Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

segunda-feira, 5 de março de 2012

Sobre mercados, gerentes e cia ...

A fábrica de papers

A organização do trabalho na universidade está passando por uma profunda modificação: ela não é mais voltada para a realização de pesquisas exemplares que disputem o reconhecimento dos pares, mas para a conquista de metas de produtividade que gerem reconhecimento credencial das instituições de avaliação. A universidade se parece cada vez menos com um colegiado aristocrático de cientistas desinteressados e cada vez mais com uma fábrica de papers: uma fábrica povoada de operários obedientes. O resultado desta mudança de perfil organizacional não é apenas burocratização e aceleração do trabalho – ela também gera uma profunda corrupção do sistema de comunicação científica.
Um mercado concorrencial de papers
A pesquisa universitária se constituiu modernamente segundo o modelo do colegiado aristocrático de cientistas desinteressados – pesquisadores que, emancipados da lógica econômica, podiam ociosamente investigar o mundo. Para isso foram criados os sistemas de estabilidade (as cátedras e ostenures) e independência acadêmicas (autonomia de pesquisa) que simulavam as condições sociais da pesquisa aristocrática do século XVIII. Embora houvesse algo de anacrônico neste modelo, ele parece ter se ajustado bem às estruturas capitalistas modernas até o fim do boom científico posterior à segunda guerra mundial. No entanto, junto com a crise do estado de bem-estar, a “excepcionalidade” organizacional da ciência foi posta em xeque. Não há ainda consenso sobre o que causou essa mudança. Dardot e Laval, num artigo célebre, atribuem essa mudança ao neoliberalismo – que não consistiria na simples desregulamentação econômica, mas na ampliação da lógica da competição de mercado para todas as esferas da vida. Uma outra explicação para o fenômeno seria a emergência da economia do conhecimento que teria aproximado as formas de organização da empresa capitalista e da universidade num processo que Steven Vallas e Daniel Kleinman chamaram de “convergência assimétrica”.
Seja qual for a explicação, o princípio orientador da mudança em curso faz a universidade operar como se fosse uma fábrica produzindo para um mercado concorrencial. Apesar de não ser uma organização econômica e não vender papers, a universidade passa a ser pensada no modelo input(trabalho humano)/ output (papers e patentes) e se orientar por metas objetivas e crescentes de produtividade. Quando os propositores do modelo são chamados a se explicar, geralmente expressam dois tipos de preocupação: por um lado, diminuir a ociosidade e aumentar a “intensidade” da atividade científica (chamada, sem meias palavras, de “produtividade”) e, por outro, aperfeiçoar os processos de avaliação administrativa fornecendo parâmetros objetivos de mensuração do sucesso.
O objetivo da revolução gerencial na universidade parece ser o de laborizar a atividade científica, submetendo-a a padrões de gestão empresarial. Mas por que o modelo econômico-gerencial deveria ser adequado para gerir a ciência? Em outras palavras, precisamos, os cientistas, ser menos “ociosos” e ter padrões “quantitativos” de administração e controle?
O quantitativo e o qualitativo
Ao introduzir indicadores quantitativos para controlar o trabalho científico, o modelo econômico-gerencial enfrenta uma dificuldade: os resultados da pesquisa científica não têm uma dimensão quantitativa inerente cuja relevância seja suficiente para a avaliação. O único critério quantitativo imediato é o número de artigos produzidos. No entanto, esse indicador isolado é muito impreciso, já que os papers variam em qualidade. O que faz então é incorporar e quantificar a avaliação qualitativa do sistema de publicação por pares das revistas científicas: presumindo que a avaliação da qualidade foi feita pelas revistas científicas, passa-se a quantificar o número de artigos publicados em revistas com revisão por pares. Mas esse novo indicador ainda é impreciso já que os periódicos diferem em rigor de avaliação. Por isso, são utilizados critérios adicionais como os de fator de impacto (a quantidade média de vezes que um artigo de uma determinada revista é citado) para ponderar o valor da publicação em cada revista. Ainda para evitar imprecisões, o sistema restringe a comparação da avaliação apenas para um mesmo campo científico. O resultado é um sistema de pontos onde cada artigo é ponderado por um fator relativo à importância da revista. Gera-se assim uma pontuação que permite hierarquizar todos os cientistas de um campo científico de acordo com a sua “produtividade”: quanto mais artigos se publica em revistas importantes, mais produtivo se é. Essa pontuação fornece parâmetros objetivos para todas as necessidades de seleção do sistema de administração da ciência: a contratação, a promoção na carreira e a distribuição das verbas de pesquisa.
Embora evidentemente facilite a administração científica, ao baseá-la em indicadores, o sistema de avaliação científica econômico-gerencial tem pressupostos de duvidosa razoabilidade. Poucos cientistas considerariam razoável comparar e hierarquizar quantitativamente dois artigos sérios de pares de duas sub-áreas distintas – por exemplo, um artigo de sociologia da religião e um artigo de sociologia do trabalho. Que tipo de critério não arbitrário permitiria definir qual artigo é “melhor” e ainda por cima quantificar esse grau de superioridade qualitativa? Ao hierarquizar as revistas e conceder a elas pontos distintos, a avaliação faz justamente isso: diz que um artigo publicado na revista A é “1,7 vezes melhor” que um artigo publicado na revista B, independente do seu conteúdo. Diz também que uma pesquisa que gera quatro artigos é “duas vezes melhor” que uma pesquisa que gera apenas dois.
