Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

sábado, 21 de abril de 2012

Cena última de Esperando Godot
cap-tirado do Blog Diálogos impertinentes



POEMA DOS DONS 

Quero dar graças ao Divino 
Labirinto dos efeitos e das causas 
Pela diversidade das criaturas 
Que formam este singular universo, 
Pela razão, que não cessará de sonhar 
Com um plano do labirinto, 
Pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses
Pelo amor que nos deixa ver os outros 
Tal como os vê a divindade, 
Pelo firme diamante e pela água solta, 
Pela álgebra, palácio de precisos cristais, 
Pelas místicas moedas de Ângelus Silesius
Por Schopenhauer, 
Que talvez tenha decifrado o universo, 
Pelo fulgor do fogo 
Que nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo, 
Pela carnaúba, o cedro e o sândalo, 
Pelo pão e pelo sal, 
Pelo mistério da rosa, 
Que prodiga cor e que não a vê, 
Por certas vésperas e dias de 1955, 
Pelos rijos tropeiros que na planura 
Arreiam os animais e a aurora, 
Pelas manhãs de Montevidéu, 
Pela arte da amizade, 
Pelo último dia de Sócrates, 
Pelas palavras que num crepúsculo foram ditas 
De uma cruz a outra cruz, 
Por aquele sonho do Islã que abarcou 
Mil noites e uma noite, 
Por aquele outro sonho do inferno, 
Da torre do fogo que purifica 
E das estrelas gloriosas, 
Por Swedenborg, 
Que conversava com os anjos nas ruas de Londres, 
Pelos rios secretos e imemoriais 
Que convergem em mim, 
Pelo idioma que, faz séculos, falei na Nortúmbria, 
Pela espada e pela harpa dos saxões, 
Pelo mar, que é um deserto resplandecente 
E um número de coisas que não sabemos, 
Pela música verbal da Inglaterra, 
Pela música verbal da Alemanha, 
Pelo ouro, que resplende nos versos, 
Pelo épico inverno, 
Pelo título de um livro que não li: Gesta Dei per Francos, 
Por Verlaine, inocente como os pássaros, 
Pelo prisma de cristal e o pêndulo de bronze, 
Pelas listras do tigre, 
Pelas altas torres de São Francisco e da Ilha de Manhattan, 
Pela manhã no Texas, 
Por aquele sevilhano que redigiu a Epístola Moral 
E cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos, 
Por Sêneca e Lucano, de Córdoba, 
Que antes do espanhol escreveram 
Toda a literatura espanhola, 


Pelo jogo de xadrez, geométrico e bizarro, 
Pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce, 
Pelo cheiro medicinal dos eucaliptos, 
Pela linguagem, que pode simular a sapiência, 
Pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado, 
Pelo hábito, 
Que nos repete e confirma como um espelho, 
Pela manhã, que nos depara a ilusão de um começo, 
Pela noite, sua treva e sua astronomia, 
Pela coragem e a felicidade dos outros, 
Pela pátria, percebida nos jasmins 
Ou numa espada velha, 
Por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema, 
Pelo fato de que o poema é inesgotável 
E se confunde com a soma das criaturas 
E não chegará jamais ao último verso 
E varia como os homens, 
Por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos 
Por morrer tão devagar, 
Pelos minutos que precedem o sono, 
Pelo sono e a morte, 
Esses dois tesouros ocultos, 
Pelos íntimos dons que não enumero, 
Pela música, misteriosa forma do tempo. 

Jorge Luis Borges 

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