Hoje, diferente das outras postagens, publico um capitulo que levei anos para pensar e se o fiz, foi graças à Adriano Ruiz, Regina, Clélia e aos alunos/as.
DUAS EPISTEMOLOGIAS EM DEBATE: PIAGET E VYGOTSKY
In: MACIEL, L. S. B.; VIEIRA, R. A.; SOUZA, Fátima C. L. S. PESQUISAS EM EDUCAÇÃO. Diferentes abordagens
teórico-metodológicas.
Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2013. p. 161- 173
Marta Bellini
Regina Maria Pavanello
1 Introdução
Quando falamos em pesquisa tomando como referências
dois pensadores do porte de Piaget e Vygotsky vemos, na maioria das vezes, uma
classificação desses autores em aquele que estudou a cognição do sujeito
separada das determinações sociais e aquele que pesquisou a cognição no
contexto do social. Muitas investigações sobre as dimensões cognitivas ou
acerca das representações mentais buscam em Piaget a dinâmica cognitiva dos
sujeitos em seu desenvolvimento ou buscam em Vygotsky a dinâmica da linguagem.
No entanto, acreditamos que essa classificação abandona o debate epistemológico
que circunda as teorias de Piaget e Vygotsky.
Um trabalho científico quando apresenta clareza quanto
a sua escolha epistemológica, ou seja, quanto à sua concepção de ciência e à
maneira de como vai interpretar o objeto de seu estudo, torna-se útil pelas
informações teóricas e conceituais que traz aos leitores.
Um exemplo das consequências do
abandono do debate epistemológico em pesquisas acadêmicas é o uso de termos ou
conceitos em abordagens teóricas que relacionam o cognitivismo ou a Piaget ou a
Vygotsky. O termo mediação, por exemplo, tem sido utilizado em trabalhos
acadêmicos como processo, mas um processo linear em que o ambiente determina o
sujeito indicando uma concepção de ciência empirista em que a cognição é
determinada de fora para dentro do sujeito. Aceitaríamos essa concepção se
antes o pesquisador não tivesse assinalado que se propôs a trabalhar em uma
visão dialética.
É nesse sentido que neste texto discutimos as
epistemologias que orientaram os estudos de Piaget (1896-1980) e Vygotsky
(1896-1934) procurando discernir suas diferenças. Piaget e Vygotsky elaboraram
projetos sobre o desenvolvimento da mente que superassem os postulados
empiristas para a explicação da origem do pensamento abstrato predominantes,
até então, nas ciências do homem. Consideramos, no entanto, que esses dois
pensadores, embora possam ser vistos como próximos do ponto de vista do
desenvolvimento de uma teoria da inteligência (como o faz Moscovici (2007), por
exemplo), apresentam epistemologias que se opõem. Entretanto, faz-se necessário
aqui, neste texto, assinalar que Vygotsky teve um olhar genético para as
dimensões da linguagem e do pensamento valendo-se para isso de uma visão
histórica não linear, ou seja, materialista histórica. Nossa intenção é
assinalar que a diferença epistemológica tomando como ponto de partida as
dimensões para o desenvolvimento da inteligência nos dois pensadores. Piaget
centrou-se em quatro dimensões para o desenvolvimento da inteligência humana, a
saber, a maturação, a experiência ativa, a transmissão linguística e a
equilibração com um quarto fator que envolve os três primeiros. Vygotsky traz dois fatores, o biológico e o
social. O primeiro como componente humano primário e o segundo como fator
essencialmente relacional que pensa a história do sujeito nas relações
históricas que o cercam.
Quanto a Piaget sabemos que ele se dedicou,
desde o início dos anos 20 até sua morte em 1980, aos estudos das
epistemologias hegemônicas no século XIX ainda presentes no século XX. Os
séculos XVIII e XIX presenciaram o debate sobre o desenvolvimento humano, no
qual se envolveram Lamarck (1744-1829), Kant (1724-1804), Darwin (1809-1882),
Hegel (1770-1831), Marx (1818-1883), Spencer (1820-1903) e Comte (1789-1857).
