Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

FEB
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de Roberto Romano
Artigo antigo. Republicado aqui e agora em homenagem aos "oniversitários"do Paraná.

28/02/2005

Ao verificar a lista das entidades civís que foram ao governo para apoiar a reforma "oniversitária" (para ficar com a fala do presidente da república), fiquei com muita vergonha. Na entrevista à Veja, refiro-me ao lombo flexível dos intelectuais. As zumbaias e rapapés cometidos pela OAB, Andifes, e outros, provam o dito. Não posso ser acusado de incoerência no entanto. Em artigo publicado no dia 23 de setembro de 2003, pela Folha de São Paulo (eu ainda era uma pessoa aceita pelo jornal),analisei a compulsão universitária pelo baccia mano. A coisa piora a cada instante. Enfim....só Deus mesmo sabe o que ocorrerá com um país dirigido por apedeutas espertos e por sábios oportunistas.


Folha de São Paulo 23 de Setembro de 2003.

 Sacrifício do intelecto,

Roberto Romano


 As zumbaias que parte dos setores universitários entoa para o governo federal, o silêncio diante da truculência nos cortes no setor de educação e de C&T, os acordos travestidos de 'negociações políticas' que cooptam muitos intelectuais lembram os ritos que impeliram pessoas brilhantes como Martin Heidegger ao louvor do autoritarismo.As verbas são parcas e o verbo livre torna-se mercadoria rara e caríssima, paga com a segregação e o anátema. 'Não há sacrifício do intelecto que satisfaça às insaciáveis exigências da falta de espírito' (Theodor W. Adorno).

Estas frases ecoam as advertências de Max Weber sobre a ciência enquanto vocação, texto que deveria ser obrigatório nas Universidades brasileiras. O sacrifício do intelecto é exigido pelas igrejas e partidos políticos, mas também molda as seitas universitárias. O lado ritual da coisa surgiu no passado remoto, pois os deuses têm fome de corpos humanos, sobretudo da caixa onde se aloja o cérebro. Mas a exigência de abandonar idéias em função de cargos estatais, ministérios eclesiásticos, prestígio acadêmico é recente. Ela vem com o nascimento de refinadas burocracias, a secular e a espiritual.Nelas se concentraram nos dirigentes o poder de exigir que dogmas sejam impostos e assumidos pelos subordinados. A regra de ouro para a seleção dos funcionários encontra-se na submissão aos preceitos verticais do mando. Veleidades de autonomia noética trazem anátemas, silêncios, solidões. Espinosa conhecia tal prisma ao recusar a cátedra de Heildelberg. O príncipe pediu-lhe 'apenas' o sacrifício de não incomodar as verdades religiosas. 'Desconheço limites para a minha liberdade de pensar.' Agraciado com os vitupérios de políticos e de reverendos, o pensador escreveu a mais rigorosa ética moderna.

Antes da Revolução Francesa, a igreja exigiu de seus pensadores a plena alienação intelectual. No século 18, o papa Clemente 13, temendo o laicismo e o pensamento ateu, redigiu a encíclica 'Quantopere Dominus Jesus', dizendo aos fiéis que a fome da verdade é natural, mas que o espírito santo deseja que ela seja refreada. E ordenou o pontífice que as pesquisas fossem até os limites permitidos pela autoridade religiosa. Graças às críticas do cardeal Passionei, o documento não foi publicado. O mundo católico ainda não era refém da burocracia curial. Mas logo vieram a 'Quanta Cura' e o 'Syllabus', que proibiram o pensamento autônomo e denunciaram a 'liberdade de perdição'. Para fugir daqueles pecados, só o sacrifício do intelecto. Estavam prontas as bases para o reinado do cardeal Ratzinger e de João Paulo 2º.

No Estado, desde o Termidor, passando pela censura napoleônica e chegando ao totalitarismo do século 20, a norma foi a renúncia ao intelecto pessoal. E surgiu a cultura dos militantes com a sua lógica ensandecida. Tal imposição une-se à exigência do silêncio obsequioso. Immanuel Kant sofreu a censura e, segundo Domenico Losurdo, internalizou-a. Ao contrário de Espinosa, o 'chinês de Konigsberg' valorizava a cátedra e já estava imbuído do espírito burocrático universitário. Liberdade, para ele, apenas fora do mundo oficial. Lyssenko foi um caso espetacular de sacrifício do intelecto somado ao silêncio obsequioso dos cientistas soviéticos e ocidentais que ajudaram Stálin. Sem os dois elementos, muito certamente a política socialista conheceria outros rumos. Mas a tolice do governante foi aplaudida pelos acadêmicos, o que os tornou mais culpados do que o próprio autocrata.

No Brasil, a crítica recebe veto perene. A tradição oficialista ordena que as espinhas se curvem, sempre que um novo inquilino se instala no poder. A crítica e a oposição constituem mau gosto e devem ser banidas dos campi e dos laboratórios. Quando Fernando Henrique presidia o país, escrevi, nesta coluna, um artigo intitulado 'O PT e a dignidade da oposição'. Nele, criticava autoridades que ironizavam aquele partido. Hoje, noto que a mente dos que ocupam o poder é a mesma. A forma é petista, mas o conteúdo tem o sabor do oficialismo. Na época, a imprensa e os intelectuais eram valiosos para o PT. Hoje, com verbas imensas e Duda Mendonça, quem no governo precisa de crítica? Apagar o que se produziu é o primeiro passo para a boa acolhida entre os cortesãos. E pobre de quem ergue a espinha e a face! Enquanto essa mentalidade imperar entre políticos e universitários brasileiros, vários Lyssenko serão paridos entre nós. Pensamento e ciência são riquezas que não podem ser alienadas, por mais sublime que seja a 'causa' alegada. O respeito pela diferença integra a democracia. Quem recusa esse ponto, adestra-se para aceitar com louvores os piores golpes contra os cidadãos. Silêncios obsequiosos e sacrifício do intelecto geram apenas servilismos, como assistimos em nosso país desde o século 16.
(Folha de SP, 24/9)

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