalado que se propôs a trabalhar em uma visão dialética.
É nesse sentido que neste texto discutimos as epistemologias que orientaram os estudos de Piaget (1896-1980) e Vygotsky (1896-1934) procurando discernir suas diferenças. Piaget e Vygotsky elaboraram projetos sobre o desenvolvimento da mente que superassem os postulados empiristas para a explicação da origem do pensamento abstrato predominantes, até então, nas ciências do homem. Consideramos, no entanto, que esses dois pensadores, embora possam ser vistos como próximos do ponto de vista do desenvolvimento de uma teoria da inteligência (como o faz Moscovici (2007), por exemplo), apresentam epistemologias que se opõem. Entretanto, faz-se necessário aqui, neste texto, assinalar que Vygotsky teve um olhar genético para as dimensões da linguagem e do pensamento valendo-se para isso de uma visão histórica não linear, ou seja, materialista histórica. Nossa intenção é assinalar que a diferença epistemológica tomando como ponto de partida as dimensões para o desenvolvimento da inteligência nos dois pensadores. Piaget centrou-se em quatro dimensões para o desenvolvimento da inteligência humana, a saber, a maturação, a experiência ativa, a transmissão linguística e a equilibração com um quarto fator que envolve os três primeiros.  Vygotsky traz dois fatores, o biológico e o social. O primeiro como componente humano primário e o segundo como fator essencialmente relacional que pensa a história do sujeito nas relações históricas que o cercam.
Quanto a Piaget sabemos que ele se dedicou, desde o início dos anos 20 até sua morte em 1980, aos estudos das epistemologias hegemônicas no século XIX ainda presentes no século XX. Os séculos XVIII e XIX presenciaram o debate sobre o desenvolvimento humano, no qual se envolveram Lamarck (1744-1829), Kant (1724-1804), Darwin (1809-1882), Hegel (1770-1831), Marx (1818-1883), Spencer (1820-1903) e Comte (1789-1857). Piaget, fundamentando-se em sua trajetória investigativa no universo das questões epistemológicas propostas por estes autores, conduziu por mais de 50 anos seu projeto de pesquisa elaborando, nesse trajeto, uma epistemologia que superasse os postulados empiristas.
Vygotsky, por outro lado, preocupou-se em estudar o desenvolvimento humano com o objetivo de ultrapassar os métodos descritivos e/ou fenomenológicos empregados pela psicologia russa das décadas de 20/30 do século XX. Nesse seu estudo centrou-se na investigação das ações conscientemente controladas (a atenção voluntária, a memorização e o pensamento abstrato) vinculadas à psicologia e à cultura. 
As mesmas preocupações não levaram, todavia, Piaget e Vygotsky a trilhar o mesmo caminho. Piaget desenvolveu uma epistemologia construtivista, sobretudo quando pesquisou as abstrações pseudo-empíricas e a reflexionante como derivadas da abstração empírica. Esses processos construiriam o sujeito epistêmico; um sujeito que representa a todos os outros sujeitos, mas a nenhum de nós, especificamente.
Vygotsky, centrado na questão de como os processos naturais se entrelaçam aos processos culturalmente determinados, elaborou o sujeito social que representa todos os sujeitos determinados historicamente. Este modo de pensar a cognição do sujeito manteve Vygotsky, a despeito de seu belo trabalho com crianças, jovens e adultos analfabetos, ligado a uma concepção empirista. Ou seja, o sujeito de Vygotsky é produto de determinações sociais, mas ele as interioriza de fora para dentro. As funções psicológicas superiores advêm da interiorização da cultura e da sociedade. São criadas do entrelaçamento biológico com a transmissão social. 