Piaget, fundamentando-se em sua trajetória investigativa no universo das
questões epistemológicas propostas por estes autores, conduziu por mais de 50
anos seu projeto de pesquisa elaborando, nesse trajeto, uma epistemologia que
superasse os postulados empiristas.
Vygotsky, por outro lado,
preocupou-se em estudar o desenvolvimento humano com o objetivo de ultrapassar
os métodos descritivos e/ou fenomenológicos empregados pela psicologia russa
das décadas de 20/30 do século XX. Nesse seu estudo centrou-se na investigação
das ações conscientemente controladas (a atenção voluntária, a memorização e o
pensamento abstrato) vinculadas à psicologia e à cultura.
As mesmas preocupações não levaram,
todavia, Piaget e Vygotsky a trilhar o mesmo caminho. Piaget desenvolveu uma
epistemologia construtivista, sobretudo quando pesquisou as abstrações
pseudo-empíricas e a reflexionante como derivadas da abstração empírica. Esses
processos construiriam o sujeito epistêmico; um sujeito que representa a todos
os outros sujeitos, mas a nenhum de nós, especificamente.
Vygotsky, centrado na questão de como
os processos naturais se entrelaçam aos processos culturalmente determinados,
elaborou o sujeito social que representa todos os sujeitos determinados
historicamente. Este modo de pensar a cognição do sujeito manteve Vygotsky, a
despeito de seu belo trabalho com crianças, jovens e adultos analfabetos, ligado
a uma concepção empirista. Ou seja, o sujeito de Vygotsky é produto de
determinações sociais, mas ele as interioriza de fora para dentro. As funções
psicológicas superiores advêm da interiorização da cultura e da sociedade. São
criadas do entrelaçamento biológico com a transmissão social.
Como dissemos anteriormente, abordar
a dimensão epistemológica em uma investigação revela como se constitui o
pensamento de autor. Tratar da posição epistemológica de Piaget (1976) requer
levantar o debate central de suas obras em torno dos três tipos de conhecimento:
o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático e o conhecimento
social.
O conhecimento físico é o construído pela interação da
criança com as propriedades físicas dos objetos e dos eventos. Desde o
sensório-motor as crianças extraem dos objetos com os quais interagem aspectos
como forma, textura, tamanho e aspectos gerais como mobilidade, por exemplo.
Pela ação podem conhecer a mecânica dos objetos e pela observação as mudanças
dos objetos (pensando no açúcar “desaparecendo na água”).
O que Piaget (1976) chama de conhecimento
lógico-matemático é a ação mental da criança de classificar as ações que
realiza. Por exemplo: crianças de 7
a 10 anos, fazendo experiência com flutuação de corpos
na água, observam que um pedaço de sabão pequeno não afunda e um grande afunda.
Elas concluem que objetos pequenos não afundam, os grandes afundam. Ao
estabelecerem esta “divisão”, estão realizando o que chamamos de inclusão de
classes: um ato de pensar que é lógico-matemático.
O conhecimento lógico-matemático é, então, aquele construído a partir do
pensamento do sujeito sobre as suas experiências com os objetos e os eventos. Para
essa construção o sujeito não tem diante de si o objeto ou os eventos. O
pensamento lógico-matemático não é inerente ao objeto; ele é elaborado mediante
as relações que o sujeito faz quando em suas ações pensa o mundo. O sujeito estabelece
relações lógicas entre os objetos ou eventos e cria assim o chamado espírito
dedutivo. É necessário dizer, no entanto,
que da mesma forma que o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático
também é construído a partir das ações sobre os objetos. É quando o sujeito
é capaz de representar o objeto fazendo inferências lógicas. Por exemplo, se
estivermos falando da construção do número teremos uma série de ações e
relações interferindo e propiciando a elaboração do conceito de número. O
conceito de número não surge apenas do fato de quantificarmos uma realidade,
mas de várias ações mentais ocorrendo como um sistema de transformações.
