O Capitão Nascimento nas mãos de Robespierre: a violência divina e o abismo do ato político
Revista Zagaia
A proposta
deste texto é confrontar dois conjuntos heterogêneos de fragmentos: alguns
extraídos daquilo que chamaremos de “teoria da violência” do filósofo esloveno
Slavoj Žižek, outros do filme Tropa de Elite, de José Padilha (2007).
Quanto à teoria da violência de Žižek, ela própria aparece de modo fragmentado e
controverso ao longo da obra do filósofo, assumindo diferentes nuances em cada
contexto, conforme se aproxime mais da teoria do ato ético em Hegel e Lacan ou
da teoria do ato político em Marx e Walter Benjamin. Nesse sentido, seria
equivocado tomá-la como uma teoria coesa. Nossa tese é, justamente, de que o
filme Tropa de Elite reúne e dissolve a violência em uma teoria unitária, sendo
este seu principal risco ideológico. Por outro lado, lido como uma espécie de
exagero aplicado da teoria žižekiana da violência, o filme nos permite iluminar
os riscos necessários e inerentes às teorias da violência, quer pela unificação
de seu objeto (como advogamos na recente análise do filme Em um Mundo
Melhor, de Susane Bier[1]), quer pelo circunstanciamento que elas
produzem do campo político, como queremos discutir agora.
No que diz respeito ao filme, não pretendemos submetê-lo
a uma análise sistemática nem quanto ao conteúdo e nem quanto à forma.
Tencionamos tão somente tomar alguns de seus fragmentos narrativos e formais
para colocar em questão as estratégias discursivas por meio das quais é posta em
cena uma discussão a respeito da violência. Destacamos, dessa maneira, a função
do narrador, cuja voz é acessível ao espectador, como se este fosse leitor de
seus atos mentais, e o elemento temático da escolha ao qual o personagem
central, Capitão Nascimento, está recorrentemente convocado, seja pela escolha
de seu sucessor, seja pela lógica da escolha de sobreviventes, pela qual a
situação é apresentada.
José Padilha
nunca deixou de apresentar seu filme sob a alçada de um projeto que se pretende
crítico.[2] Quanto a isso, basta
lembrar a frase que abre o filme, uma citação de Stanley Milgran, que aparece
antes da entrada da música de abertura: “A psicologia social deste século nos
ensinou uma importante lição: usualmente não é o caráter de uma pessoa que
determina como ela age, mas sim a situação na qual ela se encontra”. Lembremos
aqui que o famoso experimento de Milgran, realizado no pós guerra, consistia em
expor pessoas ingenuamente recrutadas para um experimento científico à situação
na qual elas, sob as ordens de um cientista paramentado como tal, deviam acionar
um botão, que elevava progressivamente a intensidade de choques elétricos
supostamente aplicados a um ator. A idéia é simples e mimetiza a situação na
qual alguém deve obedecer a ordens que impingem violência ao outro. O sujeito
experimental via outro ser humano, amarrado a uma cadeira, experimentar a dor
visceral gerada pelos supostos choques elétricos. O sofrimento induzido por seu
ato podia ter sua responsabilidade transferida para o cientista, que afinal
simplesmente pedia que a dose do choque fosse aumentada. O “homem comum”
facilmente se identificava com este lugar de “suporte e executor da lei”,
chegando, na maioria dos casos, a impingir voltagens letais (indicada no aparato
que estava sob seu controle). Em outras palavras, Milgran provou que a barbárie
dos campos de extermínio não era obra de um súbito enlouquecimento
individualmente patológico, mas que, sob certas condições, a autoridade
constituída e nossa servidão voluntária, podem levar “qualquer um” a fazer
pior.