2 A epistemologia de Piaget: as quatro dimensões do desenvolvimento da inteligência

Como dissemos anteriormente, abordar a dimensão epistemológica em uma investigação revela como se constitui o pensamento de autor. Tratar da posição epistemológica de Piaget (1976) requer levantar o debate central de suas obras em torno dos três tipos de conhecimento: o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático e o conhecimento social.  
O conhecimento físico é o construído pela interação da criança com as propriedades físicas dos objetos e dos eventos. Desde o sensório-motor as crianças extraem dos objetos com os quais interagem aspectos como forma, textura, tamanho e aspectos gerais como mobilidade, por exemplo. Pela ação podem conhecer a mecânica dos objetos e pela observação as mudanças dos objetos (pensando no açúcar “desaparecendo na água”).
O que Piaget (1976) chama de conhecimento lógico-matemático é a ação mental da criança de classificar as ações que realiza. Por exemplo: crianças de 7 a 10 anos, fazendo experiência com flutuação de corpos na água, observam que um pedaço de sabão pequeno não afunda e um grande afunda. Elas concluem que objetos pequenos não afundam, os grandes afundam. Ao estabelecerem esta “divisão”, estão realizando o que chamamos de inclusão de classes: um ato de pensar que é lógico-matemático.
O conhecimento lógico-matemático é, então, aquele construído a partir do pensamento do sujeito sobre as suas experiências com os objetos e os eventos. Para essa construção o sujeito não tem diante de si o objeto ou os eventos. O pensamento lógico-matemático não é inerente ao objeto; ele é elaborado mediante as relações que o sujeito faz quando em suas ações pensa o mundo. O sujeito estabelece relações lógicas entre os objetos ou eventos e cria assim o chamado espírito dedutivo. É necessário dizer, no entanto, que da mesma forma que o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático também é construído a partir das ações sobre os objetos. É quando o sujeito é capaz de representar o objeto fazendo inferências lógicas. Por exemplo, se estivermos falando da construção do número teremos uma série de ações e relações interferindo e propiciando a elaboração do conceito de número. O conceito de número não surge apenas do fato de quantificarmos uma realidade, mas de várias ações mentais ocorrendo como um sistema de transformações.
Em outras palavras, é um grupo de ações modificando o objeto e possibilitando ao sujeito do conhecimento alcançar as estruturas da transformação. Uma operação é uma ação interiorizada. Mas, além disso, é uma ação reversível; isto é, pode ocorrer em dois sentidos, por exemplo, adição ou subtração, juntar ou separar. Assim, é um tipo particular de ação que constrói estruturas lógicas. Acima de tudo, uma operação nunca é isolada. É sempre ligada a outras operações e, como resultado, é sempre parte de uma estrutura total. Por exemplo, uma classe lógica não existe isoladamente; o que existe é uma estrutura total de classificação. Uma relação assimétrica não existe isolada. A seriação é uma estrutura operacional natural, básica. Um número não existe isolado. O que existe é uma série de números, que constituem uma estrutura, uma extraordinariamente rica estrutura cujas propriedades variadas têm sido reveladas pelos matemáticos (PIAGET, 1972, p.1).

Quanto ao conhecimento social, este não é extraído diretamente das relações sobre os objetos, mas de ações – interações – com outras pessoas e grupos sociais. Piaget (1976) enfatiza a transmissão social, a qual se constitui por meio da linguagem. Dessa forma, a aquisição social não pode ser vista apenas como advinda de uma transmissão cultural, como uma copia, porque ela sempre envolve uma atividade de representação social que envolve a atividade cognitiva.
Estes três tipos de conhecimento são constituídos graças à interação de uma quarta dimensão, a equilibração, que permite que a construção de um sistema auto-regulado, ou seja, de uma dinâmica das três dimensões que é própria dinâmica da inteligência, o próprio ato da cognição. Assim, temos intervindo na cognição os fatores:

1 A maturação – quando falamos em maturação isto significa falar em sistemas fechados e fechados. Os sistemas fechados são os ligados à hereditariedade; os abertos, os sistemas que construímos durante nossa vida. A maturação é condição necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento cognitivo. Precisamos trazer, então, mais uma dimensão necessária ao desenvolvimento da inteligência, a experiência ativa.

2 A Experiência Ativa – as ações sobre os objetos, as ações mentais e as ações sociais são experiências que permitem ao sujeito que conhece a construção do conhecimento físico e permitem a construção das noções de peso, volume, comprimento, área e outras. Se esta experiência possibilita a construção do conhecimento lógico-matemático, ela é também uma condição necessária, mas não é suficiente para o desenvolvimento da inteligência. Assim, Piaget fala em um terceiro fator, a interação social.

