Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Mulheres com M

de Rui Bebiano, Portugal

Mulheres com M


Tem sido boa a repercussão pública do ensaio Humilhação e Glória, de Helena Vasconcelos. Sendo inteiramente merecido, esse eco deve, no entanto, ser confrontado com algumas dúvidas que a leitura da obra levanta. É desde logo evidente a intenção da autora de conceber o livro como uma introdução à história das mulheres, concebida de forma atraente e vocacionada principalmente para o leitor comum. Ele vem preencher, aliás, na linha do que fez em Espanha Rosa Montero com o seu Histórias de Mulheres, uma lacuna na edição nacional. Ao mesmo tempo, a autora propõe um importante trabalho de resgate efetuado sobre os feitos e os trajetos públicos de um conjunto de mulheres, principalmente portuguesas, com papéis na literatura, nas artes, nas ciências ou na intervenção cívica que têm permanecido injustamente esquecidos ou na sombra. Se a Marquesa de Alorna é, pelo menos nos meios académicos, razoavelmente conhecida, poucos terão ouvido falar, por exemplo, de Teresa Margarida da Silva Orta, apesar de esta ter sido a primeira portuguesa a escrever um romance (As Aventuras de Diófenes, de 1752). Atravessa também o livro uma brisa de otimismo que contribui, sem dúvida, para ampliar o seu papel de instrumento destinado a sublinhar a importância de um trajeto histórico de combate pela emancipação e de afirmação positiva da voz das mulheres.
Uma leitura crítica levanta, porém, algumas perplexidades. Anoto três. Em primeiro lugar, a consideração de eventos e práticas originários de distintos tempos e lugares como se inscritos num percurso único, visando uma espécie destino trans-histórico comum. Em segundo lugar, a falta das propostas, dos problemas e dos combates que se levantaram, a partir da década de 1980, no contexto do chamado feminismo de terceira vaga, ficando as alusões canónicas pelas pelas autoras de segunda vaga (Simone de Beauvoir, Elaine Showalter, Betty Friedman e outras). E em terceiro o tom quase celebratório, em relação à situação atual de uma «tendência para a igualdade» que estudos no campo da sociologia e da ciência política têm vindo a desmontar, revelando, ao invés, que este padrão de discurso pode validar subordinações reais, aparentemente invisíveis. Pode ainda, entretanto, levantar-se uma última objeção que parecendo apenas formal, de facto o não é. A designação de um enquadramento do ensaio, enquanto género, no campo dos estudos «femininos» – e não «sobre as mulheres», ou «feministas», como são catalogados dentro de um universo hoje já bastante alargado, inclusivamente em Portugal, que se dedica ao seu estudo nos domínios da investigação de ponta e do debate teórico – advém de uma escolha da autora que sendo inteiramente legítima, respeitável, pode também ser questionada por dar a impressão de advir de uma noção essencialista sobre o «belo sexo» derivada de um modelo cultural dominantemente masculino. Um livro bastante útil e recomendável que convirá ler com alguma vigilância crítica.

Helena Vasconcelos, Humilhação e Glória. O acidentado percurso de algumas mulheres singulares. Quetzal. 328 págs.Versão revista de nota saída na LER de Abril.

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