Esse é um ponto central no filme de Padilha. Capitão
Nascimento não é “qualquer um”, pela forma pessoal com a qual se envolve em sua
tarefa, mas por outro lado ele é exatamente como “qualquer um”, que
identificando-se à figura do justiceiro, acaba gozando com a suspensão da lei,
para melhor atingir os objetivos da lei. Lembremos que Walter Benjamin introduz
a figura da violência divina para romper a dicotomia opressiva entre as duas
formas modernas de incidência da violência: a violência que preserva a lei e a
violência que faz a lei. Ou seja, Benjamin está às voltas com o problema do
monopólio da violência pelo Estado, que institui a violência na chave fechada da
relação entre meios e fins. A lei, assim constituída, e assim reduzida, torna-se
uma instituição patológica, incapaz de atender ao apelo ético por justiça e
passa a servir apenas para incitar o sentimento de segurança e inversamente
monopolizar a administração social do medo. Como observou Axel Honneth, a
violência divina suspende a violência administrada, ao introduzir uma
indeterminação entre meios e fins. Ela se torna um meio expressivo, não baseado
em finalidade exterior, daí que seja violência pura, cujo efeito seria educativo
– mostrar que não se deve pensar a violência no círculo fechado da vingança, da
administração social, da domesticação de sentimentos e desejos. Portanto há uma
recepção do filme que claramente exemplifica o cultivo da violência administrada
ao modo da crítica de Benjamin e do experimento de Milgran: nos identificamos
com esta figura excepcional, dentro e fora da lei, que é o Capitão Nascimento,
para melhor gozar da irresponsabilidade de ser apenas suporte da lei (como
qualquer um), sem ter que pagar o preço pelos riscos de suspender a lei (em um
ato excepcional). Exemplo da violência impura.
No entanto, é peculiar o modo como Padilha se apropria
dessa ideia. Tudo se passa como se o que o diretor colocasse em jogo não fosse
além do que o contexto mais imediato possível de ação, deixando de colocar em
questão de modo mais abrangente as coordenadas simbólicas que impõe seus
horizontes possíveis para além de si mesmos. Isso se passa mesmo quando Padilha
realiza, com Tropa de Elite II, uma inversão que busca situar
a discussão no campo da política mais do que no da ética, tal como se privilegia
no primeiro da série. É, aliás, precisamente nessa inversão, ou seja, ao situar
“as verdadeiras raízes” do problema da violência urbana carioca na corrupção “do
sistema”, que o filme perpetra de modo mais acentuado um discurso que naturaliza
a violência policial, tomada como solução do problema não fosse a corrupção do
dito sistema. Como afirma Vladimir Safatle em um artigo sobre o
filme:
As ações
violentas, as torturas sistemáticas contra “vagabundos”, a compreensão das
favelas como território de guerra, as balas perdidas, a humilhação cotidiana
contra uma população que vê o Estado e seu aparato policial como inimigos: nada
disso explicaria por que a polícia que mais mata no mundo nunca conseguiu vencer
a luta contra o crime. Na verdade, se o método truculento ainda não deu certo,
isto seria resultado exclusivo da corrupção generalizada.[3]
O subtítulo de Tropa de Elite II – “o
inimigo agora é outro” -, merece, portanto, nossa maior atenção, já que, na
lógica de guerra civil adotada pelo filme, o inimigo nunca deixou de ser o
outro. O problema aqui é que o “campo fechado” nos quais as escolhas éticas e as
decisões políticas devem ser tomadas apenas cresceu e se ampliou (incluindo o
sistema), ele não mudou a sua razão de constituição. Continuando a ser percebido
como uma totalidade fechada, e agora ainda mais asfixiante pelo incremento de
sua extensão, acentua-se a oposição entre dentro e fora, entre participar da
mesma coisa, das regras do jogo político, midiático, institucional ou estar fora
da lei e assumir a “livre iniciativa” representada pela vida de crimes e
corrupções. Ora, se lermos o filme apenas como a dissolução desta fronteira, de
tal forma a encontrarmos “ordem na violência criminosa” e “violência da na ordem
legal”, mantemo-nos prisioneiros da violência administrada. Isso identificaria a
totalidade do campo político com a totalidade do campo da violência.
Mas isso é dizer pouco. Para introduzir uma
contra-leitura temos que nos separar um pouco das teses do filme e atentar para
seus traços formais e construtivos. O mais saliente deles é o uso do narrador em
primeira pessoa.