3 A interação social é a transmissão linguística que advém do intercâmbio de ideias entre as pessoas. É importante lembrar não se tratar aqui de transmissão em seu sentido empirista, mas de uma dimensão cultural, uma vez que a linguagem é também, como os outros objetos, construída. Como se trata de objeto socialmente construído, outras implicações desse processo estão sendo, hoje, estudadas, sobretudo do ponto de vista das Representações Sociais (DUVEEN, 1995).
Estes três fatores, no entanto, ainda que necessários, não são suficientes ao desenvolvimento da inteligência. Há um quarto fator a considerar: a equilibração que rege a coordenação entre os três fatores: maturação, experiência física (lógico-matemática) e a transmissão social.
O conceito de equilibração traz a novidade para a epistemologia genética e sobre o desenvolvimento da inteligência humana. É um conceito chave para a epistemologia piagetiana porque para Piaget o conhecimento não é copia da realidade. Se não é copia como explicar a construção do conhecimento? Não podemos, se o conhecimento não é copia do real, lançar mão da metáfora construção do conhecimento como um tijolo, que a cada um posto no cérebro, podemos fazer um muro. Para Piaget, a construção do conhecimento não é jogo no qual o tijolo é parte constitutiva do conhecimento.
Piaget pensa a construção do conhecimento como metáfora de um sistema de transformações, um sistema auto-regulado com processos de retroalimentação, um jogo cibernético. Daí que quando Piaget refere à equilibração, está falando do sistema de transformações que leva ao desenvolvimento da inteligência em um sujeito ou de um pensamento. Não existe uma dimensão ou fator, depois outro e, em seguida outro mais complexo de modo linear. O que existe é um sistema de transformações no qual entram em jogo o sujeito ativo, suas ações, seus sistemas de assimilação e acomodação, a construção das estruturas, os equilíbrios e desequilíbrios decorrentes do ato cognitivo. Esse sistema de transformação pode ser representado pela metáfora da cibernética, ou seja, sistemas com seus processos de alimentação e retroalimentação que se regulam a si próprios mediante a compensação progressiva dos sistemas. Vejamos Piaget:

Uma vez que já existem três fatores, eles devem de algum modo estar equilibrados entre si. Esta é uma razão para trazer ao foco o fator da equilibração. Há uma segunda razão, entretanto, que me parece ser fundamental. É que no ato de conhecer o sujeito é ativo e, consequentemente, defrontar-se-á com uma perturbação externa, e reagirá como fim de compensar e consequentemente tenderá para o equilíbrio. O equilíbrio, definido por compensação ativa, leva à reversibilidade. A reversibilidade operacional é um modelo de um sistema equilibrado, onde a transformação em um sentido é compensada por uma transformação em outro. A equilibração, como eu a entendo, é um processo ativo.
É um processo de auto-regulação. Acho que esta auto-regulação é um fator fundamental no desenvolvimento. Uso este termo no sentido em que ele é usado na cibernética, isto é, no sentido de processos com retroalimentação (feedback e feedforward), de processos que se regulam a si próprios mediante uma compensação progressiva dos sistemas. Este processo de equilibração toma a forma de uma sucessão de níveis de equilíbrio, de níveis que tem uma certa probabilidade que chamarei de probabilidade sequencial, isto é, as probabilidades não são estabelecidas a priori (PIAGET, 1972, p.5).  

Outra novidade da epistemologia genética é que equilibração significa abstração reflexionante, um tipo de abstração constituída das coordenações de ações ou operações do sujeito. Para Piaget temos a abstração empírica, a pseudo-empíirica e a refletida. Todavia, não são graus lineares de abstração. O processo de abstração é o processo de assimilação-acomodação e das regulações que permitem o enriquecimento das estruturas, da admissão de novas possibilidades, da capacidade de fazer inferências (previsão sem necessidade de constatação). Nesse sentido, a abstração reflexionante não se dá apenas no período das operações formais, ela ocorre desde o período sensório-motor. Vejamos:

Em um escrito póstumo (L S., 1987), Piaget dá um exemplo de abstração reflexionante no nível sensório-motor. O lactente constrói o esquema de conteúdo a continente (que lhe permite brincar de inserir um pequeno cubo em um maior) por abstração reflexionante a partir do esquema “colocar na boca”. O autor pôde, com efeito, observar um lactente que, antes de colocar um pequeno cubo em um grande, colocou o pequeno em sua boca (MONTANGERO; NAVILLE, 1998, p. 92).

