Futebol e desrazão
Sempre que tem lugar um grande torneio internacional ou a celebração de uma vitória memorável, correm pelas redes sociais testemunhos da rejeição do futebol como desporto de massas e espaço público da celebração de uma paixão. Não se trata só da legítima demonstração de desinteresse por algo que se olha sem prazer, ou do mero protesto contra a forma como o jogo do pontapé na bola nessas alturas invade de forma absurda os meios de comunicação. É mais do que isso, surgindo em alguns casos como expressão de verdadeiro ódio – irracional, seletivo e agressivo, como todos os ódios – projetado sobre quem o acolhe como praticante ou adepto. Os argumentos são recorrentes: o futebol é manifestação de uma estonteada «alienação», o reino negro «do dinheiro sujo e do desperdício», mera «brincadeira de rapazes», uma «perda de tempo» quando tanto há de «verdadeiramente importante» para fazer. Como se a vida não fosse feita também dos grandes vícios e dos pequenos nadas que a tornam complexa e mais interessante.
Em Futebol: Sol e Sombra, Eduardo Galeano fala do desprezo que ao futebol têm votado muitos intelectuais conservadores, precisamente porque o associam ao gosto popular: «O instinto animal impõe-se à razão humana, a ignorância arrasa a Cultura, e assim a ralé tem o que quer». Lembra também o ataque que lhe tem sido feito por autores de esquerda, para os quais este «castra as massas e desbarata a sua energia revolucionária», surgindo como «maquinação da burguesia», anestésico da «consciência de classe» e ópio do povo. São no entanto inúmeros os criadores, os pensadores ou os ativistas que o consideram parte substancial da vida, que o tomam como um espaço singular de socialização, que o incorporam no seu processo de representação do mundo, que o incluem como um valor das suas existências. Gramsci chamou-lhe «reino da lealdade humana exercida ao ar livre», Camus, que chegou a jogar como guarda-redes semiprofissional, confessou um dia que tudo o que sabia «sobre a moral e as obrigações do homem», o teria ficado a dever ao futebol, e Javier Marías considera-o «uma escola de comportamento e nostalgia», além de representar «a encenação da épica ao alcance de toda a gente».
Não tem razão, sobretudo quando pretende impor aos outros o seu ponto de vista, quem partilha aquela atitude de categórica negação. Num livro recém-publicado, muito bem argumentado e muito bem escrito, que a crítica parece ter até agora ignorado mas que merece a maior a atenção (Eterno Domingo. O futebol em oito jornadas, ed. Lápis de Memórias), Ricardo Namora, ex-jogador, treinador da modalidade e doutorado em Teoria da Literatura, traça um detalhado périplo mundial por alguns dos lugares e dos momentos por onde cresceu e se expandiu o universo cultural da sua paixão. Vale a pena lê-lo para olhar a complexidade, a nobreza, e, claro, também a torpeza e a contradição, que o futebol incorpora como parte da vida e dos pequenos sonhos de quem por ele se interessa como jogo, como espetáculo e, tantas vezes, como paixão.
Escreve ali Namora: «No futebol, não há aritmética, estatística ou receituário que resista: as facetas são tantas e as relações tão complexas que não é possível estabelecer uma causalidade definida ou sequer prever o que vai acontecer daqui a bocado, no treino da tarde. Esta imprevisibilidade constitutiva alimenta o futebol em todas as suas manifestações, e cria um resíduo de expectativa constante que é muito diferente daquele que existe na “vida real”, e nas atividades quotidianas desempenhadas pela maioria das pessoas». É isto que não sabe aceitar quem pretende secar, racionalizar, o que, no futebol como no ténis, na esgrima ou no tiro aos pratos – como no amor, na crença ou no divertimento – pertence à dimensão da desrazão. Sem a qual, deixem-me que diga, não existe vida que valha a pena.
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