Não deixa de
ser interessante notar que Tropa de Elite, ao mostrar de modo
razoavelmente cru e verossímil a violência policial, põe em cena o substrato
obsceno que forma o suplemento necessário aos valores compartilhados de justiça,
segurança pública e liberdade. Para ilustrar isso, basta evocar as inúmeras
cenas de tortura. No entanto, ao inserir as vítimas dessa violência num discurso
que as priva de qualquer humanidade, tomando-as como inumanas, tal violência
perde seu caráter obsceno e passa a servir ao gozo de um espectador identificado
com o executor. Afinal, embora pretenda “mostrar a forma pela qual nossas
instituições policiais transformam quem tenta fazer parte delas”[4], numa perspectiva que afirma que a polícia
“é o que é e faz o que faz por causa da sociedade que a moldou”[5], Tropa de Elite acaba padecendo
de um equívoco de método. Isso porque, como afirma o diretor, a perspectiva
apresentada pelo filme é fundada numa pesquisa com policiais para entender seu
ponto de vista, a fim de explicar como se forma um policial violento e como ele
justifica para si mesmo a sua violência.[6] Ocorre que, com a narrativa em primeira
pessoa, na voz do Capitão Nascimento, o diretor convoca o espectador a uma
identificação com o protagonista, sendo aquele levado a compreender os pontos de
vista e as ações deste, ficando qualquer crítica reduzida à estereotipia quando
colocada na voz de personagens que, por mais bem intencionados que sejam, não
estão na pele do nosso herói. Os exemplos mais claros disso são os antagonismos
entre as ações do Capitão Nascimento e o discurso de Fraga, o romântico
intelectual de esquerda.
As estratégias empregadas pelo filme que conduzem o
espectador à identificação com o policial, que incluem a narrativa em primeira
pessoa, nos conduzem à ilusão de sabermos, de forma transparente e acessível, as
razões e motivos “por trás” dos atos do Capitão Nascimento. Esta empatia
subjetiva foi duramente criticada porque atenuaria a violência com uma máscara
de compreensão psicologista. É neste ponto em que temos supostamente o total
controle identificatório de nosso personagem, assim como o cientista do
experimento de Milgran tinha total controle dos sujeitos ingênuos, que
precisamos encontrar a violência em segundo grau que isso representa. Ou seja, o
efeito estético libertador, potencialmente presente no filme, baseia-se no que
Žižek chamou de superidentificação. Uma identificação tão exagerada, tão
perfeita, que radicaliza tão bem seus princípios, que é capaz de destruir as
oposições que a tornaram possíveis. Ou seja, não é por falta de bons motivos e
razões que Capitão Nascimento age como age, mas justamente os melhor motivos,
aqueles com os quais “todo mundo concordaria”, são os piores. Com isso o filme
poderia ter desestabilizado, e para alguns realmente desestabilizou, a narrativa
dominante sobre a violência no Brasil. Novas formas de intervenção policial,
menos truculentas, surgiram depois do filme. Mas em nenhum momento elas são
sugeridas “didaticamente” ao gosto de uma pedagogia política por vezes presente
no cinema nacional.
Mas se, do
ponto de vista do sujeito, há este “esgotamento retórico” como efeito
contingente do filme, quanto à desconstrução de nossa gramática da violência, do
ponto de vista do objeto o filme é repleto daquilo que o teórico do cinema
Michel Chion chamou de rendu, conceito que, segundo Slavoj Žižek, “é
oposto ao simulacrum (imaginário) e ao código (simbólico) como uma terceira via
de fazer realidade no cinema: nem por meio da imitação imaginária, nem por meio
da representação simbolicamente codificada, mas por meio de sua ‘entrega’
imediata”[7]. Segundo Žižek, esse
conceito remeteria fundamentalmente às técnicas contemporâneas de sonorização
dos filmes, em que alguns detalhes sonoros são trazidos ao primeiro plano.
