Do coração e outros corações

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quinta-feira, 15 de março de 2012

JORNAL DA UNICAMP
do Blog de Roberto Romano

Portas da exclusão
Tese de doutorado desenvolvida no IE analisa
as transformações ocorridas no circuito imobiliário


Tese de doutorado desenvolvida pela arquiteta e urbanista Mariana Fix, apresentada ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp, promove profunda investigação em torno das transformações sofridas pelo circuito imobiliário no Brasil a partir do advento da globalização. No trabalho, orientado pelo professor Wilson Cano, a autora constata que o segmento perdeu o caráter eminentemente mercantil e passou a responder à lógica financeirizada. “Essa transformação coloca novos problemas para os movimentos sociais, assim como para o pensamento crítico sobre a questão urbana. O aumento da capacidade do capital de impor seus requerimentos modifica a estrutura dos conflitos e apresenta novos desafios à luta pelo direito à cidade, ou seja, à luta para que a paisagem urbana responda a critérios universais, no campo dos direitos sociais”, analisa a pesquisadora.
Mariana Fix tem estudado o tema desde a graduação, feita na USP. No mestrado e doutorado, ela esmiuçou a participação dos diversos agentes envolvidos no circuito imobiliário. As investigações ofereceram subsídios para a produção de dois livros: São Paulo cidade global – Fundamentos financeiros de uma miragem (Boitempo), no qual reflete sobre o surgimento da “nova São Paulo”, analisando as conexões entre capital imobiliário e financeiro, e Parceiros da exclusão, da mesma editora, no qual aborda a questão da exclusão de moradores das classes média e baixa do novo centro financeiro de São Paulo, propiciada por projetos executados em parceria pelo poder público e a iniciativa privada.
Conforme a pesquisadora, a partir de meados do século XIX, o crescimento das cidades, a diversificação econômica e a consequente formação de um mercado de trabalho urbano abriram novas frentes de investimentos, como a construção de casas e vilas operárias. Assim, o urbano passou a ser uma frente de valorização do capital. Entretanto, como a demanda por habitação era atendida apenas em parte por fazendeiros, comerciantes, industriais e trabalhadores, o segmento abriu-se para investimentos de capitais excedentes tanto nacionais quanto internacionais.
Durante bom tempo, pontua a autora da tese, esse circuito imobiliário permaneceu como órbita reservada das elites brasileiras. Nos anos 1990, as políticas de estabilidade monetária, a abertura econômica, as privatizações e a desregulamentação de diversos setores inseriram o Brasil na globalização. O segmento, porém, manteve-se como campo privilegiado dessas elites. Inicialmente, o setor imobiliário não acompanhou a internacionalização de outros setores e permaneceu sob o comando do capital nacional mercantil. “No início do governo Lula, o volume de recursos direcionados ao circuito imobiliário cresceu significativamente, por meio de medidas tomadas pelo Ministério das Cidades. Fluxos contínuos de financiamento contornaram o problema da instabilidade econômica e propiciaram ao circuito certo alargamento, superando algumas das limitações impostas pelo autofinanciamento”, detalha Mariana Fix.
Como consequência, muitas empresas abriram capital na Bolsa de Valores e se capitalizaram. O aumento na escala financeira foi acompanhado por mudanças nas estratégias das empresas, como o lançamento de novos produtos, a criação de marcas especializadas no “segmento econômico” e a expansão do alcance territorial das empresas, na direção das cidades médias e de outros estados. Tal processo, afirma a arquiteta, já encontrava seu limite quando emergiu a crise financeira nos Estados Unidos, em 2007. “Entretanto, a crise foi utilizada como pretexto para o lançamento do pacote habitacional Minha Casa, Minha Vida (MCMV), que funcionou como uma espécie de operação de salvamento do setor. Isso recuperou o valor das ações das empresas que haviam liderado as perdas na Bolsa no início da crise”, esclarece. O MCMV impulsionou, ainda, um conjunto de empesas que estavam em processo de concentração e centralização de capital pela via financeira. “Em outras palavras, o circuito imobiliário passou a responder diferentemente aos fluxos de crédito, às políticas urbanas e às lutas sociais”.