Em outras
palavras, é um grupo de ações modificando o objeto e possibilitando ao sujeito
do conhecimento alcançar as estruturas da transformação. Uma operação é uma
ação interiorizada. Mas, além disso, é uma ação reversível; isto é, pode
ocorrer em dois sentidos, por exemplo, adição ou subtração, juntar ou separar.
Assim, é um tipo particular de ação que constrói estruturas lógicas. Acima de
tudo, uma operação nunca é isolada. É sempre ligada a outras operações e, como
resultado, é sempre parte de uma estrutura total. Por exemplo, uma classe
lógica não existe isoladamente; o que existe é uma estrutura total de
classificação. Uma relação assimétrica não existe isolada. A seriação é uma
estrutura operacional natural, básica. Um número não existe isolado. O que
existe é uma série de números, que constituem uma estrutura, uma
extraordinariamente rica estrutura cujas propriedades variadas têm sido
reveladas pelos matemáticos (PIAGET, 1972, p.1).
Quanto ao conhecimento social, este não é extraído
diretamente das relações sobre os objetos, mas de ações – interações – com
outras pessoas e grupos sociais. Piaget (1976) enfatiza a transmissão social, a
qual se constitui por meio da linguagem. Dessa forma, a aquisição social não
pode ser vista apenas como advinda de uma transmissão cultural, como uma copia,
porque ela sempre envolve uma atividade de representação social que envolve a
atividade cognitiva.
Estes três tipos de conhecimento são constituídos
graças à interação de uma quarta dimensão, a equilibração, que permite que a
construção de um sistema auto-regulado, ou seja, de uma dinâmica das três
dimensões que é própria dinâmica da inteligência, o próprio ato da cognição.
Assim, temos intervindo na cognição os fatores:
Estes três fatores, no entanto, ainda que necessários,
não são suficientes ao desenvolvimento da inteligência. Há um quarto fator a
considerar: a equilibração que rege a coordenação entre os três fatores:
maturação, experiência física (lógico-matemática) e a transmissão social.
O conceito de equilibração traz a novidade para a
epistemologia genética e sobre o desenvolvimento da inteligência humana. É um
conceito chave para a epistemologia piagetiana porque para Piaget o
conhecimento não é copia da realidade. Se não é copia como explicar a
construção do conhecimento? Não podemos, se o conhecimento não é copia do real,
lançar mão da metáfora construção do conhecimento como um tijolo, que a cada um
posto no cérebro, podemos fazer um muro. Para Piaget, a construção do
conhecimento não é jogo no qual o tijolo é parte constitutiva do conhecimento.
Piaget pensa a construção do conhecimento como metáfora
de um sistema de transformações, um sistema auto-regulado com processos de
retroalimentação, um jogo cibernético. Daí que quando Piaget refere à
equilibração, está falando do sistema de transformações que leva ao
desenvolvimento da inteligência em um sujeito ou de um pensamento. Não existe
uma dimensão ou fator, depois outro e, em seguida outro mais complexo de modo
linear. O que existe é um sistema de transformações no qual entram em jogo o
sujeito ativo, suas ações, seus sistemas de assimilação e acomodação, a
construção das estruturas, os equilíbrios e desequilíbrios decorrentes do ato
cognitivo. Esse sistema de transformação pode ser representado pela metáfora da
cibernética, ou seja, sistemas com seus processos de alimentação e
retroalimentação que se regulam a si próprios mediante a compensação
progressiva dos sistemas. Vejamos Piaget:
Uma vez que já existem três fatores,
eles devem de algum modo estar equilibrados entre si. Esta é uma razão para
trazer ao foco o fator da equilibração. Há uma segunda razão, entretanto, que
me parece ser fundamental. É que no ato de conhecer o sujeito é ativo e,
consequentemente, defrontar-se-á com uma perturbação externa, e reagirá como
fim de compensar e consequentemente tenderá para o equilíbrio. O equilíbrio,
definido por compensação ativa, leva à reversibilidade. A reversibilidade
operacional é um modelo de um sistema equilibrado, onde a transformação em um
sentido é compensada por uma transformação em outro. A equilibração, como eu a
entendo, é um processo ativo.
