Do coração e outros corações

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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

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Prefácio ao Diálogo entre Primo Levi e Tullio Regge Do blog RERUM NATURA

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Acaba de sair na colecção "Ciência Aberta" da editora Gradiva um muito interessante Diálogo sobre a Ciência e os Homens entre o escritor Primo Levi e o físico Tullio Regge, em tradução do professor de Física da Universidade do Porto Eduardo Lage e prefácio de outro professor de Física da mesma Universidade José Moreira Araújo. Por amabilidade da editora transcrevemos o prefácio:

De um diálogo entre o consagrado escritor italiano Primo Levi (1918-1987) e um físico teórico, também italiano do Piemonte, Tullio Regge — famoso por razões bem diversas —, muitos poderiam recear um verdadeiro «diálogo de surdos». Sê-lo-ia, provavelmente, para duas personalidades escolhidas ao acaso de entre os cultores daquelas áreas. Mas Primo Levi e Tullio Regge, pela sua inteligência e bom senso, espírito criativo e abrangente curiosidade, podem ser considerados, qualquer deles, como dignos representantes das «duas culturas».

Nos nossos dias, dispomos de acesso quase instantâneo a bases de dados que relatam, melhor ou pior, a biografia de um escritor como Primo Levi: a sua juventude em Turim, os seus estudos superiores, as medidas antijudaicas, a resistência à ocupação alemã, a prisão e o envio para Auschwitz, a improvável sobrevivência, a libertação pelo Exército Vermelho, a saga do regresso à cidade natal e à profissão de químico industrial. E, depois, a aparentemente irresistível necessidade de escrever, de depor, sobre horrores vividos.

A sua obra literária, hoje traduzida em muitas línguas, cresceu e diversificou-se ao longo de quatro décadas,num estilo marcado pela sua formação e curiosidade científica. No entanto, muitos de nós, pouco confiantes no seu domínio da língua italiana, tiveram de esperar anos, por vezes muitos, por uma tradução em língua mais divulgada, por exemplo inglês. Com a excepção, que creio única, de Se questo e un uomo, tais traduções só surgem a partir dos anos 80. Foi o que me aconteceu: por exemplo, só em 1984 li The Periodic Table, quando a edição original, Il Sistema Periodico, é de 1975; a partir daí fui ampliando, atentamente, a minha pequena colecção que, hoje em dia, até inclui alguns originais italianos, como o Dialogo de Primo Levi e Tullio Regge.

Neste Ano Internacional da Química (2011), não será despropositado recordar que, em 2006, a prestigiada e centenária Royal Institution britânica decidiu identificar o melhor livro sobre ciência jamais escrito («the best science book ever written»). Convidadas instituições e individualidades a propor obras dessa índole, não faltaram sugestões de escritos assinados por notáveis, do século XIX aos contemporâneos: Charles Darwin, Bertold Brecht, Konrad Lorenz, Peter Medawar, James Watson, Richard Feynman, Roger Penrose, Oliver Sacks, Richard Dawkins, etc., etc. E o difícil problema de escolha terminou com a proclamação da obra vencedora: precisamente O Sistema Periódico, de Primo Levi. Se o autor ainda vivesse teria, provavelmente, acolhido a notícia com não mais que um modesto sorriso…

Conheci Tullio Regge muito antes de me tornar leitor ávido de Primo Levi. Aconteceu no Verão de 1953, na École d’Été de Physique Théorique, que se realizava, pela terceira vez, em Les Houches, pequena povoação nos Alpes franceses, a uns oito quilómetros da estância de Chamonix. Havia então um numerus clausus de 30 alunos, igualmente repartido entre franceses e estrangeiros, e um corpo docente internacional, escolhido entre físicos de renome, que aceitavam colaborar na «recuperação pós-guerra» da Física francesa. Naquele ano, apenas um convidado tinha já a aura do Nobel: o inconfundível Wolfgang Pauli (1945). A este, em breve se juntariam três outros professores daquele ano, William Shockley (1956), J. Hans D. Jensen (1963), Alfred Kastler (1966), existindo pelo menos outros tantos (Rudolf Peierls, C. Møller, C. J. Gorter) não menos notáveis. Os alunos estrangeiros tinham as mais variadas proveniências e havia, naturalmente, alguns italianos, nomeadamente Vladimir Glebovich Wataghin e Tullio Regge.