O conceito de abstração reflexionante é um dos mais originais de Piaget (1976). O conceito de abstração foi estabelecido por Aristóteles e significava abstração empírica. Para Piaget este conceito significa abstrair a partir dos objetos, mas o sujeito não para ai, a atividade operatória do sujeito lhe permite atingir um grau mais rico de abstração o que sustenta a formação de novos conhecimentos.
Este modelo de equilibração refere-se ao jogo de contradições nas atividades cognitivas do sujeito. Por exemplo, aos cinco anos uma criança acredita que na transposição de quantidade de líquido de um copo estreito para outro mais largo, resulte menos líquido. Um ano depois ela avalia, na mesma situação, que há mais liquido no mais largo, porque o copo é mais gordo. Mais tarde ainda, ela coordena os dois aspectos: embora o copo possa ser mais estreito ou mais largo a quantidade de liquido se mantém.  Ela está reorganizando suas inferências ou lógica elementar, reorganização esta que podemos descrever como processo de equilibração ou de abstração reflexionante. 
Desta forma, o conhecimento não é uma cópia do real.  Para conhecer um objeto ou um evento não basta olhá-lo e elaborar uma cópia mental ou uma imagem. Para conhecer um objeto é preciso agir sobre ele. Conhecer é modificar o objeto, é compreender o processo de sua transformação e, em consequência, compreender o caminho pelo qual o objeto é construído. A operação é, então, a essência do conhecimento, é a ação interiorizada que modifica o objeto de conhecimento. Operação é ato de pensar; é o conjunto de ações mentais modificando o objeto. É uma ação que constrói estruturas lógicas. E a operação nunca é isolada, ela está sempre ligada a outras operações. Daí o que chamamos de sistema de transformações ou de estruturas cognitivas.  
Os conhecimentos são produzidos por desequilíbrio na interação. O apreendido é o conhecimento reestruturado. É um processo de construção e reconstrução contínua, no qual não há ponto de partida e não há ponto de chegada final. A generalização pode ser indutiva em um primeiro nível e, também, construída por outras novas formas de raciocinar, formas de inferir, formas de pensamento lógico. A generalização produz novas formas para atuar sobre os conteúdos de conhecimento: noções, conceitos, relações e tudo por abstrações reflexivas e por equilibrações sucessivas. Em consequência, o sujeito amplia seu poder dedutivo.
Se o poder dedutivo amplia-se isso significa falar das estruturas cognitivas ou sistemas de transformações – que comportam leis como sistema e conservam-se ou enriquecem-se pelo próprio jogo de suas transformações, sem que estas ultrapassem suas fronteiras ou façam apelo a elementos exteriores. Aqui Piaget (1976), mais uma vez, refina a definição do conceito de estrutura: ESTRUTURAS pressupõem um conjunto de elementos que tenham sempre as características: totalidade, transformação e auto-regulação. Totalidade ou estabilidade porque a relação entre os elementos (eventos no qual a criança age) nunca resulta em outro elemento estranho ao conjunto. Transformação, porque os elementos estão sempre relacionando dinamicamente entre si. Auto-regulação, porque uma estrutura nunca pode ser regulada por outra. Um exemplo: podemos pensar em quando uma criança soma números naturais ou faz outra operação e é capaz de chegar a outra operação mais complexa com números naturais.