É um processo de auto-regulação. Acho
que esta auto-regulação é um fator fundamental no desenvolvimento. Uso este
termo no sentido em que ele é usado na cibernética, isto é, no sentido de
processos com retroalimentação (feedback e feedforward), de processos que se
regulam a si próprios mediante uma compensação progressiva dos sistemas. Este
processo de equilibração toma a forma de uma sucessão de níveis de equilíbrio,
de níveis que tem uma certa probabilidade que chamarei de probabilidade
sequencial, isto é, as probabilidades não são estabelecidas a priori (PIAGET,
1972, p.5).
Outra novidade da epistemologia genética é que equilibração
significa abstração reflexionante, um tipo de abstração constituída das
coordenações de ações ou operações do sujeito. Para Piaget temos a abstração
empírica, a pseudo-empíirica e a refletida. Todavia, não são graus lineares de
abstração. O processo de abstração é o processo de assimilação-acomodação e das
regulações que permitem o enriquecimento das estruturas, da admissão de novas
possibilidades, da capacidade de fazer inferências (previsão sem necessidade de
constatação). Nesse sentido, a abstração reflexionante não se dá apenas no
período das operações formais, ela ocorre desde o período sensório-motor.
Vejamos:
Em um escrito póstumo (L S., 1987), Piaget dá um
exemplo de abstração reflexionante no nível sensório-motor. O lactente constrói
o esquema de conteúdo a continente (que lhe permite brincar de inserir um pequeno
cubo em um maior) por abstração reflexionante a partir do esquema “colocar na
boca”. O autor pôde, com efeito, observar um lactente que, antes de colocar um
pequeno cubo em um grande, colocou o pequeno em sua boca (MONTANGERO; NAVILLE,
1998, p. 92).
O conceito de abstração reflexionante é um dos mais
originais de Piaget (1976). O conceito de abstração foi estabelecido por
Aristóteles e significava abstração empírica. Para Piaget este conceito
significa abstrair a partir dos objetos, mas o sujeito não para ai, a atividade
operatória do sujeito lhe permite atingir um grau mais rico de abstração o que
sustenta a formação de novos conhecimentos.
Este modelo de equilibração refere-se ao jogo de
contradições nas atividades cognitivas do sujeito. Por exemplo, aos cinco anos
uma criança acredita que na transposição de quantidade de líquido de um copo
estreito para outro mais largo, resulte menos líquido. Um ano depois ela
avalia, na mesma situação, que há mais liquido no mais largo, porque o copo é
mais gordo. Mais tarde ainda, ela coordena os dois aspectos: embora o copo
possa ser mais estreito ou mais largo a quantidade de liquido se mantém. Ela está reorganizando suas inferências ou
lógica elementar, reorganização esta que podemos descrever como processo de
equilibração ou de abstração reflexionante.
Desta
forma, o conhecimento não é uma cópia do real.
Para conhecer um objeto ou um evento não basta olhá-lo e elaborar uma
cópia mental ou uma imagem. Para conhecer um objeto é preciso agir sobre ele.
Conhecer é modificar o objeto, é compreender o processo de sua transformação e,
em consequência, compreender o caminho pelo qual o objeto é construído. A
operação é, então, a essência do conhecimento, é a ação interiorizada que
modifica o objeto de conhecimento. Operação é ato de pensar; é o conjunto de
ações mentais modificando o objeto. É uma ação que constrói estruturas lógicas.