Resultaria disso uma captura do espectador em nível de imediaticidade próprio ao
registro do Real. Žižek observa que, ao assumir o primeiro plano, a trilha
sonora passa a fornecer a perspectiva básica de continuidade do filme, ficando
as imagens, juntamente com a narrativa, reduzidas a fragmentos flutuantes do
universo sonoro. É o que acontece, por exemplo, quando, em pleno combate,
Nascimento escuta, por telefone, as batidas do coração de seu futuro filho. Som
que se sobrepõe a todos os outros e, distorcido, assume o primeiro plano, dando
o espírito da cena, como se todo o resto não passasse de subprodutos. Estratégia
perigosa no caso de Tropa de Elite, na medida em que qualquer reflexão
a respeito da violência urbana fica relegada ainda com mais força ao segundo
plano.
Devemos,
então, compreender melhor, afinal de contas, de que se trata o ponto de vista do
Capitão Nascimento a respeito da violência. Personagem cuja facilidade em
reconhecer “vagabundos” e “bandidos” permite entrever uma lógica de redução do
outro ao inumano, típica de regimes fascistas de experiência. Regimes cuja
racionalidade é incapaz de reconhecer que “a capacidade de confrontação com o
inumano é a condição maior para a regulação de toda e qualquer política que se
queira ainda fiel a exigências gerais de emancipação”[8]. Percebamos como, apesar de sua frase de
abertura, em nenhum momento o filme coloca em questão o verdadeiro estatuto
daquelas pessoas que estão sendo chamadas de bandidos e vagabundos, lançando-as
imediatamente ao inumano e, a partir daí, dando-as à tortura e à morte sem que
isso represente uma questão de maior importância. Quanto a isso, Žižek nos
lembraria da situação dos prisioneiros de Guantánamo:
(…) um dos argumentos para a aceitabilidade ético-legal
do seu estado era de que “eles são aqueles que foram perdidos pelas bombas”:
desde que foram o alvo do bombardeio dos EUA e acidentalmente sobrevivido, e uma
vez que este ataque foi parte de uma operação militar legítima, não se pode
condenar o seu destino quando foram feitos prisioneiros após o combate –
qualquer que seja sua situação, é melhor, menos grave, do que estar morto… Este
raciocínio diz mais do que pretende dizer: ele coloca o preso quase que
literalmente na posição de morto-vivo, aqueles que de algum modo já estão mortos
(seu direito de viver perdido por serem alvos legítimos de bombardeios
assassinos), de modo que eles são agora casos do que Giorgio Agamben chama
homo sacer, aquele que pode ser morto com impunidade já que, aos olhos
da lei, sua vida não conta mais.
Estamos, portanto, num terreno onde a violência se funda
na exclusão daqueles a quem ela se dirige do campo social de subjetivação.
Estratégia cuja premissa fundamental é a naturalização do discurso que destitui
de humanidade os seus inimigos, de modo que a violência, ela própria, não seja
objeto de discussão e de crítica. Estratégia que vem sempre acompanhada por um
cálculo onde a violência pode ser colocada a serviço da realização dos valores
democráticos mais fundamentais, como a igualdade, a liberdade, os direitos
humanos, a paz. São cenários como esse que fazem Žižek se pôr a falar sobre
violência, assumindo toda a radicalidade daquilo que Alain Badiou chamou de
“paixão do Real”: “se você disser A – igualdade, direitos humanos e liberdades –
você não deve se esquivar de suas consequências e reunir a coragem de dizer B –
o terror necessário para realmente defender e fazer valer o A.” O que exige a
disposição de assumir, no campo social, as consequências de uma lógica que
admite paradoxos, sem esquivar-se dos antagonismos que seriam a própria matéria
prima desse campo, mesmo quando isso signifique suportar um terror impossível,
já que este seria parte constituinte de qualquer horizonte de liberdade que se
queira verdadeiro. Aqui Žižek e Padilha encontrariam um solo comum na ideia de
que o discurso pacifista tem um problema tão dramático para resolver quanto o
belicismo ativista. Ou seja, atribuir a violência tanto aos espíritos mal
formados na pobreza quanto ao excesso da barbárie civilizatória é ainda pensar
sem deixar lugar para o ato.