É o que ocorre com a criança quando, por exemplo, é confrontada com o novo “objeto” vaca. Ela tem conhecimento das semelhanças com outros animais, porém há um novo evento – pode ser o som do animal, pode ser qualquer outra experiência ou ação. Então: ela pode modificar seu antigo esquema de conhecimento e acomodar este novo evento aos velhos esquemas cognitivos. Neste caso, ela transforma sua estrutura e acomoda um dado novo. A acomodação explica o desenvolvimento – mudança qualitativa – e a assimilação explica o crescimento – mudança quantitativa; juntos estes dois processos explicam o que Piaget chamou de adaptação intelectual. Assimilação e acomodação são pólos da adaptação cognitiva. Um pode ocorrer sem o outro deixando lacunas na construção da cognição. Uma pessoa que só assimilou estímulos e nunca fez acomodações acabaria com poucos esquemas (pouco enriquecimento da estrutura) e incapaz de detectar diferenças nas coisas. Veria somente o similar. Por outro lado, se uma pessoa somente fizesse acomodações e nunca assimilasse, faria um grande número de esquemas, mas pouco ricos para poder realizar o ato cognitivo de generalizar. Essa pessoa seria incapaz de detectar semelhanças; a maioria das coisas seria vista como diferente.
Este processo é o ato cognitivo, ou seja, uma atividade de organização e adaptação ao meio. As interações – assimilação e acomodação – são partes constituintes da adaptação. Temos aqui a construção de esquemas - subsistemas ou sistemas de transformações - que enriquecem as estruturas. Estrutura é um conceito que, conforme Piaget (1976), “não se define [...] pelo que a criança pensa, mas pelo que ela sabe fazer”. Isto não significa que Piaget seja um positivista. Para Piaget (1976) as ações que a criança faz indicam as possibilidades de coordenar as idéias entre si.
Vale apontar aqui que certa crítica a Piaget intitulando-o de positivista origina-se na confusão que muitos fazem entre empirismo e experimentação. De fato, para precisar o termo desenvolvimento em sua teoria, Piaget recorreu a uma exaustiva experimentação, mas tendo em foco seu plano teórico: o da construção de conhecimento tomando a noção de auto-regulação e sistemas de transformações como base. O trabalho “A equilibração das estruturas cognitivas” ilustra bem o modelo piagetiano para pensarmos a construção do conhecimento. Nele vemos a precisão do termo INTERAÇÃO em sua teoria: não se trata de falar de interação como um jogo linear entre sujeito e objeto, mas de estabelecer um modelo explicativo para os níveis de interação que ele denomina de EQUILIBRAÇÃO cognitiva.
Nesse caminho, Piaget (1976) “desenha” sua teoria de sistema auto-regulatório na qual a interação do Sujeito com o Objeto pode ser traduzida como uma relação dialética em que o sujeito passa de um nível de conhecimento (temos aqui que pensar nas diferentes abstrações e nas equilibrações) para outro, mais complexo. Nessa espiral helicoidal o conhecimento anterior não é superado ou substituído, mas enriquecido, diferenciando-se e integrando-se em um sistema mais complexo de coordenações. Por isso, Piaget fala de equilibração cognitiva e não simplesmente equilíbrio o que denotaria algo linear.
Pensando sobre o ato de conhecer, Piaget (1976) argumenta que tanto a realidade quanto as estruturas cognitivas do sujeito são transformadas constantemente em um autêntico “movimento do conhecimento”, um sistema de mudanças contínuas de controles e equilíbrios entre quem conhece e a realidade a ser conhecida. O que requer a criatividade do sujeito na invenção de novos meios de coordenação entre ele e a realidade.