E a operação nunca é isolada, ela está sempre ligada a outras operações. Daí o
que chamamos de sistema de transformações ou de estruturas cognitivas.
Os
conhecimentos são produzidos por desequilíbrio na interação. O apreendido é o
conhecimento reestruturado. É um processo de construção e reconstrução
contínua, no qual não há ponto de partida e não há ponto de chegada final. A
generalização pode ser indutiva em um primeiro nível e, também, construída por
outras novas formas de raciocinar, formas de inferir, formas de pensamento
lógico. A generalização produz novas formas para atuar sobre os conteúdos de
conhecimento: noções, conceitos, relações e tudo por abstrações reflexivas e
por equilibrações sucessivas. Em consequência, o sujeito amplia seu poder
dedutivo.
Se o poder dedutivo amplia-se isso
significa falar das estruturas cognitivas ou sistemas de transformações – que
comportam leis como sistema e conservam-se ou enriquecem-se pelo próprio jogo
de suas transformações, sem que estas ultrapassem suas fronteiras ou façam
apelo a elementos exteriores. Aqui Piaget (1976), mais uma vez, refina a
definição do conceito de estrutura: ESTRUTURAS pressupõem um conjunto de
elementos que tenham sempre as características: totalidade, transformação e
auto-regulação. Totalidade ou estabilidade porque a relação entre os elementos
(eventos no qual a criança age) nunca resulta em outro elemento estranho ao
conjunto. Transformação, porque os elementos estão sempre relacionando
dinamicamente entre si. Auto-regulação, porque uma estrutura nunca pode ser
regulada por outra. Um exemplo: podemos pensar em quando uma criança soma
números naturais ou faz outra operação e é capaz de chegar a outra operação
mais complexa com números naturais.
É o que ocorre com a criança
quando, por exemplo, é confrontada com o novo “objeto” vaca. Ela tem
conhecimento das semelhanças com outros animais, porém há um novo evento – pode
ser o som do animal, pode ser qualquer outra experiência ou ação. Então: ela
pode modificar seu antigo esquema de conhecimento e acomodar este novo evento
aos velhos esquemas cognitivos. Neste caso, ela transforma sua estrutura e
acomoda um dado novo. A acomodação explica o desenvolvimento – mudança
qualitativa – e a assimilação explica o crescimento – mudança quantitativa;
juntos estes dois processos explicam o que Piaget chamou de adaptação
intelectual. Assimilação e acomodação são pólos da adaptação cognitiva. Um pode
ocorrer sem o outro deixando lacunas na construção da cognição. Uma pessoa que
só assimilou estímulos e nunca fez acomodações acabaria com poucos esquemas
(pouco enriquecimento da estrutura) e incapaz de detectar diferenças nas coisas.
Veria somente o similar. Por outro lado, se uma pessoa somente fizesse
acomodações e nunca assimilasse, faria um grande número de esquemas, mas pouco
ricos para poder realizar o ato cognitivo de generalizar. Essa pessoa seria
incapaz de detectar semelhanças; a maioria das coisas seria vista como
diferente.
Este processo é o ato cognitivo, ou
seja, uma atividade de organização e adaptação ao meio. As interações –
assimilação e acomodação – são partes constituintes da adaptação. Temos aqui a
construção de esquemas - subsistemas ou sistemas de transformações - que
enriquecem as estruturas. Estrutura é um conceito que, conforme Piaget (1976),
“não se define [...] pelo que a criança pensa, mas pelo que ela sabe fazer”.
Isto não significa que Piaget seja um positivista. Para Piaget (1976) as ações
que a criança faz indicam as possibilidades de coordenar as idéias entre si.