Ideia cuja
radicalidade não escapa aos críticos e leitores da obra žižekiana, como quando
argumentamos que “para Žižek a política (…) deve considerar o antagonismo como
real. Mas o próprio antagonismo, como real, não pode ser representado de modo
estável e contínuo por um sistema de significação. O antagonismo, como real, não
cessa de não se inscrever. É no quadro deste impossível que Žižek tentará
reintroduzir uma reflexão sobre a liberdade, como a segunda face deste
antagonismo”[9]. Mas como compreender
essa impossibilidade de significação, se é precisamente aí que se deve fundar o
verdadeiro ato (que envolve a suspensão da subjetividade compreensivo
imaginária) como ato verdadeiro (que envolve a criação de novas coordenadas
simbólicas pela apresentação do Real)? De que se trata esse terror que se
pretende verdadeiramente libertário, e em que ele se compõe e contrapõe àquele
encenado em Tropa de Elite?
Žižek
recorrerá às ideias de Robespierre, para quem: “o terror revolucionário é
exatamente o oposto da guerra: Robespierre era um pacifista, não por hipocrisia
ou sensibilidade humanitária, mas porque ele estava bem ciente de que a guerra
entre as nações como regra serve como meio de ofuscar a luta revolucionária
dentro de cada nação.”[10] Quanto a isso, estamos
no terreno próximo daquele que fez Jacques Lacan retomar a fórmula do general
Von Clausewitz: “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Nessa
chave, a oposição colocada pelo filme entre a violência policial nas favelas,
justificada por um discurso naturalizado e tida como a solução do “problema”, e
a corrupção do “sistema”, então tomada como causa do problema, se desfaz. Seria
preciso reconhecer a continuidade entre ambos em seu substrato ideológico, de
modo que possa ficar claro que a lógica da guerra é a mesma lógica que produz
aquilo que a guerra combate, e que afinal de contas tal combate não passa de uma
maneira de deixar as coisas como estão.
Contra a
lógica da guerra, Žižek propõe a lógica da revolução, inspirada por Robespierre,
“cujo objetivo declarado é devolver o destino da liberdade às mãos da verdade”[11]. Tal verdade deve admitir uma justiça
rigorosa, inflexível, e estar disposta a assumir as consequências de todo o
terror que for desferido em seu nome. No entanto, não encontramos nos textos de
Žižek, e tampouco nas palavras de Robespierre, qualquer cálculo de terror,
qualquer justificação antecipada para um ato de violência. Quando o terror
torna-se política de Estado, ou quando o terror torna-se objeto constitutivo de
uma contra-política ele não é mais terror divino, ato real, contingência
criativa. Todo terror que é meio para algo é meramente violência administrada.
Isso não deveria excluir o espaço para a violência que é ao mesmo tempo
verdadeira, o que não deixa de significar necessária, mas também impensável,
incalculável, imprevisível. Afinal, “calcular sem regras é a verdadeira situação
daquele que se vê diante da iminência de produzir um ato”[12]. Nas palavras de Žižek:
Quando aqueles
que estão fora do campo social estruturado atacam “cegamente”, exigindo e
colocando em ato a justiça/vingança imediatamente, essa é “violência divina” –
lembrem-se, uma década ou mais atrás, o pânico no Rio de Janeiro, quando
multidões desceram de favelas para a parte rica da cidade e começaram a saquear
e queimar supermercados – essa era a “violência divina”.[13]
Devemos
compreender a noção benjaminiana de violência divina como “uma decisão (de
matar, de arriscar ou perder a própria vida) tomada em absoluta solidão, sem
cobertura no grande Outro.”[14] . Muito se criticou, nos ataques a lojas
no Reino, ocorridos em 2011, o fato de que esta era apenas uma arruaça baseada
em fins impuros (consumo) e meios inadequados (sem organização reinvindicativa).