3 O percurso de Vygotsky e uma epistemologia empirista de conhecimento

Luria (1988) contextualiza o surgimento da obra de Vygotsky como produto de um tempo em que os intelectuais russos questionavam o empirismo, o idealismo, a introspecção na psicologia. Esses intelectuais também eram produtos de um espaço em que a política, a educação e a psicologia eram repensadas. Estavam no início da Revolução Russa e novos projetos eram elaborados para acompanhar a mudança econômica, política e cultural da época.
Quando Vygotsky conheceu Luria e Leontiev, no II Congresso de Neurologia, em 1924, era professor na Escola de Formação de Professores em Gomel (Minsk) e estudava crianças com defeitos congênitos. Entre 1924 e 1926 o projeto de Vygotsky guiava-se pelas formulações: Quais eram os mecanismos psicológicos elementares que podiam ser estudados em laboratório? Como se davam as ações conscientemente controladas, como a atenção voluntária, a memorização ativa e o pensamento abstrato? Para Vygotsky (apud Luria, 1988) essas ações eram estudadas apenas pelos psicólogos mediante métodos descritivos ou fenomenológicos e, desse modo, pesquisava-se a mente desvinculada da cultura (LURIA, 1988.).
Em 1925 Vygotsky iniciou seu percurso em direção ao projeto sobre a construção social da mente. Estudou Pavlov (1849-1936), sobretudo a psicofisiologia, para obter daí um apoio materialista nas discussões sobre a origem da mente. Para compreender a evolução biológica dos homens estudou V. A. Wagner (1849-1934), especialista russo em comportamento animal. Para além dos estudos biológicos, Vygotsky pesquisou Kurt Levin (1890-1947), Bühler (1879-1964) e Köhler (1887-1967), por considerar o reflexo pavloviano insuficiente para a compreensão das realidades estruturais do comportamento complexo. Leu, também, a obra A linguagem e o pensamento da criança, de Piaget, da qual retirou o método clínico para estudar o processo cognitivo individual com o objetivo de descobrir as diferenças qualitativas das crianças em diferentes idades. Além dessas fontes, estudou Marx, marco de seu conceito chave de que a consciência é produto da transformação dos processos elementares aos processos complexos dentro das determinações culturais (LURIA, 1988).
Seu projeto era constituído de duas dimensões a serem pesquisadas, a biológica e a social. Como essas dimensões se entrelaçam? Como os processos de maturação física, os mecanismos sensórios elementares (os processos naturais) interagem com os socialmente determinados e produzem as funções psicológicas dos adultos? (LURIA, 1988).
Do ponto de vista metodológico, Vygotsky reuniu três fontes para sua pesquisa: a instrumental, com a qual estudou os comportamentos culturais como, por exemplo, “amarrar um barbante no dedo para não esquecer algo”; a cultural, pela qual investigou os meios socialmente estruturados que permitiam à criança se organizar em sociedade como a linguagem e o pensamento. A terceira fonte é a dimensão histórica. Nesta ocorre a fusão do indivíduo com o cultural. Aí o papel da linguagem torna-se vital, pois ela carrega conceitos culturais que, por exemplo, ajudam a escrita e a aritmética (LURIA, 1988).
Como se desenvolve a criança, então? No início as crianças são dominadas pelos processos naturais, isto é, a maturação física dos sistemas sensórios motores. A interação com os adultos faz nascerem os processos interpsíquicos: os adultos são agentes externos e, conforme as crianças crescem, os processos partilhados com esses adultos passam a ser executados dentro das próprias crianças. As respostas mediadoras da criança em relação ao mundo externo transformam-se em um processo interpsíquico que as leva à interiorização das informações historicamente organizadas. Esta organização é de natureza psicológica (LURIA, 1988).
A epistemologia que sustenta essa tese supõe dois tipos de conhecimento: um derivado do conhecimento físico (que é permitida pelos processos elementares) e, outro, o conhecimento social, ou seja, os conhecimentos gerados pela interação com os adultos. O sujeito é o sujeito passivo que mediante suas experiências sensório-motoras adquire as capacidades para ler, escrever e interagir com os adultos de uma sociedade historicamente determinada.  A partilha das crianças com os adultos é, mais uma, vez passiva. Destas, as crianças recebem e operam um conhecimento já pronto, sem lançar mão de equilibrações e abstrações sucessivas.

