Do Blog da Editora BoiTempo
Bem-vindo ao “reino animal espiritual”: Artigo de Slavoj Žižek sobre o
vácuo moral do capitalismo global
Por Slavoj Žižek.
Confira abaixo artigo inédito, traduzido por Rogério Bettoni, enviado com exclusividade pelo autor para a
Boitempo publicar em seu Blog.
O documentário The Act of Killing [O ato de matar,
Final Cut Film Production, Copenhagen] estreou em 2012 no Festival de Cinema de
Telluride e foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Toronto.
Dirigido por Joshua Oppenheimer, o filme nos mostra uma visão única e
profundamente perturbadora do impasse ético do capitalismo global.
O filme – rodado em Medan, Indonésia, em 2007 –
relata um caso de obscenidade levado ao extremo: um filme realizado por Anwar
Congo e seus amigos, que hoje são políticos respeitados, mas já foram
gângsteres e líderes de esquadrão da morte, tendo desempenhado um papel
importante no assassinato de cerca de 2,5 milhões de supostos simpatizantes
comunistas em 1966, principalmente chineses étnicos. The Act of Killing trata de “assassinos que venceram e do tipo de sociedade
que construíram”. Depois de vencerem, seus atos terríveis não foram relegados à
condição de “segredo sujo”, o crime fundador cujos traços devem ser obliterados
– ao contrário, eles se vangloriam abertamente dos detalhes dos massacres (o
jeito de estrangular vítimas com um fio, o jeito de cortar a garganta, como
violentar uma mulher da maneira mais prazerosa…). Em outubro de 2007, a
televisão estatal da Indonésia produziu um programa de entrevistas celebrando
Anwar e seus amigos; no meio do programa, depois que Anwar diz que os
assassinatos foram inspirados em filmes de gângsteres, a sorridente
apresentadora vira-se para a câmera e diz: “Incrível! Uma salva de palmas para
Anwar Congo!”. Quando ela pergunta se Anwar tem medo da vingança dos parentes das
vítimas, ele responde: “Eles não podem se vingar. Quando levantam a cabeça, nós
cortamos elas fora”. Um de seus escudeiros acrescenta: “Vamos exterminar todos
eles”, e o público explode em uma exuberante aclamação… é preciso ver para
acreditar que isso é possível. Mas o que também torna The Act of Killing extraordinário é o nível de reflexividade entre
documentário e ficção – de certo modo, o filme é um documentário sobre os
efeitos reais de se viver em uma ficção:
“Para explorar a arrogância estarrecedora dos
assassinos, e para testar o limite de seu orgulho, nós começamos com retratos
documentais e simples reconstituições dos massacres. Mas quando percebemos que
tipo de filme que Anwar e seus amigos realmente queriam fazer sobre o
genocídio, as reconstituições ficaram mais elaboradas. Até que oferecemos a
eles a oportunidade de dramatizar os assassinatos usando os gêneros
cinematográficos que quisessem (western, gângster, musical). Ou seja, nós demos
a eles a chance de roteirizar, dirigir e estrelar as cenas que
eles tinham em mente enquanto matavam as pessoas.” [1]
Eles atingiram o limite do “orgulho” dos
assassinos? Eles mal chegaram a encostar em Anwar quando propuseram que ele
representasse, em uma reconstituição, a vítima de suas torturas; quando um
arame é colocado em volta do seu pescoço, ele interrompe a atuação e diz
“Perdoem-me pelo que fiz”. Mas isso é mais um relapso temporário que não levou
a nenhuma crise mais profunda de consciência – seu orgulho heroico assume de
novo o controle no mesmo instante. Talvez a tela protetora que impediu uma
crise moral mais profunda fosse a mesma tela cinematográfica: como na tortura e
nos assassinatos reais do passado, eles experimentaram sua atividade como uma
encenação de seus modelos cinematográficos, o que possibilitou que
experimentassem a própria realidade como ficção – na condição de grandes
admiradores de Hollywood (eles começaram a carreira como organizadores e
controladores do mercado negro de ingressos de cinema), eles já representavam
um papel nos seus massacres, imitando um gângster, um cowboy ou até mesmo um bailarino
de Hollywood.