Ora, é neste tipo de circunstância, que se coloca algo novo para ser pensado,
mais além da reprovação ou reprovação, mais além da contabilidade política. O
que constitui, afinal, a característica fundamentalmente distintiva entre o
terror revolucionário e a violência da guerra ou da instituição-preservação da
lei é seu caráter estético (rendu) e sua desidentificação (meios-fins).
Sem cobertura no grande Outro, sem autoridade constituída para transferir a
responsabilidade, que seja a policial ou da massa anônima, o terror
revolucionário nunca se justifica a si próprio de antemão, só pode ser medido
por suas consequências: “se isso é extra-moral, não é imoral, isso não dá ao
agente a licença de simplesmente matar com algum tipo de inocência angelical.” O
que nos colocará no interior de uma espécie de ética das consequências, como a
apontada por Alain Badiou: “O terror presente será retroativamente justificado
se a sociedade que irá emergir será verdadeiramente humana”[15]. Seguindo as consequências daquilo que já
havia sido notado por Robespierre ao se perguntar: “qual julgamento seguro
alguém pode fazer sobre os efeitos que podem seguir a essas grandes comoções?”[16], devemos assumir, como fez Safatle, que
há situações em que é imoral pensar:
Trata-se, na
verdade, de redimensionar a noção de responsabilidade moral. Não se trata de
oferecer um fundamento mais seguro. Trata-se de compreender que a insegurança do
fundamento joga minhas ações para a dimensão da análise dos efeitos, para uma
moralidade das consequências de cunho complexo. Retirada a garantia ontológica
de alguma forma de identidade imediata no interior da ação moral ou, se
quisermos, retirada a garantia de que a ação moral não se interverterá em
catástrofe, em amoralidade, minha responsabilidade em relação ao ato é uma
responsabilidade infinita, como dirá Derrida. Mesmo que todas as consequências
da ação não dependam do meu controle, o engajamento em relação à ação exige que
o cálculo seja infinitamente refeito a partir do desdobrar de suas
consequências, a partir da maneira com que o grande Outro interpretará e reagirá
à minha ação.[17]
Afinal, “a
falibilidade do ato é traço essencial: o ato moral é aquele que deve ser
assumido enquanto falível, como se racional fosse saber agir sem garantias de
orientação na conduta.”[18] Nada mais distante da
lógica de uma polícia para quem “missão dada é missão cumprida”, onde a
violência nunca deixa de ser remetida à questão maior da segurança pública.
Nesse sentido, os cálculos que justificam as ações são sempre dados com o máximo
de clareza, ainda quando elas abrigam em seu interior a barbárie, como
suplemento obsceno, tão subterrâneo quanto necessário. Trata-se de uma violência
que se dirige inquestionada em direção a tudo aquilo que não porta a imagem do
homem, a tudo o que está em desacordo com a identidade de seu tempo, numa lógica
em que ninguém tem dúvidas de quem são e onde estão os bandidos e
vagabundos.
O ato
revolucionário, ao contrário, é aquele que admite sua opacidade constitutiva
baseada no instante de indeterminação. Sem ser transparente para si próprio, não
pode ser pautado por qualquer princípio de identidade, nos lançando numa ética
em que um sujeito pode reconhecer em si próprio um outro: “o sujeito que
reconhece tal opacidade é capaz de pensar contra si mesmo e reconhecer que o
engajamento significa não exatamente ser fiel a um princípio, por mais claro que
tal princípio possa lhe parecer, mas ser fiel ao esforço infinito de pensar e
rever as consequências que se seguem àquilo que, em um dado momento, é claro
para nós.”[19] Pois, como segue
Safatle, “(…) todo verdadeiro ato é uma estrada construída perto demais de um
abismo.”[20]
Talvez esse seja também o abismo à beira da estrada que
corta as montanhas rochosas, percorrida por Jack Torrance,personagem de Jack
Nicholson, em The Shining (O Iluminado) de Stanley Kubrick (1980), filme que
pode ser tomado como anti-modelo de Tropa de Elite, ao nos enredar na
trágica coincidência do eu com um outro, que funda um terror que não se pode
chamar de imoral. E se o abismo está sempre à espreita, a falibilidade
constitutiva do ato moral nos coloca ainda uma vez perante as palavras de
Nietzsche:
O homem é uma
corda, atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo.