4 Considerações finais


Os postulados epistemológicos de Piaget e Vygotsky têm fundamentos diferentes. A hipótese piagetina para o desenvolvimento cognitivo centra-se na ideia de interação como processos de equilibração e a equilibração majorante, indicando sua distância do empirismo e do apriorismo. Afirmamos aqui que o postulado epistemológico de Piaget foi formulado na perspectiva dialógica ou construtivista. Assimilação e acomodação, interação entre o estado mental do sujeito com a representação do objeto são parte de um processo que constitui outro, o de adaptação. Este, por sua vez, é o processo de construção das abstrações empíricas, pseudo-empíricas e reflexionantes. O modelo desses processos leva a pensar o desenvolvimento mental como sucessivas construções (ou representações do real) que ocorrem dialeticamente nas quais não há primazia do sujeito nem do objeto (entendido aqui como as várias instâncias da sociedade).   
Vygotsky, ao contrário de Piaget, manteve o postulado empirista, ou seja, o da primazia do objeto sobre o sujeito. Vejamos: seu modelo de desenvolvimento da inteligência não ultrapassa as duas dimensões ou processos: a maturação e a transmissão social. Para ele a maturação é a dimensão biológica do sujeito e a transmissão social, o objeto. Esse objeto mesmo sendo histórico ou a própria história dos homens, não deixa de ser um objeto, um espelho que reflete a condição dos homens.
A ênfase na transmissão social indica um modelo de desenvolvimento cognitivo estabelecido pela ideia de que o espírito humano se submete ao real. Em outras palavras, o real, a história humana ou do modo de produção humano, reflete as condições sócio culturais à mente humana. A ação humana cede lugar à noção de interação proposta pelo modelo mental de zona proximal. Sujeito e objeto interagem-se: isto é uma verdade, porém interagem de acordo com a primazia da história, ou melhor, do objeto. Esse parece ser um limite da mente uma vez em que ela se aproxima da história, de seus conceitos em um movimento de quase preenchimento mental. Nesse caso, podemos dizer que há apenas acomodação do sujeito ao objeto, ou dizendo de outra maneira, do primado do social sobre o sujeito ou seu estado mental. Não há a assimilação, processo pelo qual o sujeito incorpora o objeto às suas estruturas ou sistemas de transformação.
A interação, que em Piaget significa assimilação-acomodação; abstração empírica-abstração reflexionante, fica subordinada ao objeto. O risco desse ponto de vista é tomar o desenvolvimento do pensamento como caixa-preta, uma vez que a linguagem é a única condição para determinar a interação entre os homens e sua sociedade. Vemos esse contexto epistemológico como próximo às teses behavioristas, ou seja, da ideia de estímulo-resposta enfocando um sujeito encerrado ou submetido às condições ambientais ou de sua história.
As diferenças apontadas aqui dizem respeito apenas às bases epistemológicas dos dois grandes pensadores, de essencial compreensão quando nos embrenhamos pelo estudo dos pensamentos, das abordagens metodológicas em nossas pesquisas e nossas orientações.  Acreditamos que ambos, Piaget e Vygotsky, trazem contribuições inestimáveis ao pensar o desenvolvimento da inteligência das crianças, jovens e adultos. Porém, a singularidade da teoria de Piaget está em ultrapassar aquilo que a teoria de Vygotsky mantém, ou seja, a relação entre um sujeito passivo e um objeto – a sociedade – que impõe sua forma e conteúdo. Para a teoria piagetiana, não há primazia do objeto nem do sujeito, o que existe é uma interação em que ora o conhecimento sugere a primazia do sujeito, ora a do objeto, mas nunca nenhum dos polos fica em evidência.
Quando Piaget centrou a construção do conhecimento ou da dinâmica da inteligência indicando as quatro dimensões como condição de transformação das estruturas, da constituição dos significados humanos trouxe ao debate uma epistemologia que afastava, definitivamente, o postulado empirista para pensar a construção da inteligência e dos conhecimentos. Vygotsky, ainda que tenha apresentado ao mundo como podem nascer seres pensantes e livres em uma sociedade miserável como a Rússia antes e logo após a revolução de outubro de 1917, sustentou sua teoria no postulado empirista, para o qual o objeto história impunha-se ao sujeito. Talvez, tenha sido o gênio revolucionário em uma Rússia pós-revolucionária que com otimismo viu na história o princípio mais importante no desenvolvimento dos homens. Mais tarde, Piaget inverteu essa equação: nem ao sujeito nem à história, um é o outro.



Referências

DUVEEN, G.. Crianças como atores sociais: as representações sociais em desenvolvimento. In: GUARESCHI, Pedrinho; JOVCHEVITCH (Org.). Textos em representações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

LURIA, A. R. Vigotskii. In: LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/EDUSP, 1988.

MONTANGERO, J. ; NAVILLE, D. M. Piaget ou a inteligência em evolução. Porto Alegre: Artmed, 1998.

MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais. Investigação em Psicologia Social. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

PIAGET, Jean. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.

PIAGET, Jean. Desenvolvimento e aprendizagem. Fonte: PIAGET, Jean. Development and learning. In: LAVATELLY, C. S. e STENDLER, F. Reading in child behavior and development. New York: Hartcourt Brace Janovich, 1972. Tradução de Paulo Francisco Slomp.


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