Uma vez explicitados os fundamentos lógicos do sistema de avaliação, eles parecem simplesmente absurdos.
Corrupção da comunicação científica
Ao publicizar as regras, o sistema de avaliação estimula os cientistas a competirem entre si para maximizar as chances de publicação nas melhores revistas, criando um mercado concorrencial. Em tese, esta competição levaria os melhores cientistas a terem seus papers mais frequentemente aceitos pelas melhores publicações. No entanto, o resultado é uma disputa por produção de indicadores e não pela qualidade dos artigos. Se forem atores racionais orientados para maximizar os seus interesses de serem contratados, subirem na carreira e aumentarem suas verbas de pesquisa, os cientistas não priorizarão fazer pesquisas de qualidade, mas gerar o maior número de papers com potencial de serem aceitos em revistas bem avaliadas.
É justamente o desacordo entre os dois objetivos que leva à corrupção do sistema de comunicação científica. Quando a ciência se orientava para a disputa por reputação, os cientistas se empenhavam em realizar pesquisas exemplares que impressionassem o julgamento qualitativo dos pares. Com o sistema de avaliação econômico-gerencial esse objetivo é subordinado ao de atender os indicadores de produtividade de pesquisa. Isso não apenas faz com um tempo excessivo seja dedicado às estratégias de publicação, como estimula e legitima práticas de comunicação corrompidas: publicar o mesmo argumento em artigos diferentes; apresentar uma mesma ideia em partes, publicadas em diferentes artigos; publicar ideias imaturas; co-assinar artigos nos quais a colaboração foi apenas pontual; etc.
Num sistema concorrencial com avaliação puramente quantitativa e regras publicizadas, o purismo de se abster destas práticas corrompidas é apenas moralismo antieconômico. Do ponto de vista sistêmico, o recurso às práticas corrompidas está disponível a todos – bons e maus cientistas – e cabe apenas aos bons se aproveitar mais das oportunidades do que os maus.
Mas esse ainda não é o problema principal. O conjunto do sistema de comunicação científica se desarticula com a disseminação destas práticas. Como o sistema premia o número de artigos publicados, o resultado é um inchaço do número de artigos que faz multiplicar a irrelevância, a repetição e a fragmentação. Torna-se assim cada vez mais difícil encontrar o artigo importante no meio do oceano de papers irrelevantes, redundantes e parciais que nunca deveriam ter sido publicados. Em muitas áreas consolidadas, a quantidade de artigos é tamanha que já não é mais possível fazer uma revisão bibliográfica completa. A situação chegou a um ponto tão crítico que um recente estudo encomendado por gestores de importantes universidades americanas comparou o processo a uma “corrida armamentista” e recomendou com urgência a adoção de políticas de “publicação responsável”.
Além da crítica negativa
A avaliação econômico-gerencial não consegue de maneira apropriada separar a boa da má pesquisa, é incapaz de hierarquizar os cientistas de um mesmo campo e submete os pesquisadores a um regime de produção acelerado e orientado para a publicação de artigos supérfluos. Ela coloca os cientistas na condição de operários e os gestores na condição de patrões impiedosos.
A comunidade científica, no entanto, tem muitas vezes resistido a essas investidas contra os seus valores e práticas tradicionais de uma maneira negativa. Isso permite que os gestores assumam a cômoda posição de dizer que o modelo econômico-gerencial é o único modelo de avaliação disponível e que os opositores a ele não dispõem de um paradigma que seja operacional. Com o crescimento do sistema universitário e o aumento da pressão social pelo controle dos gastos com a ciência há uma urgente necessidade de um modelo de avaliação que permita a supervisão pública e critérios de distribuição dos recursos.
Por isso, precisamos desenvolver um sistema de avaliação que esteja de acordo com os nossos valores: que seja democraticamente construído e acordado; que seja fundamentalmente qualitativo e realizado por pares; que avalie os ciclos de pesquisa, respeitando a sazonalidade da divulgação dos resultados; que compreenda o valor das diferentes modalidades de publicação (relatórios técnicos, livros, apresentações em congressos etc.); que tenha parâmetros internos às diferentes áreas; que compreenda as particularidades das novas áreas (que não têm departamentos e programas, nem revistas e congressos) e das áreas interdisciplinares (cujos resultados são apresentados e publicados em campos de pesquisa diferentes).
Reunir essas preocupações num sistema de avaliação viável não parece um objetivo inexequível. Se queremos sair da posição de operários obedientes precisamos abandonar a fábrica e construir uma alternativa a ela. Não é suficente reclamar do patrão ao final da jornada.
Referências:
Dardot, P.; Laval, C. Néolibéralisme et subjectivation capitaliste. Cités. v. 1, n. 41, 2010. p. 35-50.
Kleinman, D. L.; Vallas, S. P. Science, capitalism, and the rise of the ‘knowledge worker’: The changing structure of knowledge production in the United States. Theory and Society. v. 30, n. 4, 2001. p. 451-492.
Kleinman, D. L.; Vallas, S. P. Contradiction, Convergence, and the Knowledge Economy: The Co-Evolution of Academic and Commercial Biotechnology. Socio-Economic Review. v. 6, n. 2, 2008. p. 283-311.
Hartley, D.; Acord, S. K. Peer Review in Academic Promotion and Publishing: Its Meaning, Locus, and Future. Berkeley: Center for Studies in Higher Education, 2011.

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