Perigosa travessia, perigoso a-caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso
arrepiar-se e parar. O que é grande no homem, é que ele é uma ponte e não um
fim: o que pode ser amado no homem, é que ele é um passar e um sucumbir. Amo
Aqueles que não sabem viver a não ser como os que sucumbem, pois são os que
atravessam. Amo os do grande desprezo, porque são os do grande respeito, e
dardos da aspiração pela outra margem.[21]
[1] Ver Dunker, C.I.L. & Domiciano,
J.F.G.M.S.. Teoria do Ato Moral Em um Mundo Melhor. ZAGAIA. Recuperado em 11 de
setembro de 2011, de
http://www.zagaiaemrevista.com.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=54&Itemid=7
[2] Ver Arantes, S. (2006, 29 de dezembro).
“Tropa de Elite” de José Padilha explica por que polícia “é o que é”. Folha de
São Paulo. Recuperado em 8 de agosto de 2011, de http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u67237.shtmlhttp://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u67237.shtml
[3] Safatle, V. (2010, 18 de outubro). Longa
usa a lógica da guerra civil para discutir questão da segurança pública. Folha
de São Paulo. Recuperado em 8 de agosto de 2011, de http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1810201018.htm
[4] Arantes, S. (2006, 29 de dezembro). “Tropa
de Elite” de José Padilha explica por que polícia “é o que é”. Folha de São
Paulo. Recuperado em 8 de agosto de 2011, de http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u67237.shtml
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] Žižek, S. (1992). Looking awry: an
introduction to Jacques Lacan through popular culture (p. 40). Cambridge, MA:
MIT Press.
[8] Safatle, V. (2009). Sobre a potência
política do inumano: retornar à crítica do humanismo. In A. Novaes (Org.), A
condição humana (pp. 199-220), SP: Edições SESC.
[9] Dunker, C.I.L. (2005). Žižek: um pensador
e suas sombras. In C. Dunker & J. L. A. Prado (Orgs.), Žižek Crítico
(pp.47-80), SP: Hacker.
[10] Žižek, S. Robespierre or the “Divine
Violence” of Terror. Recuperado em 8 de agosto de 2011, de
http://www.lacan.com/zizrobes.htm#_ftn1
[11] Žižek, S. Robespierre or the “Divine
Violence” of Terror. Recuperado em 8 de agosto de 2011, de
http://www.lacan.com/zizrobes.htm#_ftn1
[12] Safatle, V. (2010). Há situações em que é
imoral pensar? O duplo fundamento insuficiente do ato moral. In A. Novaes
(Org.), A experiência do pensamento (pp. 133-155), SP: Edições
SESC.
[13] Žižek, S. Robespierre or the “Divine
Violence” of Terror. Recuperado em 8 de agosto de 2011, de
http://www.lacan.com/zizrobes.htm#_ftn1
[14] Ibid.
[15] Badiou, A. citado por Žižek, S.
Robespierre or the “Divine Violence” of Terror. Recuperado em 8 de agosto de
2011, de http://www.lacan.com/zizrobes.htm#_ftn1
[16] Žižek, S. Robespierre or the “Divine
Violence” of Terror. Recuperado em 8 de agosto de 2011, de
http://www.lacan.com/zizrobes.htm#_ftn1
[17] Safatle, V. (2010). Há situações em que é
imoral pensar? O duplo fundamento insuficiente do ato moral. In A. Novaes
(Org.), A experiência do pensamento (pp. 133-155), SP: Edições
SESC.
[18] Ibid.
[19] Ibid.
[20] Ibid.
[21] Nietzsche, F. (1996). Assim falou
Zaratustra (p.211). In In: Nietzsche Obras Incompletas. São Paulo: Nova
Cultural, 1996.
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