Aqui entra o “grande Outro”, não só pelo fato de os
criminosos terem cometido seus assassinatos nos moldes do imaginário
cinematográfico, mas também principalmente, e de modo muito mais importante,
por conta do vazio moral da sociedade: de que tipo de tessitura simbólica
(conjunto de regras que traçam a linha entre o que é e o que não é publicamente
aceitável) uma sociedade deve ser composta se até mesmo um nível mínimo de
vergonha pública (o que obrigaria os criminosos a tratar seus atos como um
“segredo sujo”) é suspenso, e a orgia monstruosa da tortura e da matança pode
ser celebrada publicamente mesmo décadas depois de ter acontecido, não só como
crime necessário e extraordinário pelo bem público, mas como atividade comum,
prazerosa, aceitável? Obviamente, devemos evitar aqui a fácil armadilha de
colocar a culpa diretamente em Hollywood ou no “primitivismo ético” da
Indonésia. Antes, o ponto de partida deveria ser os efeitos deslocadores da
globalização capitalista que, ao solapar a “eficácia simbólica” das estruturas
éticas tradicionais, cria esse vazio moral.
No entanto, a condição do “grande Outro” merece
aqui uma análise mais cuidadosa – comparemos The Act of Killing a um incidente que chamou muito a atenção nos
Estados Unidos há algumas décadas: uma mulher apanhou e foi lentamente
assassinada por um criminoso violento no pátio de um grande prédio residencial
no bairro do Brooklyn, em Nova York. Das mais de setenta testemunhas que viram
claramente pela janela o acontecido, nenhuma chamou a polícia – mas por quê?
Conforme estabeleceu a investigação posterior, a desculpa predominante, sem
dúvida, foi que cada testemunha pensou que alguém já tinha chamado ou chamaria
a polícia. Esses dados não devem ser descartados em termos morais como uma mera
desculpa para a covardia moral e a indiferença egoísta: o que encontramos aqui
também é a função do grande Outro – dessa vez não como o “sujeito suposto
saber” de Lacan, mas como o que poderíamos chamar de “sujeito suposto chamar a
polícia”. O erro fatal das testemunhas do lento assassinato do Brooklyn foi
confundir a função simbólica (ficcional) do “sujeito suposto chamar a polícia”
como uma afirmação empírica da existência, concluindo erroneamente que deveria
haver pelo menos uma pessoa que efetivamente chamaria a polícia – elas
sobrepujaram o fato de que a função do “sujeito suposto chamar a polícia” é
operativa mesmo que não haja nenhum sujeito para exercê-la. [2]
Isso significa que, pela gradual dissolução da
nossa substância ética, estamos simplesmente regredindo ao egoísmo
individualista? As coisas são muito mais complexas. Muitas vezes ouvimos que a
crise ecológica é resultado do nosso egoísmo de curto prazo: obcecados por
riqueza e prazeres imediatos, nós nos esquecemos do Bem comum. No entanto, é
aqui que se torna fundamental a ideia de Walter Benjamin sobre o capitalismo
como religião: o verdadeiro capitalista não é um egoísta hedonista; ao
contrário, ele é um devoto fanático da tarefa de multiplicar sua riqueza,
pronto para desprezar a própria saúde e felicidade, sem falar da prosperidade
da própria família e do bem estar do ambiente, para chegar a esse objetivo.
Portanto, não há necessidade nenhuma de evocar a superioridade moral e detonar
o egoísmo capitalista – contra a dedicação capitalista, fanática e pervertida,
basta evocar uma boa dose de simples preocupações egoístas e utilitaristas. Em
outras palavras, a busca do que Rousseau chama de amour-de-soi natural requer um nível altamente civilizado de
consciência. Ou, colocando nos termos de Alain Badiou: ao contrário do que ele
sugere, a subjetividade do capitalismo não é a subjetividade do “animal humano”, mas sim um
chamado para subordinar o egoísmo à autorreprodução do Capital. Contudo, isso
não é sugerir que Badiou esteja errado: o indivíduo preso no capitalismo global
de mercado necessariamente percebe-se como um “animal humano” hedonista,
interessado em si mesmo, e essa percepção de si é uma ilusão necessária.