O primeiro era o filho mais novo de Gleb Wataghin (1899-1986), russo naturalizado italiano, cuja atribulada história é brevemente evocada por Tullio Regge no Diálogo. Algo decepcionado com as engenharias, levado por um amigo a visitar Gleb Wataghin no seu escritório, Regge encontra o seu caminho: «Entrei engenheiro e saí físico, sonhando de olhos abertos.»

Gleb Wataghin tinha estado na origem da actualização do ensino superior da Física em Turim. Em 1934, aceitara um convite para a Universidade de São Paulo que, para seu bem e dos físicos brasileiros, só terminou no pós-guerra, quando regressou a Turim. Vladimir também falava português e gostava de o praticar, em longas conversas que tínhamos.

O que assim fiquei a saber, através daqueles colegas italianos, levou-me a incluir numa carta de Agosto de 1953, dirigida ao director do Laboratório de Física da Universidade do Porto, a seguinte passagem:
 «Não seria também aconselhável convidar um ou mais físicos de primeira classe para ir até Portugal? Afinal, há coisa de 20 anos não havia, praticamente, físicos no Brasil. Convidam Wataghin que, sem ser um génio era um bom físico e um bom professor, e, 10 anos depois, além de Lattes, Leite Lopes, Tiomno e alguns outros, tinham atraído Feynman, Rossi, Occhialini, Bohm, para só citar nomes mais conhecidos — ainda que alguns sejam apenas ‘professores visitantes’ passando no Brasil um ou dois trimestres por ano.»

O destinatário da carta— recuperada, por mero acaso, 50 anos depois — sublinhou a passagem, mas não sei se a terá transmitido «superiormente». Aparentemente, Gleb Wataghin tinha, também, o precioso dom de bem avaliar as pessoas: Tullio Regge era, sem dúvida — juntamente com o francês Pierre-Gilles DeGennes — uma das maiores promessas do curso de 1953 de Les Houches. A sua lista das distinções, acumuladas ao longo dos anos, fala por si: Prémio Dannie Heinman de Física Matemática (1964), Prémio Albert Einstein (1979) (atribuída a Stephen Hawking no ano anterior), Medalha Cecil Powell (1987), Medalha Dirac (Centro Internacional de Física Teórica, 1996), Prémio Marcel Grossman (1997), Prémio Pomeranchuk (2001).

Ao longo do tempo não mantive contactos regulares com Regge; apenas recordo correspondência ou mensagens associadas a possíveis estadias em Turim de físicos ou astrofísicos portugueses, que me abordavam. Mas encontrar-nos-íamos mais uma vez, quando fui membro de uma Comissão Científica e Técnica, em Bruxelas.

Um belo dia somos informados de que um deputado do Parlamento Europeu desejava avistar-se com a Comissão, e sou surpreendido ao reconhecer Regge, numa cadeira de rodas, conduzida por uma jovem. Como ficaria a saber, Regge foi deputado (independente) do Parlamento Europeu no quinquénio 1989-1994.

Mais surpreendido fiquei quando aquela jovem atravessa a sala para me vir dizer que o pai pedia que, terminada a reunião, não saísse sem ir falar com ele. Assim fiz, notando que várias cabeças se voltavam para mim; e logo acorreram comissários e altos funcionários, aparentemente interessados em serem vistos junto ao parlamentar. Enfim, a nossa conversa não chegou a ser o que, provavelmente, ambos gostaríamos que tivesse sido. Mas foi um prazer reencontrar Regge, passados quase quarenta anos.

J. MOREIRA ARAÚJO
Professor Catedrático de Física da Faculdade de Ciências, jubilado em 1998, e actualmente Professor Emérito da Universidade do Porto.
Maio de 2011

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