Dentro dessa nova configuração, o capital financeiro abriu vias de comunicação entre os vários estratos e segmentos do setor imobiliário. Praticamente todas as grandes empresas passaram a atuar no já citado “segmento econômico”, mesmo aquelas antes especializadas em empreendimentos de alto luxo. “Trata-se de uma invenção político-imobiliária que impõe, com seu aparente triunfo, a derrota de lutas sociais por uma produção da cidade não-mercantil, com qualidade arquitetônica e urbana definidas segundo outros parâmetros. A urbanização sem cidade é a forma de expansão do capital financeiro no espaço urbano”, critica a pesquisadora.
Ainda sobre o MCMV, Mariana Fix entende que o programa articula um problema social real e importante, a falta de moradias, aos interesses capitalistas. “O programa responde a problemas de acumulação, injetando recursos no circuito imobiliário, e de legitimação, ao responder à pressão das lutas sociais por habitação e emprego. Em síntese, o Minha Casa, Minha Vida alçou a habitação a ‘problema nacional’ de primeira ordem, mas o definiu segundo os critérios do capital, dos negócios e da política eleitoral. O programa alimenta um circuito que procura maximizar os ganhos por meio de operações especulativas com a terra. Na falta de uma política fundiária, a tendência é que parte dos fluxos de capitais viabilizada com o aumento do crédito seja capturada na forma de renda da terra”.
Diante de tantas transformações, prossegue Mariana Fix, os movimentos sociais que atuam na defesa do direito à habitação e do direito à cidade estão sendo confrontados por novas questões. “O movimento pela moradia passou a disputar terra para seus projetos com as empresas imobiliárias, com a desvantagem de não contar com um departamento jurídico poderoso para viabilizar a aprovação dos empreendimentos. Movimentos de luta pelo direito à cidade, que reivindicam o uso dos espaços vazios e ociosos de das áreas centrais, com boa infraestrutura, correm o risco de ficar falando sozinhos com a expansão do modelo de urbanização sem cidade, como os grandes conjuntos habitacionais horizontais produzidos dentro do programa MCMV”.
Questionada sobre a efetividade e pertinência das chamadas “políticas de revitalização” conduzidas nas áreas centrais de médias e grandes cidades brasileiras, a arquiteta considera que essas iniciativas geralmente não partem dos problemas intrínsecos da população que vive nessas áreas, mas sim de modelos urbanísticos que tratam a cidade como negócio. “Um exemplo é a concessão urbanística da Nova Luz, que concede a uma empresa o direito de explorar um trecho [45 quarteirões] no Centro de São Paulo e ser remunerada pelos ganhos que obtiver na operação. O motor desse modelo é a valorização imobiliária. O termo revitalização tem, desse modo, um caráter ideológico e encobre o fato de que existe, sim, muita vida nos centros urbanos, embora talvez não seja a desejada pelos que estão preocupados com a recuperação do preço da terra. Para estes, é importante atrair pessoas ‘do tipo certo’”.
Outro aspecto que tem conexão com esse modelo de expulsão de indesejáveis é a intensificação da construção de núcleos habitacionais nas franjas das cidades, ou seja, distantes dos centros comerciais e financeiros. Com isso, são mantidos os vazios urbanos, cujos terrenos não cumprem a função social determinada pela Constituição. Tal lógica também obriga o poder público a estender a infraestrutura para uma área além da necessária. O resultado dessa equação é o aumento do tempo e dos custos de deslocamento da população até o trabalho, escola ou lazer. “A aplicação dos instrumentos urbanísticos que permitiriam enfrentar essas distorções depende, contudo, da luta social em cada município. A dificuldade de aplicá-los, no caso dos vazios urbanos, depende do poder social dos seus proprietários, muitas vezes fortemente representados nas câmaras municipais. Se era difícil aplicar os instrumentos de combate à especulação quando o enfrentamento era com o capital mercantil, a dificuldade é ainda maior quando os antigos donos do poder se associam ao capital financeiro”, adverte Mariana Fix.
Publicação
Tese: “Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil”

Autora:
 Mariana Fix

Orientador:
 Wilson Cano

Unidade:
 Instituto de Economia (IE)

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