Vale apontar aqui que certa crítica a Piaget intitulando-o de positivista
origina-se na confusão que muitos fazem entre empirismo e experimentação. De
fato, para precisar o termo desenvolvimento em sua teoria, Piaget recorreu a
uma exaustiva experimentação, mas tendo em foco seu plano teórico: o da
construção de conhecimento tomando a noção de auto-regulação e sistemas de
transformações como base. O trabalho “A
equilibração das estruturas cognitivas” ilustra bem o modelo piagetiano
para pensarmos a construção do conhecimento. Nele vemos a precisão do termo
INTERAÇÃO em sua teoria: não se trata de falar de interação como um jogo linear
entre sujeito e objeto, mas de estabelecer um modelo explicativo para os níveis
de interação que ele denomina de EQUILIBRAÇÃO cognitiva.
Nesse
caminho, Piaget (1976) “desenha” sua teoria de sistema auto-regulatório na qual
a interação do Sujeito com o Objeto pode ser traduzida como uma relação
dialética em que o sujeito passa de um nível de conhecimento (temos aqui que
pensar nas diferentes abstrações e nas equilibrações) para outro, mais
complexo. Nessa espiral helicoidal o conhecimento anterior não é superado ou substituído,
mas enriquecido, diferenciando-se e integrando-se em um sistema mais complexo
de coordenações. Por isso, Piaget fala
de equilibração cognitiva e não simplesmente equilíbrio o que denotaria algo
linear.
Pensando sobre o ato de conhecer, Piaget (1976)
argumenta que tanto a realidade quanto as estruturas cognitivas do sujeito são
transformadas constantemente em um autêntico “movimento do conhecimento”, um
sistema de mudanças contínuas de controles e equilíbrios entre quem conhece e a
realidade a ser conhecida. O que requer a criatividade do sujeito na invenção
de novos meios de coordenação entre ele e a realidade.
3 O percurso de Vygotsky e uma
epistemologia empirista de conhecimento
Luria (1988) contextualiza o
surgimento da obra de Vygotsky como produto de um tempo em que os intelectuais
russos questionavam o empirismo, o idealismo, a introspecção na psicologia.
Esses intelectuais também eram produtos de um espaço em que a política, a
educação e a psicologia eram repensadas. Estavam no início da Revolução Russa e
novos projetos eram elaborados para acompanhar a mudança econômica, política e
cultural da época.
Quando Vygotsky conheceu Luria e
Leontiev, no II Congresso de Neurologia, em 1924, era professor na Escola de
Formação de Professores em Gomel (Minsk) e estudava crianças com defeitos
congênitos. Entre 1924 e 1926 o projeto de Vygotsky guiava-se pelas
formulações: Quais eram os mecanismos psicológicos elementares que podiam ser
estudados em laboratório? Como se davam as ações conscientemente controladas,
como a atenção voluntária, a memorização ativa e o pensamento abstrato? Para
Vygotsky (apud Luria, 1988) essas ações eram estudadas apenas pelos psicólogos
mediante métodos descritivos ou fenomenológicos e, desse modo, pesquisava-se a
mente desvinculada da cultura (LURIA, 1988.).
Em 1925 Vygotsky iniciou seu percurso
em direção ao projeto sobre a construção social da mente. Estudou Pavlov
(1849-1936), sobretudo a psicofisiologia, para obter daí um apoio materialista
nas discussões sobre a origem da mente. Para compreender a evolução biológica
dos homens estudou V. A. Wagner (1849-1934), especialista russo em
comportamento animal. Para além dos estudos biológicos, Vygotsky pesquisou Kurt
Levin (1890-1947), Bühler (1879-1964) e Köhler (1887-1967), por considerar o
reflexo pavloviano insuficiente para a compreensão das realidades estruturais
do comportamento complexo. Leu, também, a obra A linguagem e o pensamento da criança, de Piaget, da qual retirou o
método clínico para estudar o processo cognitivo individual com o objetivo de
descobrir as diferenças qualitativas das crianças em diferentes idades. Além
dessas fontes, estudou Marx, marco de seu conceito chave de que a consciência é
produto da transformação dos processos elementares aos processos complexos
dentro das determinações culturais (LURIA, 1988).