Em outras palavras, o egoísmo do interesse próprio
não é o fato brutal das nossas sociedades, mas sim sua ideologia – a ideologia
articulada filosoficamente na Fenomenologia
do espírito, de Hegel, quase no final do capítulo
sobre a Razão, sob o nome de “das geistige Tierreich” – o “reino animal espiritual”, nome que Hegel dá
à sociedade civil moderna na qual os animais humanos estão presos em uma
interação egoísta. Como afirma Hegel, o avanço da modernidade foi permitir que
“o espírito da subjetividade chegue à realização da extrema autonomia da particularidade pessoal”. [3] O reino desse princípio torna possível a
sociedade civil como domínio em que os indivíduos humanos autônomos se associam
uns com os outros para satisfazer suas necessidades pessoais: todos os fins
comuns são subordinados aos interesses privados dos indivíduos, são
conscientemente postos e calculados com a meta de maximizar a satisfação desses
interesses. Aqui, o que importa para Hegel é a oposição entre privado e comum
percebida por aqueles em quem Hegel se apoia (Mandeville, Smith), bem como por
Marx: os indivíduos percebem o domínio comum como algo que deveria servir a
seus interesses privados (como um liberal que pensa o Estado como protetor da
liberdade e segurança privadas), porém, ao perseguirem seus objetivos
limitados, eles servem efetivamente ao interesse comum. A tensão propriamente
dialética surge aqui quando tomamos ciência de que quanto mais os indivíduos
agem de modo egoísta, mais contribuem para a riqueza comum. O paradoxo é que
quando os indivíduos querem sacrificar seus interesses privados limitados e
trabalhar diretamente para o bem comum, quem sofre é o próprio bem comum –
Hegel adora contar anedotas históricas sobre um príncipe ou rei bom cuja
dedicação ao bem comum levou seu país à ruína. A novidade propriamente
filosófica de Hegel foi ainda determinar essa “contradição” ao longo das linhas
de tensão entre o “animal” e o “espiritual”: a substância espiritual universal,
“obra de todos e de cada um”, surge como resultado da interação “mecânica”
entre os indivíduos. Isso significa que a mesma “animalidade” do “animal
humano” egoísta (o indivíduo que participa da rede complexa da sociedade civil)
é resultado do longo processo histórico da transformação da sociedade
hierárquica medieval na sociedade burguesa moderna. Desse modo, é a própria
satisfação do princípio de subjetividade – o oposto radical de animalidade –
que dá origem à reversão da subjetividade em animalidade.
Os traços dessa passagem podem hoje ser detectados
em todos os lugares, especialmente nos países asiáticos de desenvolvimento acelerado
onde o capitalismo exerce impacto mais brutal. A exceção e a regra, de Bertolt Brecht (peça didática escrita em
1929-30) conta a história de um rico comerciante que, com seu cule (carregador)
cruza o deserto de Jahí (mais um dos lugares chineses fictícios de Brecht) para
fechar um negócio de petróleo. Quando os dois se perdem no deserto e a água
começa a acabar, o comerciante atira equivocadamente no cule, achando que
estava sendo atacado, quando na verdade o cule estava lhe oferecendo água que
ainda tinha na garrafa. Posteriormente, na corte, o comerciante é absolvido: o
júri conclui que ele tinha todo o direito de temer uma ameaça potencial do
cule, portanto ele estava justificado em atirar no cule como legítima defesa
independentemente de haver ou não uma ameaça efetiva. Como o comerciante e o
cule pertenciam a classes diferentes, o comerciante tinha todas as razões para
esperar o ódio e a agressão – essa é a situação típica, a regra, enquanto a
bondade do cule era a exceção. Não seria essa história mais uma simplificação
marxista ridícula de Brecht? Não, a julgar pelo que nos mostra um relato
verdadeiro e atual da China:
“Em Nanquim, há meia década, uma idosa
caiu enquanto subia em um ônibus. Os jornais contam que a senhora de 65 anos
quebrou a bacia. No local, um jovem foi ajudá-la; vamos chamá-lo de Peng Yu,
pois este é seu nome. Peng Yu deu 200 ¥ para a senhora (na época, o
suficiente para comprar trezentas passagens de ônibus) e a levou ao hospital. E
continuou com ela até a chegada da família. A família moveu uma ação contra o
jovem, pedindo 136,419 ¥. O tribunal do distrito de Gulou, Nanquim,
efetivamente considerou o jovem culpado e ordenou que ele pagasse 45,876
¥. O tribunal concluiu que, ‘segundo o senso comum’, como Peng Yu
foi o primeiro a sair do ônibus, era praticamente certo que ele tivesse
derrubado a senhora. Além disso, ele na verdade admitiu a culpa, segundo o
tribunal, ao ficar com a senhora no hospital. Sendo assim, uma pessoa normal
não seria tão gentil quanto Peng Yu afirmava ser.” [4]
Esse incidente não seria um paralelo exato à
história de Brecht? Peng Yu ajudou a senhora por simples compaixão ou decência,
mas como essa demonstração de bondade não é “típica”, não é a regra (“uma
pessoa normal não seria tão gentil quanto Peng Yu afirmava ser”), ela foi
interpretada pela corte como prova da culpa de Peng Yu, e ele foi punido de
acordo. Não seria essa uma ridícula exceção? Nem tanto, de acordo com o People’s Diary (jornal do governo) que, em uma pesquisa de opinião
realizada online, perguntou a um grande grupo de jovens o que eles fariam se
vissem uma pessoa mais velha caída no chão: “87% dos jovens não ajudaria. A
história de Peng Yu reflete a vigilância do espaço público. As pessoas só
ajudam quando há uma câmera presente”. Essa relutância em ajudar sinaliza uma
mudança na condição do espaço público: “a rua é um lugar intensamente privado,
e aparentemente as palavras público e privado não fazem sentido nenhum”. Em suma,
estar em um espaço público não implica apenas estar junto de pessoas
desconhecidas – ao me mover entre elas, eu ainda estou dentro do meu espaço
privado, não estou envolvido em nenhuma interação com elas, tampouco as
reconheço. Para que seja considerado público, o espaço da minha coexistência e
interação com os outros (ou com a falta deles) tem de ser coberto por câmeras
de segurança.