Seu projeto era constituído de duas
dimensões a serem pesquisadas, a biológica e a social. Como essas dimensões se
entrelaçam? Como os processos de maturação física, os mecanismos sensórios
elementares (os processos naturais) interagem com os socialmente determinados e
produzem as funções psicológicas dos adultos? (LURIA, 1988).
Do ponto de vista metodológico,
Vygotsky reuniu três fontes para sua pesquisa: a instrumental, com a qual
estudou os comportamentos culturais como, por exemplo, “amarrar um barbante no
dedo para não esquecer algo”; a cultural, pela qual investigou os meios
socialmente estruturados que permitiam à criança se organizar em sociedade como
a linguagem e o pensamento. A terceira fonte é a dimensão histórica. Nesta
ocorre a fusão do indivíduo com o cultural. Aí o papel da linguagem torna-se
vital, pois ela carrega conceitos culturais que, por exemplo, ajudam a escrita
e a aritmética (LURIA, 1988).
Como se desenvolve a criança, então?
No início as crianças são dominadas pelos processos naturais, isto é, a
maturação física dos sistemas sensórios motores. A interação com os adultos faz
nascerem os processos interpsíquicos: os adultos são agentes externos e,
conforme as crianças crescem, os processos partilhados com esses adultos passam
a ser executados dentro das próprias crianças. As respostas mediadoras da
criança em relação ao mundo externo transformam-se em um processo interpsíquico
que as leva à interiorização das informações historicamente organizadas. Esta
organização é de natureza psicológica (LURIA, 1988).
A epistemologia que sustenta essa
tese supõe dois tipos de conhecimento: um derivado do conhecimento físico (que
é permitida pelos processos elementares) e, outro, o conhecimento social, ou
seja, os conhecimentos gerados pela interação com os adultos. O sujeito é o
sujeito passivo que mediante suas experiências sensório-motoras adquire as
capacidades para ler, escrever e interagir com os adultos de uma sociedade
historicamente determinada. A partilha
das crianças com os adultos é, mais uma, vez passiva. Destas, as crianças
recebem e operam um conhecimento já pronto, sem lançar mão de equilibrações e
abstrações sucessivas.
4
Considerações finais
Os
postulados epistemológicos de Piaget e Vygotsky têm fundamentos diferentes. A
hipótese piagetina para o desenvolvimento cognitivo centra-se na ideia de
interação como processos de equilibração e a equilibração majorante, indicando
sua distância do empirismo e do apriorismo. Afirmamos aqui que o postulado
epistemológico de Piaget foi formulado na perspectiva dialógica ou
construtivista. Assimilação e acomodação, interação entre o estado mental do
sujeito com a representação do objeto são parte de um processo que constitui
outro, o de adaptação. Este, por sua vez, é o processo de construção das
abstrações empíricas, pseudo-empíricas e reflexionantes. O modelo desses
processos leva a pensar o desenvolvimento mental como sucessivas construções
(ou representações do real) que ocorrem dialeticamente nas quais não há
primazia do sujeito nem do objeto (entendido aqui como as várias instâncias da
sociedade).
Vygotsky,
ao contrário de Piaget, manteve o postulado empirista, ou seja, o da primazia
do objeto sobre o sujeito. Vejamos: seu modelo de desenvolvimento da
inteligência não ultrapassa as duas dimensões ou processos: a maturação e a
transmissão social. Para ele a maturação é a dimensão biológica do sujeito e a
transmissão social, o objeto. Esse objeto mesmo sendo histórico ou a própria
história dos homens, não deixa de ser um objeto, um espelho que reflete a
condição dos homens.
A ênfase na
transmissão social indica um modelo de desenvolvimento cognitivo estabelecido pela
ideia de que o espírito humano se submete ao real. Em outras palavras, o real,
a história humana ou do modo de produção humano, reflete as condições sócio
culturais à mente humana. A ação humana cede lugar à noção de interação
proposta pelo modelo mental de zona proximal. Sujeito e objeto interagem-se:
isto é uma verdade, porém interagem de acordo com a primazia da história, ou
melhor, do objeto. Esse parece ser um limite da mente uma vez em que ela se
aproxima da história, de seus conceitos em um movimento de quase preenchimento
mental. Nesse caso, podemos dizer que há apenas acomodação do sujeito ao
objeto, ou dizendo de outra maneira, do primado do social sobre o sujeito ou
seu estado mental. Não há a assimilação, processo pelo qual o sujeito incorpora
o objeto às suas estruturas ou sistemas de transformação.
A interação,
que em Piaget significa assimilação-acomodação; abstração empírica-abstração
reflexionante, fica subordinada ao objeto. O risco desse ponto de vista é tomar
o desenvolvimento do pensamento como caixa-preta, uma vez que a linguagem é a
única condição para determinar a interação entre os homens e sua sociedade.
Vemos esse contexto epistemológico como próximo às teses behavioristas, ou
seja, da ideia de estímulo-resposta enfocando um sujeito encerrado ou submetido
às condições ambientais ou de sua história.
As
diferenças apontadas aqui dizem respeito apenas às bases epistemológicas dos
dois grandes pensadores, de essencial compreensão quando nos embrenhamos pelo
estudo dos pensamentos, das abordagens metodológicas em nossas pesquisas e
nossas orientações. Acreditamos que ambos, Piaget e Vygotsky,
trazem contribuições inestimáveis ao pensar o desenvolvimento da inteligência
das crianças, jovens e adultos. Porém, a singularidade da teoria de Piaget está
em ultrapassar aquilo que a teoria de Vygotsky mantém, ou seja, a relação entre
um sujeito passivo e um objeto – a sociedade – que impõe sua forma e conteúdo.
Para a teoria piagetiana, não há primazia do objeto nem do sujeito, o que
existe é uma interação em que ora o conhecimento sugere a primazia do sujeito,
ora a do objeto, mas nunca nenhum dos polos fica em evidência.
Quando
Piaget centrou a construção do conhecimento ou da dinâmica da inteligência
indicando as quatro dimensões como condição de transformação das estruturas, da
constituição dos significados humanos trouxe ao debate uma epistemologia que
afastava, definitivamente, o postulado empirista para pensar a construção da
inteligência e dos conhecimentos. Vygotsky, ainda que tenha apresentado ao
mundo como podem nascer seres pensantes e livres em uma sociedade miserável
como a Rússia antes e logo após a revolução de outubro de 1917, sustentou sua
teoria no postulado empirista, para o qual o objeto história impunha-se ao
sujeito. Talvez, tenha sido o gênio revolucionário em uma Rússia pós-revolucionária
que com otimismo viu na história o princípio mais importante no desenvolvimento
dos homens. Mais tarde, Piaget inverteu essa equação: nem ao sujeito nem à
história, um é o outro.
Referências
DUVEEN, G..
Crianças como atores sociais: as representações sociais em desenvolvimento. In :
GUARESCHI, Pedrinho; JOVCHEVITCH (Org.). Textos
em representações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
LURIA, A. R.
Vigotskii. In: LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/EDUSP,
1988.
MONTANGERO, J. ; NAVILLE, D. M. Piaget ou a inteligência em evolução. Porto Alegre : Artmed, 1998.
MOSCOVICI, Serge. Representações
Sociais. Investigação em Psicologia Social.
Petrópolis : Editora Vozes, 2007.
PIAGET,
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cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.
PIAGET, Jean. Desenvolvimento e aprendizagem. Fonte: PIAGET, Jean. Development and
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Janovich, 1972. Tradução de Paulo Francisco Slomp.
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