Outro sinal dessa mesma mudança pode ser visto como
a extremidade oposta de se observar as pessoas morrendo em público e não fazer
nada – a recente tendência do sexo em público no ramo do pornô hard-core. Cada vez mais surgem filmes que mostram um casal
(ou mais pessoas) envolvidos em jogos eróticos até chegar à cópula propriamente
dita em algum espaço público bastante movimentado (em uma praia pública, dentro
de um bonde ou trem, em um ônibus ou estação de metrô, na área aberta de um
shopping center…), e o interessante é que a grande maioria das pessoas que
passam ignora a cena (ou finge ignorá-la) – uma minoria olha discretamente para
o casal, e menos pessoas ainda fazem uma observação obscena sarcástica. Mais
uma vez, é como se o casal fazendo sexo continuasse no seu espaço privado, de
modo que não devemos nos preocupar com sua intimidade.
Isso nos leva de volta ao “reino animal espiritual”
– ou seja, quem de fato se comporta assim, ignorando moribundos na bendita
ignorância ou transando na frente dos outros? Os animais, é claro. Esse fato de
modo nenhum implica a conclusão ridícula de que estamos de alguma maneira “regredindo”
ao nível do animal: a animalidade com a qual lidamos aqui – o egoísmo cruel de
cada um dos indivíduos que busca seus próprios interesses – é o resultado
paradoxal da rede mais complexa das relações sociais (troca comercial, mediação
social de produção), e o fato de os próprios indivíduos estarem cegos para essa
rede complexa aponta para o seu caráter ideal (“espiritual”): na sociedade
civil estruturada pelo mercado, a abstração domina mais do que nunca na
história da humanidade. Em contraste com a natureza, a competição do mercado de
“lobos contra lobos” é, portanto, a realidade material do seu oposto, da
substância pública “espiritual” que fornece a base e o pano de fundo para essa
luta entre animais privados.
Costuma-se dizer que hoje, com a nossa exposição
total à mídia, a cultura das confissões públicas e os instrumentos de controle
digital, o espaço privado está desaparecendo. Devemos contrapor esse
lugar-comum com a afirmação oposta: é o próprio espaço público que está desaparecendo. A pessoa que expõe na
internet fotografias do próprio nu ou dados íntimos e sonhos obscenos não é
exibicionista: os exibicionistas invadem os espaços públicos, ao passo que as
pessoas que postam suas imagens de nu na internet continuam no seu espaço
privado e estão apenas expandindo-o para acrescentar nele outras pessoas. E,
voltando a The
Act of Killing, o mesmo vale para Anwar e seus
colegas: eles estão privatizando o espaço público em um sentido que é muito
mais ameaçador do que a privatização econômica.
[1] Citado
do material de publicidade distribuído pela Final Cut Film Production.
[2] Podemos
até imaginar um teste empírico para essa afirmação: se pudéssemos recriar uma
circunstância em que cada uma das testemunhas pensasse que observava sozinha
essa cena grotesca, poderíamos prever que uma grande maioria delas teria
chamado a polícia, apesar do cuidado oportunista de “não se envolver no que não
é da sua conta”.
[3] G. W. F. Hegel, Elementos
da Filosofia do Direito (Elements of the Philosophy
of Right, Cambridge,
Cambridge University Press, 1991, §260).
[4] Michael Yuen, “China and
the Mist of Complicated Things” (texto cedido pelo autor).
***
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